Depois de 20 anos na SIC, Joaquim Franco, 53 anos, mudou-se para a TVI no início de janeiro para assumir a coordenação da equipa de Grande Reportagem do canal, mas também a posição de subeditor de Sociedade. Quem lhe acompanha o percurso, não estranha. Ainda que ligado ao estudo e à descodificação da fenomenologia religiosa (com vários reportagens, documentários — um deles sobre João Paulo II, que lhe valeu a Menção Honrosa Impresa, em 2005, — e livros publicados, o mais recente sobre o Papa Francisco, escrito com António Marujo), pensar em religião é pensar, acima de tudo, no Homem e na sua natureza, tal como explica em entrevista à MAGG.
E embora considere que a pandemia obrigou a Igreja a reinventar-se na sua comunicação — acentuada até pela comunicação do próprio Papa Francisco, que surge de forma muito simples e sem soberba —, argumenta que cabe ao jornalismo mostrar a "diversidade religiosa" que, apesar de existir em grande escala, muitas vezes está silenciada. O pretexto para a conversa, no entanto, é a mais recente série de reportagens "Vai Dar Uma Curva" que, fazendo parte do "Jornal das 8" e estreada a 5 de julho, tem como objetivo mostrar um País esquecido pelos roteiros turísticos — descrição que prefere à de "descobrir um País desconhecido".
"Com maior ou menor densidade populacional, mais ou menos desabitado, temos um Portugal integralmente ocupado. Pode ser desconhecido para algumas pessoas, mas talvez seja uma ofensa para as pessoas que vivem em determinadas zonas ouvir que aqueles locais são desconhecidos", explica.
A religião, a fé, o conflito (que diz não existir) entre Joaquim, homem de fé, e Joaquim, o jornalista, e a maneira de fazer televisão procurando forma de atrair novos públicos.
Foi assim a conversa com Joaquim Franco.
"Vai Dar Uma Curva" é um nome curioso.
A ideia inicial foi a de partir pelo País, nas circunstâncias em que o País está, mas tentar mostrá-lo de outra forma. Na sequência da pandemia, descobrimos que Portugal tem outros caminhos e outros horizontes.
De repente, começámos a ver uma grande solicitação do interior, os turismos rurais a serem ocupados, coisa que não acontecia. Há um País a redescobrir.
E a ideia era revisitá-lo?
Não só o País óbvio, mas também o menos óbvio. Juntei-me com o repórter de imagem Ricardo Silva, com o editor de imagem Miguel Freitas e com a produtora Ana Gouveia e fomos pensando a melhor forma de o abordar. E uma das ideias foi mesmo essa: por que não ir pelas estradas menos óbvias? Pelas curvas, lá está. Por que não deixarmos as vias rápidas e partirmos para as estradas das curvas?
Para as estradas secundárias, no fundo, com o objetivo de perceber o que elas nos revelam. Fomos disponíveis para a novidade e para a surpresa de um percurso. Começámos por desenhar oito programas com estradas de curvas através das quais pudéssemos ir ao encontro de um País que, enquanto jornalistas, fomos conhecendo, mas na verdade não conhecemos muito bem. Mas talvez o termo "País menos conhecido" não seja correto. Porque não há um País desconhecido. Com maior ou menor densidade populacional, mais ou menos desabitado, temos um Portugal integralmente ocupado. Pode ser desconhecido para algumas pessoas, mas talvez seja uma ofensa para as pessoas que vivem em determinadas zonas ouvir que aqueles locais são desconhecidos.
Aquilo que fizemos foi ir à procura de um País esquecido dos grandes roteiros turísticos.
A reportagem pelo País como forma de sair "da bolha"
Arrisco fazer um paralelismo entre duas ideias. Há uma tendência no jornalismo em esquecer-se daquilo que é o País real e as preocupações reais das pessoas que nele vivem. E também se cai no erro de achar que Portugal é Lisboa. Estas reportagens contrariam essas duas ideias?
