Esta sexta-feira, 24 de maio, Villas-Boas vai até ao Festival de Cannes. Não, não estamos a falar do novo presidente do Futebol Clube do Porto, mas do irmão, João Villas-Boas, de 41 anos. Sim, porque se é pelo futebol que o mais velho, de 46 anos, é conhecido, é na área da representação que o mais jovem dá cartas e se destaca.

O artista vai estar no certame de cinema para a apresentação do projeto "Mau Por Um Momento", de Daniel Soares, que foi selecionado para a competição oficial de curtas-metragens da 77.ª edição do festival. "O dono de um atelier de arquitetura participa com a sua equipa num team-building. O evento corre mal e o arquiteto é confrontado com a realidade do bairro social que estão a gentrificar", lê-se na sinopse.

João Villas-Boas é a personagem principal deste filme, o que faz com que se estreie no Festival de Cannes enquanto protagonista. Contudo, não é a primeira vez que pica o ponto neste evento, uma vez que já lá tinha estado, em 2022, para a estreia mundial de "Fogo-Fátuo". Da autoria de João Pedro Rodrigues, trata-se de uma comédia erótica em forma de musical com foco nas temáticas LGBTQIA+, as alterações climáticas e o estado atual de Portugal.

Com um currículo extenso, assente numa carreira de década e meia, João Villas-Boas já fez teatro, cinema e televisão. Embora, hoje em dia, esteja convicto de que esta é a sua praia, houve tempos em que se sentiu um peixe fora de água. Não só porque chegou a estudar psicologia em Coimbra, área que acabou por descartar depois de dar as primeiras braçadas na representação, em 2005, mas porque lutava contra algo que, em tempos, condicionou a forma como se apresentava em sociedade: a homossexualidade.

À distância de um ecrã e dias antes de rumar até território francês, a MAGG teve oportunidade de falar com o artista sobre novos e velhos projetos, mas não só. Da homossexualidade que agora se recusa a esconder ao orgulho que sente em relação à nova fase de vida do irmão, passando pelas dificuldades que ser ator acarreta, obrigando-o a trabalhar num bar, leia a entrevista na íntegra.

É uma realização pessoal ajudar a trilhar um caminho para o cinema português além-fronteiras? 

Sim, sempre foi. Acho que, pelo menos para mim, o meu percurso na representação sempre esteve ligado ao cinema, era o sítio onde eu escapava dos meus problemas. Portanto, ver agora esses passos que foram dados a começarem a dar outro tipo de frutos é sempre muito excitante, traz sempre alguma alegria.

E sente que, ao mesmo tempo, é um peso? Ou não o encara dessa forma?

Não, pelo menos para já, não sinto esse peso, também porque, apesar de eu ter trabalhado muito perto com o Daniel a dada altura na parte da representação, de alguma forma a curta é dele. Eu estou a fazer o meu trabalho dentro do que é o projeto dele e o pensamento dele sobre este projeto. Há o peso enquanto eu estou ali a fazer isso e ao qual eu me aplico com veemência, mas, depois disso, de alguma forma, fica do lado dele e do lado de quem edita, porque eu acho que o cinema também tem isso. O peso que eu possa sentir começa a ser em projetos que são meus e que eu começo a desenvolver e aí acho que pode ser diferente.

Em que sentido?

Por exemplo, eu ganhei um fundo para escrever uma longa e o peso, nesse sentido, é diferente, porque a ideia é minha, eu estou a trabalhar com outras duas pessoas – com a Inês Garcia Marques e o Vasco Viana. Portanto, de alguma forma aí sinto que o peso é maior.

Sei que os atores têm sempre de acreditar num projeto para o aceitarem, mas imaginou que alguma vez isto pudesse acontecer com "Mau Por Um Momento"? Quando aceitou fazer parte do projeto, achou que pudesse ter esta repercussão toda?

Não. Eu estava em Nova Iorque, no ano passado, quando conversei pela primeira vez com o Daniel sobre este projeto e aquilo que senti foi a vontade de querer trabalhar com ele. Havia algo na forma de ele estar que me agradou imediatamente e, depois das conversas que fomos tendo para preparar isto, sempre me senti acarinhado, respeitado, ouvido. Não há esse pensamento de 'até onde é que isto vai?'. Há só vontade de 'não, quero fazer um bom trabalho', e ainda por cima com alguém que confia totalmente em mim e que está a pôr a sua ideia nas minhas mãos também, dá-me mais vontade ainda de aplicar.

E já estava familiarizado com o trabalho de Daniel Soares? 

