Há um ano, Filomena Cautela despedia-se do "5 Para a Meia-Noite". No ar ficava a promessa, pouco consubstanciada na altura, que voltaria para um novo formato. Meteram-se novas vagas da pandemia da covid-19 e o projeto foi sendo adiado até que este sábado, 5 de junho, viu finalmente a luz do dia.

"Programa Cautelar" foi apresentado a 17 de maio como sendo um formato "radicalmente diferente" e uma "alternativa face ao que está a passar nos restantes canais". E é-o, sem dúvida, embora tenha muitas (mas mesmo muitas) semelhanças com "Patriot Act with Hasan Minhaj", formato da Netflix que abordou, ao longo de sete temporadas (entre 2018 e 2020) um tema por episódio, desde imigração, a Arábia Saudita, direitos civis na era Trump, o sistema policial norte-americano, entre outros assuntos da atualidade.

Na televisão já tudo foi inventado e o que interessa ressalvar é a falta que faz um formato como "Programa Cautelar" à tv generalista, um espaço no qual se abordam temas sérios sem especialistas a falar de cátedra ou debates inflamados que redundam apenas em ruído.

O tema do episódio de estreia foi a desinformação (com tudo o que está englobado neste universo, desde redes sociais a fake news). Mesmo antes do arranque do programa vemos que o presidente da República é entrevistado por Filomena Cautela. Não é propriamente surpreendente nem original, uma vez que Marcelo Rebelo de Sousa não é um político avesso a este tipo de convites. Mas já lá vamos.

O cenário de "Programa Cautelar" é um cubo multicolor, com ecrãs onde vão surgindo, ora vídeos, ora informação adicional ao tema. No arranque, a apresentadora começa por explicar a razão do nome do formato. E já se nos tinha varrido da memória esse termo usado durante a crise financeira de 2010-2014, e que era a proposta alternativa a um segundo resgate financeiro, até ficámos com arrepios só de nos lembrarmos.

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Apresentações feitas começa a montanha-russa. Primeiro, redes sociais. Aparecem números, vídeos, a história do fundador da internet, movimentos políticos e sociais como a Primavera Árabe e o #MeToo, e tudo passa tão rápido que teríamos de fazer 'pause' para conseguir ler.

Depois, fala-se de desinformação e aparece mais uma porrada de slides e texto e fotos nos ecrãs do cenários e já só nos lembramos da sessão da formação de formadores em que nos explicam as regras básicas de apresentação de powerpoints (pouca informação por slide; atenção ao tamanho da letra; fotografias pequenas não cumprem o objetivo; não repetir o que está escrito no slide).

O que aconteceu - e não estamos a dizer isto para sermos mauzinhos ou porque não gostamos do formato - é que, ao fim de 20 minutos, o cérebro desligou-se. Fez "switch off". "Programa Cautelar" tenta meter o Rossio na Betesga em termos de dar ao telespectador toda a informação de que ele precisa sobre desinformação. E acaba por ser difícil reter uma mensagem às nove da noite de sábado, quando ainda muita gente está a jantar e não tem a atenção totalmente focada no pequeno ecrã.

Por isso, e para não sermos injustos, voltámos a ver o programa este domingo de manhã. E... perdemo-nos outra vez na parte da desinformação acidental e intencional. Talvez com mais uma chávena de café. "Vocês aguentam mais uma estatística?", pergunta Mena. Não Mena, não aguentamos.

A segunda parte, digamos assim, do formato, que tem apenas 45 minutos, conta com convidados e é aí que a dinâmica muda e nos permite respirar um pouco: começa com os jornalistas Paulo Pena, e Sandra Felgueiras a fazerem aquela tarefa ingrata de explicar às pessoas a diferença entre jornalismo e sites manhosos.

Segunda ronda de avalanche de informação com casos relacionados com a propagação de desinformação nas redes sociais, como Myanmar, Pizzagate, Qanon, a invasão do Capitólio norte-americano, bots, trolls. Uma das surpresas da noite é mesmo o regresso de Leonor Poeiras à TV, num segmento que podia chamar-se "Leonor Espalha Amor Por Aí". E comovemo-nos um pouquinho quando a ex-apresentadora da TVI diz a um casal de idosos "adorei ver-vos atravessar".