Curiosamente, esta série de reportagens é feita com uma equipa em que o jornalista sai de Lisboa e o repórter de imagem sai do Porto. Até aí há uma certa descentralização. Propositadamente, não percorremos estradas do litoral, mas sim as do interior. Não só porque no portfólio de reportagens que a TVI vai transmitir este verão vamos ter várias dedicadas ao mar e à orla, mas também porque tivemos esse apelo de um País no interior que perdura, apesar de um certo esquecimento urbano.
Mas sim, foi contrariar essas duas ideias partindo à redescoberta de um País que, não sendo desconhecido, estava parcialmente esquecido pelas Lisboas e pelos Portos desta vida.
Nessa altura em que a equipa se põe dentro do carro e parte à redescoberta, havia caminhos mais ou menos pensados ou houve total aleatoriedade?
Foi um misto. Juntámo-nos e definimos oito percursos que podiam ser estradas específicas, uma única estrada ou estradas que, ligadas entre si, criam um percurso lógico.
Mas não era só isso que interessava
Mas sim as pessoas?
Antes delas, as possibilidades de saída que cada uma dessas estradas dava. Os trilhos, os espaços, toda a envolvência de uma estrada. Claro que alguns percursos foram criados com base em algumas estradas que já conhecíamos, até por uma questão de segurança, mas noutros percursos foi totalmente desconhecido. Nunca tinha percorrido as serras de Fafe por onde passa o Rali, por exemplo, por isso decidimos ir por aí — percorrendo as estradas do Rali, mas sem Rali. Pensávamos que íamos encontrar tudo deserto, mas há uma componente humana surpreendente, desde comermos a truta que apanhámos ou conhecer uma senhora que, sempre que há Rali, se senta no mesmo calhau para acompanhar a corrida.
Fomos ao encontro dela, pusemo-la no mesmo calhau onde foi fotografada há uns tempos por um fotojornalista e ouvimo-la. Foi muito divertido.
Nas estradas que percorreram e nas pessoas que encontraram, há traços comuns que as caracterizam?
Cada estrada tem uma história e cada pessoa que encontrámos tem o seu próprio mistério. Com quem falámos nas serras do Algarve, sentimos uma alma diferente daquela pessoa que encontrámos em Miranda do Corvo, mas há um traço que é comum. Notámos, e isso foi, para nós, muito evidente, a tremenda vontade de as pessoas falarem, de acolherem outras pessoas, de serem recetivas.
Talvez devido à pandemia, que obrigou à distância?
Julgo que sim. Há uma vontade tremenda de as pessoas acolherem, de estarem disponíveis para ajudarem e ouvirem a típica pergunta: "Onde é que fica isto?" e responder, dando indicações. Não mostramos na reportagem, mas esses momentos, que ficam na intimidade dos repórteres, existiram.
Sentimos um País com uma vontade imensa de tirar a máscara, metaforicamente falando.
Dando, também, visibilidade a pessoas que, por não fazerem parte da bolha que é Lisboa, não são representadas em meios como a televisão.
Sim. Em certa medida, foi tal e qual como se tivéssemos saído da bolha quando partimos para a reportagem. As reportagens são pequenos slots de cerca de 12 minutos que, na verdade, correspondem a percurso de 20 ou 80 quilómetros. São sempre muito curtas em duração.
O que se vê são flashes de um caminho percorrido, mas a nossa preocupação foi sempre, independentemente do tempo de duração, deixar a marca humana do anónimo que nos impressionou e emocionou. E essa pessoa que nos acolhe — e é sempre diferente a cada reportagem — é o coração da peça. Fizemos a reportagem partindo de duas posições: enquanto jornalistas e viajantes. E porque um viajante nunca fica sempre no mesmo sítio, seguimos esse propósito de nunca estar parados, mas assumindo também a posição de repórter para falar mais tempo com as pessoas que fomos conhecendo.
