A primeira cena de “Top Gun: Maverick” é de cortar a respiração, mas não é pelas acrobacias aéreas dos F-18, emprestados pela Marinha norte-americana para o filme. O fôlego falha quando, num plano apertado, surge Tom Cruise, de t-shirt branca ajustada, de chave de fendas na mão, a arranjar qualquer coisa num motor de avião. Os bíceps trabalhados são os mesmos de 1986, o cabelo castanho, com aquela franja impossível de replicar, é o mesmo de 1986. Não fossem as (poucas) rugas, juraríamos que estávamos numa sala do Cinema Condes, em 1986, e não no IMAX do Colombo, em 2022.
“Top Gun: Maverick” é um filme sem tempo e intemporal, e Tom Cruise é a personificação dessa dispensa de tempo na narrativa. O ator de 59 ano, ele próprio uma figura sem idade, quase mitológica, e é dessa forma que é mostrado no novo “Top Gun”, seja nas roupas e na forma como impecavelmente lhe assentam (que são quase as mesmas de há quase 40 anos), seja até na maneira como os corpos são expostos no filme.
A cena mais interessante de “Top Gun: Maverick”, e também a mais anacrónica tendo em conta os tempos de wokeness vitoriana que atravessamos, em que tudo é alvo de escrutínio e potencial cancelamento, é aquela em que a equipa de pilotos liderada por Pete “Maverick” Mitchell (Tom Cruise) vai para a praia fazer uma partida de futebol americano. Vemos os troncos nus dos protagonistas da nova geração (Miles Teller, de 35 anos, Glen Powell, de 33) e vemos o tronco nu, inacreditavelmente firme e musculado, de Tom Cruise.
Tudo surge cuidadosamente filmado em contraluz, ao final da tarde, não só porque é mais bonito, mas precisamente para proteger Cruise e fazer uma equivalência de virilidade entre a juventude de Teller e Powell, e a figura sem idade de Cruise.
Este não é um aspeto fútil de “Top Gun: Maverick”. É a essência do filme. Sentir que se está num sítio sem idade nem tempo, independentemente da idade de cada um, do tempo em que se viu o primeiro “Top Gun” (se é que se viu). Não há referências temporais, o inimigo não tem pátria nem rosto. “Top Gun” existe num universo em que só existem os Estados Unidos e só os bons têm rosto. E isso, seja em 1986 (em plena Guerra Fria), seja em 2022 (num mundo pós-pandemia e com um conflito armado no leste europeu) é reconfortante.
Atravessamos a segunda Idade do Ouro da Televisão. No advento das plataformas de streaming, o espaço para grandes produções cinematográficas que não estejam associadas a franchises ou aos gigantes do mundo dos super-heróis é quase nulo e a pandemia só veio reduzir essa já curta janela de oportunidade, com os grandes blockbusters a terem estreias quase simultâneas ou com poucas semanas de diferença, nas plataformas de streaming.
Joseph Kosinki, o realizador de “Top Gun: Maverick”, já o disse por diversas vezes, e Tom Cruise surge no preâmbulo do filme, a reiterar a mensagem: este é um filme feito para se ver numa sala de cinema. E é um filme que vai ser visto apenas numa sala de cinema (os estúdios Paramount recusaram propostas milionárias da Netflix e da Apple + para distribuírem o filme), embora depois siga o caminho normal (VOD, DVD, e, mais tarde, televisão).
“Top Gun:Maverick” é um filme realista e “à moda antiga” num tempo em que tudo se cria com o recurso a efeitos visuais digitais. Os aviões são reais, os atores estão mesmo dentro dos aviões (embora não os tenham pilotado, tiveram de aprender a mexer com as câmaras quando estavam dentro dos cockpits), a maior parte das acrobacias aéreas aconteceram realmente.
Até a fotografia do filme, sem aquele banho de pós-produção que transforma os rostos em superfícies enceradas e sem dimensão, transmite um conforto de intemporalidade. Quem tiver a oportunidade de ver o filme em IMAX, há-de reparar como a imagem apresenta um ligeiro grão, como a pele das personagens surge suada, enrugada, poeirenta, maquilhada de tal forma a parecer que não está maquilhada. Mesmo sendo um filme com um orçamento de 142 milhões de euros, parece artesanal, no sentido mais puro da palavra. É um filme feito com pessoas, com objetos, com realidade, sem fantasmagorias digitais (que, embora fantásticas e com potencialidade incomensurável, esvaziam a Sétima Arte de alma).
E, sendo tudo isto, “Top Gun:Maverick” é apenas um filme de ação. Há homens (e uma mulher) a pilotar aviões, há um romance com a cena de sexo mais insípida da história do cinema, e há a vitória dos bons contra os maus. E mesmo sendo “só” um filme de ação (numa altura em que já não há só filmes de ação, sem que a eles esteja acoplada alguma intriga histórico-política real), não é só um filme de ação.
É o papel da vida de Tom Cruise. É a prova física de que Tom Cruise está num outro patamar, numa outra realidade, mesmo dentro de Hollywood. Ele é ‘a’ estrela numa era em que as estrelas se diluem, se misturam com vedetas da televisão e das redes sociais, em que a ânsia de proximidade e acessibilidade transforma divas e galãs em bailarinos do TikTok e partilhadores profissionais de poses e boquinhas do Instagram.
Tom Cruise é intocável, é inalcançável. É um mito porque nada sabemos sobre a sua vida, exceto sobre as suas ligações à igreja da Cientologia, e que foi casado com Nicole Kidman e com Katie Holmes. E no entanto, sentimo-lo próximo. É o efeito da memória e da familiaridade para os que cresceram a vê-lo em filmes como “Cocktail”, “Nascido a 4 de Julho”, “Rain Man” e, mais tarde, “Jerry Maguire”, “Magnolia”, “Relatório Minoritário” e a saga “Missão Impossível” (cujo sétimo filme chegará às salas de cinema em 2023). Quem é Tom Cruise? Não sabemos. Mas será que isso interessa?