Eu não conhecia o trabalho dele. Foi uma amiga que me mandou o casting que eles estavam a fazer e era um casting aberto. Eu estava em Nova Iorque (...), mandei as coisas e eles quiseram ver-me. A primeira conversa que tivemos foi por Zoom e correu muito bem. Eu chateei o Daniel algumas vezes para tentar garantir que ele não se esquecia de mim, porque ele queria ver-me ao vivo. Então fui mantendo a chama acesa, porque eu só voltava passado um mês e meio. A partir daí, foi muito, muito bom trabalhar com o Daniel e eu, quando acabámos o projeto, disse-lhe isso. Fiquei e sou melhor ator por ter trabalhado com ele.

Que aspetos é que destaca dessa experiência e o que é que o faz ter essa perceção?

Acho que é uma parte que tem que ver comigo – com o meu crescimento pessoal e enquanto ator. Ou seja, foi uma coisa que eu disse ao Daniel desde o início, que é 'não tenhas medo de me dar a tua opinião, tu não me vais magoar, eu sou adulto o suficiente para aceitar as indicações que tu me vais dar'. E à custa disso criou-se muito rapidamente um espaço de comunicação muito livre. Portanto, houve uma dada altura em que ele me perguntou 'o que é que achas? Achas que isto devia ser mais assim ou mais assado?'. E eu disse as minhas opiniões, sendo que, obviamente, a escolha final é sempre dele e aquilo que ali está, a nível de escrita, é escolha dele. Mas foi esse sítio onde nós nos encontrámos, de equilíbrio, entre eu e ele.

A curta-metragem fala muito sobre gentrificação, um tema que nunca foi tão atual. Esse também foi um dos motivos que o atraiu para este projeto?

Sim, ou seja, desde o princípio havia outros temas, que o Daniel acabou por pôr de parte, porque, numa conversa que tivemos, quisemos focar-nos nesta parte, que é muito forte. E acho que é um tema hiper atual, mais ainda na cidade de Lisboa, em Portugal, que continua a ser o primeiro país em que há disparidades maiores.

E é uma cidade que está cada vez mais descaracterizada, por sua vez.

Exatamente. Há uma parte da globalidade e da globalização que nos invadiu sem qualquer tipo de medidas, não é? E que está a levar outros espaços a crescer, porque, de repente, há os arredores da cidade, que também ganharam uma vida e tinham umas vidas diferentes. Mesmo assim, descaracteriza-se uma cidade, o seu interior, completamente. E isso é uma questão que o filme aborda e que, para mim, tenho algum interesse em me debruçar sobre isso.

Então, isto vai ao encontro daquilo que o João considera ser o papel do ator? Chamar a atenção para estes temas do quotidiano e que, no fundo, o espectador também consegue identificar-se?

Sim. Eu acho que esse é o papel da arte: pegar na realidade e, com isso, avançá-la para outros sítios. Acho que é a razão pela qual a primeira coisa que tantos movimentos de extrema-direita tentam fazer é controlar a arte cultural, porque a arte é o que vai exatamente apontar o dedo às falhas que estão a acontecer na sociedade. E esta é, claramente, uma das falhas que está a acontecer na nossa sociedade, neste momento.

João Villas-Boas
créditos: DR

E o que é que esta curta lhe veio acrescentar em detrimento de outros projetos que já fez?

(Pausa). Essa é uma pergunta mais complicada.

Também porque tem um currículo bastante extenso. 

É isso (risos). Eu já tive oportunidade de trabalhar com realizadores dos quais gosto muito e que me trouxeram muita coisa. Ou seja, é a segunda vez que vou a Cannes, também já estive em Sundance há uns anos. Eu acho que aquilo que me está a trazer de diferente tem a ver com a minha relação como ator e a capacidade que eu, hoje em dia, tenho de me posicionar em relação a isso e na relação que eu criei não só com o Daniel, mas também com outros membros da equipa que eu conheci ali, mas que, neste momento, são pessoas que já me acompanham para outros projetos. Portanto, acho que a diferença maior que eu posso dar a este projeto é o valor que também algumas destas pessoas viram em mim e que me validou alguns dos passos que eu tenho dado até agora.

E sente que essa validação é importante no percurso de um ator? Não é que tenha de sobreviver à base de validação, mas sente que é importante para não desistir, especialmente sendo que a representação é um meio muito complicado e para o qual é preciso muita persistência e resiliência?

Eu acho que a validação é uma coisa que toda a gente necessita, em qualquer espaço que habite. Desde criança, acho que é uma das coisas que nos leva a cometer alguns alguns erros a favor da necessidade de sermos validados por outras pessoas. Como ator, é de facto um trabalho muito difícil. Mas tenho a noção dos privilégios que tive enquanto ator, neste meu trajeto, que alguns dos meus colegas não têm, portanto têm de existir desta vontade e deste sonho de ser ator. A validação, obviamente, que ajuda a respirar um bocadinho mais leve. Para mim, é um bocadinho a bebida energizante que nos dá mais uns passos de corrida. Não pode ser o elemento único, mas obviamente que tem o seu papel.