Acompanhamos, jornalistas e espectadores, as transferências televisivas com algum interesse e curiosidade. Para os jornalistas e figuras que as protagonizam, há essa curiosidade em saber quem saiu e entrou ou é tudo mais desinteressante e rotineiro visto que saiu da SIC para a TVI em dezembro?
Para mim não é rotineiro porque sou muito conservador nesse aspeto [risos]. Este é o quarto local de trabalho em mais de 30 anos de profissão. Sou um saudavelmente acomodado e adaptado aos locais em que me encontro. Mas foi uma surpresa sair da SIC para a TVI. Estava há 20 anos na SIC... 20 anos numa casa é muito tempo. Não estava propriamente descontente, mas, com 53 anos de idade, pensava que dez anos depois estaria na pré-reforma e que, daqui a pouco tempo, estaria com as pantufas calçadas, como se costuma dizer.
De repente, e para a minha surpresa, é-me formulado este convite irrecusável para assumir a responsabilidade de trabalhar a grande e a média reportagem, os programas não-diários e dar um contributo nas opções editoriais. O desafio tem sido altamente aliciante porque é uma casa, em muitos aspetos, nova, com pessoas, métodos de trabalho e pensamentos editoriais diferentes.
Vim de uma outra escola, mas todos somos jornalistas e temos isso — o jornalismo sério — como parte de nós.
Talvez esteja errado, mas tenho a ideia de que será pouco comum haver jornalistas de televisão a transitar para a imprensa escrita. Depois de 20 anos na SIC, permanecer em televisão era o que queria?
Saindo da televisão, só me imaginaria na rádio. A minha matriz é radiofónica, embora já tenha mais anos de televisão do que de rádio. Mas continuo a dizer que os anos que mais me marcaram profissionalmente, foram os anos da rádio. Mas isto, claro, sem prejuízo de aventurar-me na imprensa escrita onde, por vezes, tenho os meus contributos. Quando estava na SIC, escrevia muitas vezes para o "Expresso" e, sobretudo, para a revista, replicando alguns grandes trabalhos que fazia na SIC.
Mas imagino-me a trabalhar na televisão e a redescobrir novas facetas possíveis em televisão. Diz-se que na televisão está tudo inventado, mas não acredito muito nisso. Reconheço, sim, que é muito difícil redescobrir ou inventar televisão, mas ainda acredito que seja possível, seja pela linguagem, abordagem ou pelos temas. Ainda é possível fazer novo e renovar. Não consigo acomodar-me a métodos de trabalho neste meio porque sinto essa necessidade de romper a bolha, sair e experimentar. Se há coisa que aprendi na rádio e reaprendi na televisão, foi esse lado experimental, de não ter medo de correr riscos. Nessa medida, esta série de reportagens não é nada de particularmente novo ou revolucionário, mas é uma tentativa de refrescar algo que já muitas vezes se contou — como o País — mas de maneira diferente.
Isto para dizer que tinha de continuar em televisão, mas não numa televisão acomodada, mas sim numa que ousa experimentar.
A televisão tem de respeitar convenções muito específicas. Há espaço para experimentar?
Há. Muito à boleia de plataformas como a Netflix que vão incentivando novas formas de descoberta documental, de cinema e, até, de jornalismo. Porque muitas das produções que vemos nessas plataformas são experiências, de certa medida, inspiradas numa certa forma de se fazer jornalismo — de estar num local e contar histórias.
Isso é a prova provada de que é possível fazer novo ou redescobrir. Sabe-se que, hoje em dia, as pessoas veem televisão de forma diferente e estou investido nessa ideia de procurar formas e fórmulas de ir ao encontro daquilo que é o novo público. Percebi, assim que cheguei à TVI, que toda a equipa — assim como na SIC — é composta por gente empenhada em redescobrir novos caminhos para chegar a estes novos públicos. Mas desconfio sempre dos detentores da verdade, porque não somos. Muito menos, de verdades absolutas neste meio. Há que experimentar e, depois, confiar que os públicos consigam separar o trigo do joio. Mas há que experimentar, sempre dentro dos limites da ética e da deontologia. Nisso, sou completamente inflexível e evito as derivas.
