Costuma dizer-se que as homenagens se devem fazer em vida. Ora, quando a homenagem em vida é feita em forma de série, diversos problemas se colocam. E se estivermos a falar do mercado português, pequeno e com orçamentos baixos, mais problemas ainda. Eventuais processos de difamação, falta de dinheiro para recriar grandiosidade de exteriores, buracos narrativos para fintar aspectos menos positivos das vidas dos retratados, etc. Uma dor de cabeça.
No início de 2023, a SIC fê-lo com a minissérie "Marco", um belo conto de fadas inspirado na vida do cantor Marco Paulo, que morreu a 24 de outubro. E reforçamos a expressão "conto de fadas" porque o envolvimento do cantor, o simples facto de estar vivo, condicionou uma narrativa, digamos assim, mais factual. Ninguém tem uma vida assim tão preto no branco, momento fofinho alternado com momento dorido, ninguém tem assim uma personalidade tão linear. Mesmo as pessoas com sonhos têm defeitos, mesmo os ídolos têm pés de barro. Infelizmente, o mercado português, seja o televisivo, seja o cinematográfico e muito menos o literário, não tem a tradição da biografia, embora já se comece a traçar um caminho nesse aspecto, com obras como "Bem Bom", "Variações" ou "Soares é Fixe".
Quase um ano depois de "Marco", estreia este sábado, 7 de dezembro, na TVI e na plataforma de streaming Prime Video, "Tony". O formato de quatro episódios é inspirado na vida de Tony Carreira, foi aprovado por Tony Carreira, mas não contou com a participação de Tony Carreira, como o próprio fez questão de realçar na apresentação da coprodução da estação de Queluz de Baixo com a plataforma de streaming.
"Falaram com os meus pais e com o meu irmão e acho que isso é muito mais interessante do que ter o meu olhar”, disse o artista de 60 anos. Esta sexta-feira, no programa "Dois às 10", Bárbara Lourenço, que interpreta a ex-mulher de Tony Carreira, disse que não tinha falado com Fernanda Antunes para construir a sua personagem.
Ou seja, em suma, o que temos em "Tony" é uma obra de ficção vagamente inspirada na vida de alguém que o público acha que conhece, em Tony Carreira, persona pública (mais o que as pessoas mais próximas dele favoreceram sobre o próprio) do que na vida de António Manuel Mateus Antunes. Como se diz nos dias de hoje para aplacar possíveis discussões... "e está tudo bem".
A MAGG viu o primeiro episódio e diz-lhe o que pode esperar
1 - A relação do jovem Tony com o pai Albano vai fazer tremer corações
Nós nem somos destas coisas, mas temos de admitir que chorámos baba e ranho nas cenas que mostram a relação que o jovem Tony (Duarte Estrela) tem com o pai Albano Antunes, magistralmente interpretado por Duarte Grilo. O ator de 39 anos, que tem um extenso currículo em novelas, séries e no cinema, empresta todo o seu talento a este pai igual a tantos pais marcados pelo sacrifício de ter de sair do seu País para tirar uma família inteira da pobreza.
Filho de emigrantes, também ele um emigrante, Tony Carreira conquistou a sua base de fãs junto da diáspora portuguesa, antes de regressar ao seu País e tornar-se o fenómeno de vendas de álbuns e salas de espectáculos que conhecemos hoje. Apesar de sabermos que há muita coisa em "Tony" que pode ser adoçada, há muita verdade naquelas cenas em que um menino que cresce longe dos pais desespera pelo carinho e atenção de um pai cujo coração a vida endureceu. Muito bonito, muito bem interpretado.
2 - As cenas que recriam o concerto no Olympia de Paris são paupérrimas
Pronto, está dito. A minissérie de quatro episódios percorre a vida de Tony Carreira até ao concerto na prestigiada sala de espectáculos Olympia, em Paris, que encheu em 2001 para o ver atuar, um feito inédito para um artista português. Ora nós nunca estivemos no Olympia, mas somos capazes de apostar que não se parece com o que está em "Tony".
Na série, o Tony adulto (interpretado por Carlos Félix), além de usar o pior capachinho de sempre (que me perdoe a caracterização, mas há momentos em que parece que o homem tem um guaxinim morto na cabeça), está num sítio que pretende replicar uma sala esgotada mas mais parece um estúdio escuro, com demasiado espaço e pouca animação, e com meia dúzia de figurantes que tentam simular uma plateia em êxtase. E o que causa mais sofrimento é o facto de estas cenas musicais servirem de ligação entre os vários momentos da vida do cantor.
3 - A fantasia telúrica do Armadouro (e uma excelente banda sonora)
Armadouro, aldeia pertencente ao concelho da Pampilhosa da Serra, a terra que viu nascer Tony Carreira, é mostrada em toda a sua essência e beleza. Temos rebanhos, temos burros, temos um avô que vende sardinhas e temos a pobreza (esta nada fictícia, sentida na pele de quem cresceu no Portugal dos anos 60 e não nasceu em berço de ouro) das batatas cozidas com couve ao jantar, do luxo que era uma bolacha Maria.
A dureza daqueles tempos, que moldou a personalidade de um País (para o bem e para o mal, na sua resiliência e no seu ressentimento), mas também a fantasia de um tempo e um espaço, que ainda hoje povoa o imaginário da diáspora lusa, estão consubstanciados no Armadouro mostrado em "Tony". E todos os pormenores foram acautelados, desde as lamparinas usadas para alumiar a modesta casa da família Antunes até à àquele traço de quem é pobre mas não é miserável, tão bem interpretado por Cleia Almeida (que dá vida a Maria Pereira Mateus, mãe de Tony Carreira), quando vai dar uma malga de papas de aveia à dona Isilda.
"Tony" é uma minissérie escrita por Miguel Simal e João Félix, com realização de Carlos Dante e produção da See My Dreams.