Em relação aos privilégios que admitiu ter, quais são eles?

São vários. Ou seja, primeiro como homem, depois como uma pessoa branca. Depois, eu tive a sorte de ter uma família e uns pais que me apoiaram – às vezes, até financeiramente. E isso permitiu-me ter um descanso que eu sei que muitas pessoas não têm.

Sim, porque a representação acaba por não ser uma fonte de rendimento propriamente segura. Hoje, os atores têm um projeto e amanhã podem não ter.

Exato. E mesmo eu, tendo alguns desses privilégios, tenho de trabalhar – e trabalho na mesma – num bar. Eu no dia em que chegar de Cannes, vou trabalhar à noite num bar, porque o dinheiro é preciso, porque é preciso pagar contas. Eu acho que em Portugal, a indústria mais forte é, de facto, a televisão. Eu conheço pessoas que conseguem viver de teatro e cinema só, mas é sempre muito menor.

Não fazia ideia de que trabalhava num bar. Há quanto tempo é que lá trabalha?

A Casa do Comum abriu em outubro. É um centro cultural na Rua da Rosa, que tem um bar, uma livraria e um cinema. A equipa que está a gerir a parte do bar é a mesma equipa que geria o outro bar onde eu trabalhei durante anos e que fechou durante a pandemia. Portanto, quando eles abriram, eu precisava muito de dinheiro, eles precisavam de pessoas, e então juntámo-nos. Trabalho lá quase todos os fins de semana.

E é um sítio que junta a sua paixão pelas artes. 

É um sítio em que eu sei que me permite ser outra pessoa, porque há uma defesa qualquer em alguém estar atrás de um balcão e, portanto, permite-me conhecer pessoas diferentes, ver pessoas diferentes, é um sítio que, felizmente, onde se conflui muita gente das artes. Portanto, para mim, tem sido bom.

O João tem inúmeros projetos no seu currículo. Como é que o João de projetos que vão de "A Bela e o Paparazzo" a "Al Berto" – e podia continuar aqui a enumerar uma série de nomes – olha para o João de hoje?

Provavelmente, com alguma estupefação. O crescimento profissional é muito, muito grande. Eu, à custa de muitos anos de desenvolvimento pessoal e de terapia, ocupo um espaço que me é mais tranquilo e que me deixa menos ansioso. Tenho menos necessidade da validação e de querer ser visto e tenho mais vontade do desafio, de me querer continuar a encontrar. Trouxe-me uma segurança muito grande. Era um João muito nervoso, um João que ainda tentava esconder muita coisa do mundo – e isso é um desfavor à minha profissão de ator, porque muitas vezes eu tinha essa máscara a representar e, portanto, era imediatamente algo que era falso. Hoje em dia, sou capaz de estar muito mais tranquilo e estar mais em contacto com aquilo que eu sou e com as emoções que isto carrega. Portanto, é muito mais fácil para mim transportar textos e emoções que as pessoas escrevem.

joão villas-boas
João Villas-Boas em "Al Berto" créditos: Instagram

Acho curioso que diga que agora, que é uma versão mais autêntica e fiel àquilo em que acredita, não tem tanta necessidade de ser visto. Não devia ser ao contrário? Agora que está mais perto daquilo que sempre quis ser, não era a altura para ser visto e se fazer ouvir?

Por estar mais confiante, sou capaz de estar mais honestamente no mundo. Portanto, não tenho necessidade que os outros me vejam, dessa validação. Por exemplo, às vezes na rua ou no bar, há formas de eu me vestir ou de estar que eu antes tentava ocultar e que, hoje em dia, não tento, mas é indiferente se as pessoas me veem ou não. Faço pelo prazer que tenho de estar mais em contacto comigo. A uma dada altura, estudei como me sentar, como me mexer, como é que eu punha as mãos. Tudo isso era um pensamento constante no meu dia a dia e, ao deixar de ser, de repente permite essa liberdade.

Agora, temos de falar do elefante na sala, que é o facto de o seu irmão ser o novo presidente do Futebol Clube do Porto. Como é que o João e a sua família têm vivido estes tempos de mudança?