O exacerbar da emoções para isco "de público fácil" em televisão
Que tipo de derivas?
No nosso meio, é muito fácil a deriva do abuso das emoções. É uma fórmula, aliás, muito utilizada e está mais do que explorada: o uso exacerbado das emoções como isco para o público fácil. Gostava de, em certa medida, ser mais exigente no trabalho que oferecemos até para que o nosso público seja mais exigente na escolha.
Tem de ser por aí, creio. A grande componente da sedução televisiva está na emoção, mas temos de pôr a parte racional a trabalhar no jornalismo. É o nosso dever ético e deontológico e essa é uma procura que tenho feito.
A expressão não é sua, mas vou usá-la. Esta exploração da emoção sempre foi uma tendência ou é possível traçar um marco na história do jornalismo que permita explicar quando e por que se tornou tendência?
O espanto é uma âncora para cativar atenções e vem dos tempos bíblicos. Todas as narrativas religiosas cavalgam em cima da dimensão do espanto, daquilo que é gerador de emoções. Faz parte da natureza humana.
O século XX trouxe o exacerbar do espanto e da emoção através da linguagem cinematográfica e da imagem. Desmistificou-se o espanto escrito, narrado e oral, transformando-o em emoção visual. Em certa medida, a linguagem visual é uma linguagem emotiva porque mexe com as estranhas da emoção. Mas é difícil encontrar a origem do espanto e da emoção como ferramenta de comunicação.
Porque está lá desde sempre?
Exato, faz parte da nossa natureza. Todos sabemos que temos essa ambivalência de sermos racionais e emotivos, construindo os nossos modelos relacionais, do ponto de vista comunicacional, em cima desses dois paradigmas. O que me parece é que estamos num momento comunicacional que exige alguma reeducação, não só por parte daqueles que são deontologicamente responsáveis pela comunicação, nomeadamente os jornalistas, mas também por parte dos consumidores. Vivemos num momento exacerbado nas emoções, e até de alguma irracionalidade. Por isso, é importante que se recupere esse lado mais racional e positivo da nossa natureza. Nós, jornalistas, temos uma grande responsabilidade nisso. Sinto-me muito responsável e dói-me muito quando vejo, e eu próprio caio nessa tentação, que propositadamente se usa e abusa dessa deriva da emoção apenas com intuitos de [gerar] audiências, de criação fácil de influência.
Dói-me porque a interpretação que faço do meu código deontológico está nos antípodas dessas opções. Mas isso só me compromete a mim.
No currículo, tem várias reportagens na área da sociedade e, por isso, talvez esta transição para a TVI não seja uma mudança de paradigma assim tão grande na sua carreira. Apesar de estar associado à investigação de fenómenos religiosos, também isso é falar da sociedade, ou não?
Obviamente. O estudo do fenómeno religioso é inevitável para compreender a natureza humana. Não posso dizê-lo de outra forma. Será mais para uns mais do que para outros, mas está lá. Desde o momento em que acordamos até ao momento em que adormecemos, temos, durante todo o dia, comportamentos que, consciente ou inconscientemente, têm muito do que é a natureza religiosa, espiritual ou de procura, que compõe toda a cultura humana e comportamental. Desde a opção do local onde compramos o pão, o tipo de pão que compramos, a alimentação que adotamos, a forma como falamos, às vezes até os gostos musicais e opções clubísticas, as opções políticas...
