Quando o filme começa, já sabemos o que nos espera. E não nos resta outra opção que não passe por ver, impotentes, a violência camuflada por trivialidades a subir de tom e deixando marcas. Umas, físicas. Outras, psicológicas. Em "Amor", a segunda produção da trilogia "Na Porta ao Lado", feita com o apoio da Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV) e com estreia marcada para este sábado, 21 de agosto, na OPTO SIC, o casal composto por Marta (Cláudia Vieira) e Jorge (Marco D'Almeida) beneficia de uma fase de lua de mel de cada vez que Jorge, cujo trabalho o obriga a estar fora durante vários dias, regressa a casa.
No regresso, as saudades matam-se na cama com a certeza de que, mais cedo ou mais tarde, Jorge terá de se ausentar novamente. O ciclo repete-se até que a pandemia põe um travão à normalidade institucionalizada.
Marta, uma tradutora, depressa se apercebe de que o homem com quem casou, agora sem trabalho e confinado, se tornou violento. As agressões que este lhe vai desferindo vão-se banalizando e, no meio dos dois, está uma criança de 10 anos obrigada a crescer com a imagem do pai a bater na mãe numa base diária.
Para preparar a personagem, Cláudia Vieira serviu-se de um contacto indireto com algumas sobreviventes de violência doméstica. "A produtora [Santa Rita Filmes] e a realizadora [Rita Nunes] ouviram alguns relatos através da APAV que, depois, me foram transmitidos para chegar a esta personagem", conta-nos.
"Da segunda vez que se dá um estalo, já não há um pedido de desculpa"
Nesses relatos, recorda, era possível perceber-se como a situação foi evoluindo entre portas, "quais foram os primeiros sinais e quais eram as três emoções principais sempre presentes em qualquer sobrevivente de violência doméstica". A atriz sabe-as de memória: amor, esperança e medo. Sempre o medo.
Mas há mais traços comuns em cada relato que Vieira leu, estudou e tentou transportar para a ficção.
"Há uma sensação de manipulação que não é inicialmente detetada. As vítimas sentem-se isoladas e a violência, física e psicológica, passa também a fazer parte daquele casal. A partir do momento em que há uma primeira agressão física, fica banalizada. Da segunda vez que se dá um estalo, já não há um pedido de desculpa porque só a primeira vez é que é surpreendente e chocante. Depois disso, quase que passa a ser um dado adquirido", lamenta.
"Representar estas cenas e sentir a dor foi um murro no estômago no momento das filmagens. Mexeu muito com a minha energia porque há, de facto, quem esteja, na porta ao lado, a passar por isto sem nós suspeitarmos."
Afinal, continua, "há casais que aparentam ter uma dinâmica saudável", mas que, na verdade, "é doentia, manipulável e altamente agressiva". "Percebi como esta dinâmica leva alguém a ficar sem capacidade de raciocínio e de agência [para denunciar o agressor ou fugir], porque a culpa e a vergonha também são sentimentos muito presentes", enumera.
O único propósito da ficção, seja ela nacional ou internacional, é o de entreter e é para isso, aliás, que é feita e financiada. No entanto, diz Cláudia Vieira, também é importante que preste algum "serviço público", coisa que esta trilogia de filmes tenta fazer.
A ficção tem que entreter, mas pode abraçar causas
Afinal, explica, a "ficção representa a vida", quer "seja através de uma parte imaginativa ou da representação do dia a dia". Logo, e porque a violência doméstica continua a matar em Portugal, "e é uma realidade em muitas casas", a ficção "deve ter esse dever de servir como chamada de atenção".
"Nestes filmes, a mensagem é essa: a da importância de agirmos se sentirmos que algo não está bem dentro de um casal porque pode haver, entre portas, uma incapacidade de agir. Se as pessoas virem estes filmes, talvez se apercebam de que, se calhar, já ouviram gritos na porta ao lado."
Sobre se a ficção nacional tem receio de abraçar causas, a atriz sugere outra explicação.
