Aviso prévio: se é daquelas pessoas que está a pensar (ou a dizer) "ai, que horror, Take That? Mas isso ainda existe?" ou, pior, "desde que o Robbie Williams saiu nunca mais foi a mesma coisa!" recomendamos uma das duas opções (ou ambas):
- atualizar-se na página da Wikipédia da banda (que, desde o regresso, em 2006, lançou seis álbuns e fez seis digressões mundiais);
- atualizar-se na página da Wikipédia da banda (e verificar que Robbie Williams voltou aos Take That em 2010, fez um álbum e uma digressão com a banda. Depois zarpou novamente, como é seu apanágio).
Posto isto, a pergunta que não quer calar: por que raio é que os Take That demoraram 34 anos anos a atuar em Portugal? Como fã / estudiosa de cultura pop / pessoa com demasiado tempo, tenho várias explicações, talvez demasiado enfadonhas para quem está de fora do submundo das boybands. Mas, resumidamente, a minha teoria prende-se com timing. A escalada para o sucesso da banda britânica, originalmente composta por Gary Barlow, Mark Owen, Jason Orange, Howard Donald e Robbie Williams coincide com o reinado do grunge, a ausência de uma imprensa especializada (revistas como a "Super Pop" e a "Bravo" ainda não tinham versões portuguesas no início da década de 1990), a entrada no mercado da boyband que, até aos dias de hoje, detém recordes de vendas de álbuns a nível mundial, os Backstreet Boys, e também o facto de a banda nunca ter conquistado o mercado norte-americano.
Mas ei-los, agora em trio composto por Gary (53 anos), Howard (56 anos) e Mark (52 anos), finalmente em solo português. O primeiro dia do MEO Marés Vivas teve como cabeças de cartaz os D'ZRT, mas foram os Take That que incendiaram o recinto do antigo Parque de Campismo da Madalena, em Gaia.
Assistimos ao concerto com uma colega da geração Z, impressionada e divertida com o entusiasmo febril de senhoras com idade para serem mães dela. Desconhecia 99% das músicas da banda britânica de Manchester, o que não é de admirar, porque estamos a falar de uma era sem internet, sem telemóveis, em que revistas, posters, clubes de fãs, telefones daqueles com uma rodinha ou botões sem marcação rápida e correspondência por correio analógico eram as únicas formas de se pertencer a uma comunidade. Já para não falar de que viajar para outro país para assistir a um concerto era um luxo acessível a praticamente ninguém. Eram tempos melhores? Não. Eram diferentes.
O que é que faz com que uma banda, passados 35 anos, continue na estrada? O que é que faz com que estes senhores, todos com mais de 50 anos, continuem a cantar, a arrastar multidões, a fazer sonhar adolescentes que agora são mulheres, mães, empresárias, donas do mundo? Dois fatores: o talento (e sobre isso já falaremos mais tarde) e o facto de a base de fãs ser feminina.
Dificilmente veríamos grupos de homens nos seus 40 e 50 a vibrar por um grupo de senhoras cinquentonas e de cabelos brancos. Arrisco mesmo dizer que não veríamos porque não vemos. O olhar masculino, de uma perspetiva puramente heteronormativa, não sente apelo pela beleza madura. É discriminatório? Não, é o que é. Já as mulheres têm uma capacidade de sonho, fruto da sublimação do desejo sexual durante a adolescência (podíamos teorizar sobre o tabu da masturbação feminina vs. a normalização do onanismo masculino, mas isto ia por outros caminhos), projetado em posters na parede e videoclipes, que lhes permite olhar para um senhor de 53 anos e cabelo grisalho e ver ali o miúdo de 20 e poucos anos que cantava baladas românticas como "A Million Love Songs" ou "Back for Good" (sim, estou a falar para ti, Gary, meu gostosão).