Tudo tem um pouco de fenomenologia religiosa e merece o tratamento jornalístico que merece a economia, o desporto e a política. Qual é o drama, aqui? É que há, por vezes, um grande distanciamento entre a linguagem dos protagonistas religiosos e a necessidade de uma linguagem mais simples que é própria da velocidade mediática. O meu papel enquanto jornalista que, na sua formação académica e humana tem a preocupação com o fenómeno religioso e a fenomenologia religiosa, é o da descodificação. No fundo, é isso que faz um especialista em economia, desporto e política.
Excluir a comunicação religiosa da comunicação é recusar à compreensão do Homem algo que é inevitável à sua própria compreensão.
"A relação do Joaquim de fé com o Joaquim jornalista não é tensa"
Mas vivemos em tempos secularizados.
É óbvio. A secularização tomou conta, e ainda bem, do mundo mediático. Faz todo o sentido que assim seja. Neste mundo secularizado, a exigência aos fenómenos religiosos de se dizerem é maior. Implica outro tipo de jogos comunicacionais, outro tipo de abordagens, de aproximações, de cedências ao mundo... Mas isso é uma responsabilidade dos protagonistas religiosos e não dos jornalistas. A nós só nos compete o papel da descodificação nestes tempos secularizados.
Mas parece-me inevitável que o fenómeno religioso tenha o mesmo tratamento como qualquer outra componente da vida. Se não for assim, não estamos a dizer o Homem como ele é na íntegra.
Mas é acertado dizer que há poucos jornalistas especializados em fenómenos religiosos?
Não só é acertado, como é um facto.
É porque há menos leitores?
Talvez tenha que ver com duas razões. A primeira é que há, de facto, um afastamento da dimensão religiosa provocada pela secularização. Por isso, haverá menos gente disponível para o tratamento jornalístico associado ao tema. Esta secularização da sociedade também remete a experiência religiosa para o íntimo e para o privado e menos para o público, embora ainda haja a experiência religiosa dita publicamente em grandes massas e em grandes eventos. Por outro lado, haverá também um certo preconceito para o fenómeno religioso. E digo isto com experiência.
Fala de um preconceito dentro da profissão?
Vejo muito, entre os meus pares, algum preconceito em relação ao fenómeno religioso porque se olha para ele pela bitola da linguagem confessional. Algo do género: "Se vais acompanhar o fenómeno religioso, é porque és católico ou protestante". Mas porquê? Quem faz desporto, tem de ser de um clube? Ou deixar de ser de um para poder acompanhar o meio? Tenho de abdicar da minha sensibilidade política para abordar o meio político? Tenho de abdicar da minha sensibilidade religiosa para começar a escrever sobre religião?
O cerne, aqui, está num aspeto que para mim é fulcral e quase sagrado, para usar aqui uma linguagem religiosa [risos], que é o exercício do distanciamento crítico. Independentemente de ter fé ou não, de ter clube ou não, sou obrigado, ética e deontologicamente, ao exercício do distanciamento crítico em relação ao objeto que estou a trabalhar. E o que me parece é que, entre os nossos pares, quando se fala na religião não se pensa que possa ser um fenómeno tratado com esse distanciamento. O respeito deontológico pelo fenómeno religioso é, em primeiro lugar, o respeito deontológico por pessoas. Porque o fenómeno é, sobretudo, sobre experiências. Falar da religião é falar não só indizível, mas sobretudo da experiência — do indizível que se diz pela experiência humana.
Parece que, em Portugal, o jornalismo dito sério é o que aborda a política. Por oposição, temos o de entretenimento, não raras vezes olhado com desdém. Nesta hierarquia de relevância e importância, onde entra o jornalismo de fenómenos religiosos?
Para simplificar uma resposta, diria que o jornalismo associado a fenómenos religiosos entra numa dinâmica muito alargada das editorias de sociedade. Mas se quisermos ver bem as coisas, temos o pensamento religioso presente na prática desportiva, no exercício político, na economia e a cultura (e de que maneira). Nas artes, nos espetáculos, a iconografia da religião está lá. Portanto, diria que a fenomenologia religiosa é transversal. Mas se quiséssemos simplificar, e na TVI fez-se isso, estará mais aconchegada, digamos assim, numa editoria de sociedade.