"Talvez esteja mais presente o objetivo de entreter e servir a sua característica principal. E, regra geral, não queremos ser entretidos com coisas agressivas. Mas às vezes esse abrir de olhos, esse acordar para uma realidade e abraçar uma causa, é fundamental, e a ficção deve muito ter esse papel", diz.
Filmado na última semana de maio, ao longo de nove dias e "em contrarrelógio", Cláudia Vieira recorda a tensão palpável em estúdio mesmo quando as câmaras já não estavam ligadas. "Foi das personagens que mais dificuldades tive em deixar assim que havia um corte", explica, porque as cenas de violência "levavam a um desespero".
"Senti que, neste filme, fui a zonas negras e duras, mas não sei se aquilo era exatamente aquilo que tínhamos pensado em fazer. Há sempre esta dúvida, mesmo depois de estar feito"
"Senti-me triste durante alguns dias e mexeu muito com a minha energia. Sempre fui muito comunicadora com a equipa e se é verdade que, inicialmente, durante os ensaios, achei interessante estar mais no meu canto para chegar àquela personagem, ao final do segundo dia s queria ao máximo sair daquele sentimento de vazio angustiante."
"Fui a uma zona escura em mim para dar verdade a esta personagem. A uma zona negra. Fiquei muito ansiosa porque o medo era palpável. Uma vítima de violência doméstica tem um medo constante e é isso que a faz ficar refém. O medo paralisa."
Em 2019, Cláudia Vieira, fazendo uma retrospetiva sobre a sua carreira até então, dizia que "às vezes, o público não nos [referindo-se aos atores] critica diretamente, mas nós sabemos quando passamos por uma cena de uma forma mais superficial", acrescentando ter-se posto em causa por diversas vezes, em entrevista à revista "Máxima".
Cerca de dois anos depois, a sensação reforçou-se quando confrontada com a ideia de dar corpo à personagem neste filme. "Sempre que iniciamos uma cena que sabemos ter um determinado grau de densidade, pomos em causa se vamos conseguir ou não. É sempre uma incerteza porque não depende só de nós", explica à MAGG.
"Já fiz cenas em que senti não ter chegado onde queria chegar, e saí frustrada nesse dia de trabalho, mas quando as vi estavam incríveis. Mas também aconteceu o contrário. É sempre relativo, mas a dúvida é gigante. Eu própria não sei. Senti que, neste filme, fui a zonas negras e duras, mas não sei se aquilo era exatamente aquilo que tínhamos pensado em fazer. Há sempre esta dúvida, mesmo depois de estar feito", diz.
Apresentadora e atriz: intercalando os dois registos
"Amor", o segundo desta trilogia de filmes, é o primeiro projeto de ficção de Cláudia Vieira desde 2018, altura em que esteve no ar através da novela "Alma e Coração", da SIC.
A sua carreira, no entanto, tem vindo a ser intercalada com a apresentação de formatos tão diferentes como "Ídolos" (entre 2009 e 2012) ou, mais recentemente, "Regresso ao Futuro", que apresentou com João Manzarra. A atriz teve ainda passagens pontuais por "Casa Feliz" e "Estamos em Casa".
Sobre se a ideia será regressar à ficção a tempo inteiro ou continuar a balançar entre os dois registos, Cláudia Vieira admite o prazer e o privilégio de poder continuar a alternar. "A apresentação tem um efeito muito interessante em mim porque, aí, somos nós a sermos nós próprios. Gosto muito do contacto com a apresentação, mas talvez seja desinteressante, para um ator, ter tanta proximidade com público que a apresentação promove", diz.
É que para um ator, continua, "como veste várias capas e tem esse lado enigmático e de construção", talvez lhe interesse não mostrar-se tal como é ao público que o segue. Esse distanciamento, no entanto, é cada vez mais reduzido devido ao impacto e à adesão às redes sociais.
"É um prazer poder ir alternando entre a apresentação e a ficção e tenho muito a evoluir e coisas novas para fazer em registos diferentes. Ir alternando agrada-me bastante, mas talvez não seja interessante para a Cláudia atriz. Mas para mim, pessoalmente, é muito bom."