Mas divergimos. De volta ao concerto em si, ou melhor, ao que aconteceu antes do concerto. A minha relação com os Take That remonta a 1996, quando a RTP2 transmitiu um concerto da banda, gravado ao vivo em Manchester. Essa cassete VHS, guardada até aos dias de hoje, transportou-me vezes sem conta para um universo excitante, confuso, lúbrico, romântico, difícil de categorizar numa era em que a ultra-masculinidade das roupas baggy das bandas masculinas não batia certo com as indumentárias divertidas dos Take That, compostas por micro-calções, chicotes, tops cropped e muito brilho. A explicação, descobriria anos mais tarde, estava relacionada com o facto de a banda ter começado a atuar em clubes para a comunidade LGBTQ antes de alcançar fama no mercado mainstream. “First come the gays, then the girls, then ... the industry", dizia, e bem, Samantha Jones em "O Sexo e a Cidade".
Os anos passaram, os Backstreet Boys acabaram por dominar o cenário e só em 2006, quando Howard, Jason, Gary e Donald decidiram reunir o grupo e lançar o álbum "Beautiful World", voltei a prestar atenção à banda. E esta sexta-feira, 19, enquanto me dirigia ao backstage para fazer uma entrevista (não com os Take That, essa não foi aprovada pela organização do festival), eis que eles me aparecem à frente. Sabem aquilo que se diz, "nunca conheças os teus ídolos"? Fiquei apenas a observá-los, Gary, Howard e Mark, senhores um bocado mais velhos do que eu, normais. Ouvi-lhes o sotaque de Manchester, aquelas vozes tão familiares, como se ainda ontem tivéssemos estado juntos a beber copos no pub. Não me atrevi a chegar perto, muito menos a falar ou a pedir uma foto. E foi melhor assim. A fantasia mantém-se intacta e vive para sempre.
"Só demorámos 34 anos para chegar aqui", diz Gary Barlow, cumprimentando o público nortenho, inicialmente tímido e sem saber o que esperar. O entusiasmo foi crescendo, devagar, ao longo de hora e meia de concerto, culminando com o épico "Never Forget", em que milhares levantaram os braços e cantaram em uníssono aquela que é uma das mais bonitas músicas dos Take That (curiosamente cantada por Howard Donald, que nunca foi solista).
O cérebro, o motor e a alma dos Take That é Gary Barlow. Compositor exímio, pianista brilhante e cantor incrível, o músico de 53 anos nunca foi nem o mais giro, nem o mais desejado, nem a estrela. Mas a sua tenacidade e o seu talento, mesmo quando os tabloides britânicos o arrasavam e o comparavam de forma cruel ao enfant terrible e queridinho da indústria, Robbie Williams, prevaleceram. E arriscamos até dizer que venceram, sobretudo se compararmos este cinquentão, pai de família e músico incrível com o que se vê no documentário da Netflix "Robbie Williams", em que o ex-Take That faz uma estranha terapia perante as câmaras, mostrando que os demónios do passado, ainda que adormecidos, estão lá.
No Marés Vivas houve casacos de cabedal dos anos 90, houve coreografias, houve "Back For Good", "How Deep is your Love", que continua a ser melhor do que a versão original dos Bee Gees, e até houve um piquenique com direito a Super Bock, vinho do Porto e pastéis de nata. Houve Gary a fazer o que faz melhor, cantar ao piano, e houve "Relight My Fire", com aquela vibe 70's disco, sexy e escaldante, a fazer-nos sentir que ainda vivemos num mundo cheio de alegria, ingenuidade, possibilidades e otimismo, e não neste pesadelo bélico Biden-Trumpiano, em que um bug num computador não se resolve com um simples comando no MS-DOS.
O que os Take That me ensinam (ou será que sou eu?) é que há duas formas de olhar para a meia idade: como uma caminhada lenta para a morte ou como uma celebração do que foi, do que é, do que será. Sem medo, sem vergonha do passado, celebrando-o ou brincando com ele, e sempre de olhos postos no futuro. "There's progress now / where there once was none / then everything came along".