Não é por acaso que, quando cheguei à TVI, uma das sugestões que fiz e que foi devidamente acolhida foi, sendo subeditor de sociedade, criar uma área de interesse com outras áreas a que chamámos Cidadania e Religião. Sou subeditor de Sociedade com essa editoria, como há a da Justiça, da Educação ou a das Ciência. Não é por acaso que juntamos a cidadania à religião, porque a experiência da religião é um exercício de cidadania.
Um jornalista que acompanhe fenómenos religiosos arrisca-se a perder a fé, a vê-la reforçada ou pôr as coisas nestes termos é muito simplista?
Não é simplista, mas é uma pergunta diabólica [risos].
Porquê?
Porque dentro dessa, está intrínseca uma outra que é: "O Joaquim é um homem de fé?". Está misteriosamente escondida [risos], mas sim, sou. Desde criança que fui educado num contexto de fé e não tenho problemas em dizer que sou um homem de fé. Mas a relação do Joaquim de fé com o Joaquim jornalista não é tensa. Porque o importante aqui, e voltando às ideias anteriores, é essa capacidade quase implacável de ser fiel ao exercício do distanciamento crítico.
As águas estão muito bem separadas. Sou muito exigente no seguimento do código que orienta a minha profissão. Se, porventura, houver um dia em que uma qualquer dimensão em que o Joaquim da fé comprometa o Joaquim jornalista, o Joaquim não aborda esse tema.
Alguma vez aconteceu?
Até hoje, nunca tive esse problema. Sempre soube distinguir bem as águas, ao ponto de algumas pessoas que me conhecem, e pessoas de fé, quase que me dizerem coisas como: "Como é que é possível dizeres ou escreveres isso?". Desculpem-me, mas o meu código profissional é muito claro em relação a isso. E, portanto, há aqui duas dimensões muito curiosas que não colidem. E até se complementam. É que qualquer dimensão religiosa tem de imediato um pressuposto, que é o das verdades. Embora alguns conceitos religiosos reivindiquem para si uma verdade absoluta, prefiro falar no plural.
Nós, jornalistas, também somos chamados ao exercício da procura da verdade também. Procurar verdade é não deixar ponta solta, sabendo, de antemão, que a verdade absoluta é uma utopia até no exercício jornalístico. Não me sinto melindrado enquanto homem de fé que acompanha o fenómeno religioso, da mesma medida que o jornalista não melindra o homem de fé. São dois patamares distintos.
À medida que foi acompanhando o fenómeno e escrevendo sobre ele, inclusive em livros publicados, que traço faz de Portugal e da forma como pensa na religião?
Diria que é um País muito condicionado por alguns paradigmas mediáticos do fenómeno religioso em Portugal. Fala-se de Igreja e aponta-se para Fátima. Fala-se de devoção e aponta-se para Fátima. Fala-se de fundamentalismo e aponta-se para as experiências de grupos religiosos mais fundamentalistas. Há uma série de conceitos e, até, de preconceitos, que condicionam a forma de ver o fenómeno religioso em Portugal e também isso tem de ser desmontado. A religião em Portugal não é só Fátima, ainda que Fátima tenha um peso tremendo para o fenómeno religioso em Portugal. Para sermos honestos com a realidade e com a vastíssima experiência religiosa no País, há todo um trabalho que o jornalista também tem de fazer para que essa pluralidade e diversidade da experiência religiosa seja mais conhecida.