Mais um tsunami de informação, e Filomena tenta explicar a Carta Portuguesa de Direitos Humanos na Era Digital... indo de mota até à Assembleia da República falar com o autor da mesma, o deputado do PS José Magalhães. A apresentadora pergunta ao deputado se existe um mecanismo que previna que este documento seja uma carta branca para a censura digital. Claro que o deputado diz que não. Contraditório? Não temos. Siga para bingo e para aquele que é o momento mais forte da estreia de "Programa Cautelar": Carlão a fazer um rap professoral sobre como combater as fake news. "É sexy, sexy!". Concordamos.

"Programa Cautelar" termina com uma entrevista ao presidente da República. O próximo episódio do novo formato de Filomena Cautela é sobre a guerra das audiências. O tema promete. A ver vamos. Com menos powerpoints, de preferência.

O melhor

As dicas do Professor Carlão para combater a desinformação

Carlão foi um dos convidados da estreia de
Carlão foi um dos convidados da estreia de "Programa Cautelar"

Ter o músico, ícone de uma geração (que por acaso é a minha) sentado numa poltrona, a explicar em verso como todos podemos combater a desinformação, a dar ferramentas úteis e práticas para nos tornarmos cidadãos digitais mais responsáveis, foi o momento alto de "Programa Cautelar". Para a semana, queremos ver o Professor Carlão (pronto, já o batizámos) a fazer um rap sobre a guerra de audiências.

Leonor Poeiras é feel good TV em estado puro

Leonor Poeiras em
Leonor Poeiras em "Programa Cautelar"

O segmento no qual a ex-apresentadora da TVI surge num descapotável, a distribuir elogios a transeuntes incautos pelas ruas de Lisboa consegue aquecer o coração até do ser humano mais empedernido. Faz-nos lembrar os tempos áureos do "The Ellen Degeneres Show", em que a apresentadora norte-americana fazia jus ao lema do seu formato "be kind to one another" ("sejam bondosos uns com os outros").

Leonor Poeiras. "Estou a viver do dinheiro que tenho guardado"
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O regresso de Filomena Cautela à televisão

filomena cautela programa cautelar
créditos: Instagram

Independentemente de o formato estar desajustado ao dia e horário em que é exibido, Filomena Cautela fez falta. Muita falta. O seu estilo, os temas que traz para cima da mesa, a vontade de, de forma leve, discutir assuntos sérios, fazem de Filomena uma presença imprescindível na televisão portuguesa. E só a RTP lhe poderia dar o espaço, o tempo e a liberdade para fazer "Programa Cautelar". E nós agradecemos.

O que podia ter sido melhorzinho

O dia e a hora

Sábado às 21h, quando estamos em horário de Verão, é uma crueldade. "Programa Cautelar" merece estar num horário mais tardio, em que os telespectadores (e sobretudo o público que quer ver Filomena Cautela) estejam em casa e com vontade de estar com atenção.

Excesso de informação e pouca explicação

O momento em que o jornalista e investigador Paulo Pena fala sobre sites que veiculam desinformação e fake news podia ter sido uma excelente oportunidade para explicar aos utilizadores menos experimentados como é que tudo isto funciona (e como está a matar o jornalismo). Mas entre termos que o cidadão não comum não entende, como "ERC" ou  "alt right", e a estranheza de a apresentadora estar a falar com uma gravação, a mensagem acabou por se perder na forma.

A entrevista com Marcelo Rebelo de Sousa

Marcelo Rebelo de Sousa e Filomena Cautela
Marcelo Rebelo de Sousa e Filomena Cautela

Guardada para o final do programa, a entrevista com o presidente da República tem por objetivo... não percebemos bem. Filomena começa por mostrar vídeos deep fake a Marcelo Rebelo de Sousa e questiona-o sobre desinformação. O presidente, que nunca perdeu o seu lado de comentador televisivo (nem de professor) dá uma aula de História da Propaganda e relativiza o impacto da desinformação nas eleições portuguesas. Vamos concordar em discordar, senhor presidente. "Que alívio", diz Filomena Cautela. Ok... O segmento termina com o presidente a explicar o que é um programa cautelar e a revelar o sentido da vida. Perdeu-se uma oportunidade para fazer algo mais fora da caixa e não tão institucional.