Isso não quer dizer que tenhamos de excluir aquilo que é óbvio. Ou seja, fenómenos de massa e de maior contágio emotivo são inevitáveis. Temos de estar lá. Não é por acaso que todos os 13 de maio e 13 de outubro o País mediático está em Fátima, porque, de facto, há uma atenção e emoção religiosa que faz parte da experiência religiosa e, porque não dizê-lo, também da identidade de Portugal, que se concentra nesse local. E também não é por acaso que, por vezes, os jornalistas a acompanhar as peregrinações perguntam aos protagonistas eclesiásticos e aos peregrinos o que é que pensam do Benfica, por exemplo, Há reportagens paralelas que se fazem à volta de Fátima e isso é interessante.
Em que sentido?
Porque tem-se essa ideia de que Fátima já está para lá de um fenómeno religioso, sendo quase como uma identidade nacional que está ali, à qual é legítimo ir e falar sobre outras coisas completamente à margem da própria motivação que leva as pessoas a irem lá. E isso nem sempre se vê noutras dimensões. Não vamos a um congresso político perguntar coisas sobre o Benfica. No entanto, se o Benfica for campeão na véspera, é muito provável que alguém da redação peça ao jornalista que está em Fátima para perguntar aos peregrinos o que é que eles acham sobre a vitória do campeonato.
Isto é perigoso dizê-lo, mas tem-se essa ideia de que Fátima é já uma montra do País onde é legítimo falar com as pessoas sobre tudo. Mas a experiência religiosa é muito mais diversificada, mesmo dentro da igreja católica. E essa, em certa medida, ainda está silenciada. Esse é um desafio que os jornalismos têm, o de mostrar essa diversidade religiosa naquilo que ela representa de importância para as pessoas que as vivem. E não são assim tão poucas como o silenciamento jornalístico dá a entender.
"O Papa Ratzinger, por exemplo, dizia que a igreja tinha de ter um papel quase de reeducação da comunicação social"
Trazer assuntos do quotidiano para Fátima é não delimitar aquelas pessoas apenas à expressão da fé?
Precisamente. O peregrino que vai a Fátima não deixa de ser a pessoa que é, com tudo o que a levou até lá, só porque foi. Quando vou em reportagem a Fátima em agosto, nas peregrinações do 12 e 13 dedicadas aos migrantes que, por isso, têm muitos imigrantes, obviamente que medimos o pulso à imigração portuguesa. Não é só a expressão de fé que os leva lá. É aquela ideia do "tem de cá vir", como se Fátima fizesse parte das suas identidades. Para os portugueses da diáspora, estes símbolos de identidade são muito importantes porque servem como pontes emotivas que fazem com que não se perca a raiz. Mas quando estão lá, não deixam de ser imigrantes com as suas apreensões de quando estão fora.
E faço sempre reportagens deliciosas em que, com meia dúzia de testemunhos, conseguimos perceber como vai o pulsar do imigrante no regresso ao seu País. Mas a ideia é essa: os peregrinos de Fátima não deixam de ser as pessoas que são só por serem peregrinos. Por isso, em Fátima também falam das suas próprias vidas para lá das motivações que as levaram até lá.
De que forma é que a Igreja, enquanto instituição, se reinventou durante a pandemia e qual o papel do Papa Francisco nessa mudança? Se é que houve.
Essa pergunta dava para um congresso. A igreja está num processo de reinvenção como resposta às exigências comunicacionais e é fácil perceber porquê. A igreja católica, como outras estruturas semelhantes, tem, por si só, uma dinâmica conservadora. É a expressão mais clean do termo, porque tem uma doutrina e um modus operandi fixados.
Estas novas exigências carecem agora de uma adaptação. A sabedoria da experiência conservadora exige a ponderação antes da resposta e é natural que estruturas como a igreja tenham de ponderar como é que se adaptam a estes tempos de outra exigência comunicacional.
Mas está a haver essa adaptação?
Está. Mas há gente na Igreja que ainda olha para a comunicação social — e esta é outra parte do problema — não como um mundo no qual a Igreja deve estar de igual para igual com outros protagonistas, mas com um sentido de oportunidade de fazer desse órgão de comunicação social mais um púlpito. São duas dimensões diferentes de estar na comunicação. Diria que esse é o passo que a Igreja ainda tem de dar.
Como concretiza isso?
Percebendo que o mundo comunicacional não é só uma oportunidade de a Igreja se dizer como é, transmitindo a sua mensagem e aquilo que ela transporta e doutrina, mas um meio onde tem de estar e de se dizer de igual para igual.
Mas o que é isso de estar de igual para igual?
É saber que a sua verdade tem de ser vista em pé de igualdade com outras verdades. Este é o salto que tem de ser dado. Em certa medida, e de forma muita inadvertida, porque este Papa não era um homem muito disponível para a comunicação, Francisco acabou por surpreender pela sua simplicidade. Na sua forma simples de ser e de estar, o Papa Francisco não tem feito outra coisa que não comunicar de igual para igual com as suas ferramentas e os seus instrumentos, que são o evangelho e a sua cultura religiosa. Não está de soberba, portanto. Apresenta-se de igual para igual.
Se lembrarmos a forma como os documentos comunicacionais evoluíram de Papa para Papa, vemos essa evolução. O Papa Ratzinger, por exemplo, dizia que a igreja tinha de ter um papel quase de reeducação da comunicação social. Isto mostrava a forma pessimista como olhava para o meio. Mas isso evoluiu para um Papa Francisco que, agora, coloca a igreja como um ator num meio comunicacional com outros atores em que a igreja tem de estar. Afirmando-se como é, mas em pé de igualdade. Este passo ainda não terá sido devidamente compreendido pela estrutura eclesiástica e isto explica o resto.
Volto à minha pergunta inicial. A pandemia fez mudar alguma coisa?
Sim. Na base, a Igreja teve de reinventar-se porque a experiência religiosa é muito forte e quem a vive, vive-a como algo que entende ser inevitável na sua vida. Tem de ser e já não se compreende sem ela. Na ausência da experiência presencial, houve a necessidade de reequacionar e redescobrir outras formas de presença para que essa ligação e esse contacto com essa estrutura de pertença, que é a comunidade, se mantivesse. E houve experiências novas que deram à igreja novas experiências, obrigando-a a repensar-se.
Alguns membros do clero discordaram de mim quando falei disto em alguns fóruns para os quais tinha sido convidado. Do ponto de vista da doutrina, considera-se inquestionável que a celebração eucarística, a missa, seja vivida presencialmente. Se não for presencialmente, o mistério assente nessa experiência deixa de existir. Tendo havido limitação à presença física, muitas comunidades reinventaram-se para permanecer nessa celebração, fazendo-a à distância. Não estamos a falar das missas transmitidas pela televisão, em que aí há, de facto, uma ligação anónima entre a celebração religião e quem a vive.
Com a pandemia, as comunidades locais mantiveram-se unidas e esse espírito de presença manteve-se com as celebrações organizadas via digital.
Esbateu-se a barreira da experiência anónima via televisão.
E a pergunta que faço é: essa experiência eucarística, reinventada agora em tempos de pandemia, não tem o mesmo valor do que a experiência presencial? É que as pessoas reconstruíram essa ideia de pertença e esse espírito de comunidade porque mantiveram-se juntas enquanto viam a celebração no Facebook, por exemplo.
É uma pergunta difícil de se fazer neste momento, porque obriga a uma reflexão tremenda na igreja em reconhecer, ou não, que o mistério eucarístico também se pode viver à distância. É um novo desafio. Não só para a igreja, mas para todas as estruturas religiosas. Chamo atenção para este ponto: as comunidades de Testemunhas de Jeová ainda hoje não têm encontros presenciais em Portugal e recuperaram uma coesão e um espírito de pertença tremendo. Dizem-me que houve novas adesões, mas fizeram essa redescoberta através dos métodos digitais, o que levou a que os próprios membros daquele grupo religioso fossem à procura, lessem mais, estudassem mais e redescobrissem outras responsabilidades.