Em primeiro lugar, é muito incrível ver um irmão a realizar sonhos. Eu já vi o meu irmão a realizar, pelo menos, três dos seus grandes sonhos e há outros sonhos que eu sei – e que não passam para o público – que eu sei que ele já realizou com ele. É que eu cresci com ele, porque dividíamos o quarto, eram coisas que ele partilhava e que eu sei que aconteceram. Ver qualquer pessoa a realizar um sonho é sempre muito tocante, quando é a pessoa que me viu crescer, com quem eu cresci e me formei, emociona-me bastante. Estamos todos muito contentes pela vitória, mas também sabemos as dificuldades que ele pode vir agora a descobrir. Penso que é uma equipa maravilhosa, mas agora vai descobrir o desconhecido.

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Porque tudo tem um preço.

Sim, sim, sim. Tudo tem uma outra face da moeda. O processo de ganhar a presidência era um desafio grande; agora, estes quatro anos (e esperemos que sejam mais, se ele o quiser) são outro enorme desafio. Ou seja, a parte futebolística ficou muito concentrada nele (risos), portanto há coisas que eu desconheço, mas há coisas de que ele fala que me parecem um desafio muito grande.

Como é que foi a vossa infância? Presumo que, tal como referiu, desde cedo tenham mostrado gostos manifestamente díspares. Como é que foi a conjugação dessas duas realidades?

Nós temos uma diferença de cinco anos. Ele sempre foi o mano mais velho, tinha uma ascendência sobre mim muito forte. Era a pessoa que me fazia as cócegas, que me dava as paralíticas. A uma dada altura, na adolescência, os caminhos separam-se, porque a diferença aí já é tão grande que há poucos pontos em comum. Só mais tarde é que voltamos a reunir. Para além de que eu estive, de facto, durante muito tempo da minha vida, escondido de mim e dos outros...

João Villas-Boas
João Villas-Boas com os pais, Luís Filipe Villas-Boas e Teresa Maria Silva, e os irmãos, André, Catarina e Patrícia. créditos: Instagram

Por causa da sua sexualidade?

Sim, porque foi algo que me tornou manco durante muito tempo. Há ali uma dada altura em que nós não estamos em sintonia. Sempre fui hiper acarinhado, não posso nunca negar isso. Tem a ver com o amor próprio que se tem e que eu não tinha. Quando fiz 40 anos, há dois anos, no discurso que fiz, disse exatamente isso: eu não me sentia amado, não era porque não fosse, era porque eu não era eu próprio, portanto não sabia como o ser.

Mas, para contextualizar, o João assumiu-se com que idade?

Eu tinha 22 anos.

Nessa altura, como é que a sua família reagiu? É que eu li um artigo de opinião que o João assinou em 2016, no qual afirma: 'durante muito tempo, neguei tudo isto porque à minha volta não tinha exemplos de normalidade de o ser'. Como é que foi esse processo, se não tinha esse exemplos?

Voltando a pegar na questão do cinema e na importância que ele tem na vida das pessoas. Primeiro, apanhámos a pandemia do HIV e os homossexuais eram considerados sujos, imundos e pecadores. Depois, muitas representações no cinema da homossexualidade eram usadas como artifício cómico e eram para ser gozados, portanto eram sempre pelo exagero e humilhação. Ou então, temos a outra versão mais trágica ainda, que era o homossexual que é violado, que é morto. A primeira vez que vi um filme de dois homossexuais a terem uma relação e acabarem bem já eu tinha, à vontade, 32 anos. Há um grande tempo da minha vida em que, como homossexual, dizia 'eu não quero ser isto, porque isto não vai dar bom resultado para ninguém'. (...) Há passos que nós, enquanto sociedade, temos que dar, porque já chega.

Mas, desde o momento em que se assumiu, sempre foi acarinhado pela sua família? Ou não foi um processo linear?

Nunca é um processo linear, porque os medos que eu tinha e carregava são medos que os meus pais ou irmãos, a uma dada altura, também podem ter carregado e carregaram certamente. E sonhos que, se calhar, também tinham para mim e acabam por ter de adaptar-se. Mas a minha família conheceu muitos dos meus namorados, que passaram natais lá em casa e que foram a festas. Portanto, hoje em dia, sim, posso dizer que há uma aceitação absoluta, mas também nunca disseram que me punham fora de casa por causa disso.

"A primeira vez que eu estive com um homem, eu lavei-me com lixívia"

Eu também li, no tal artigo de opinião, que o João andou num colégio católico. Sente que, uma vez que esteve lá durante 15 anos, dos 3 aos 18, ter andado numa instituição com um peso religioso muito vincado retardou ou afetou este processo de descoberta?

Acho que lhe deu um caráter muito pesado, porque a homossexualidade é ainda vista como um pecado, muitas vezes – apesar de haver alguns dissidentes dentro da religião católica que já dizem que não. Mas continua a ser visto como um pecado. Portanto, todos os domingos que se vai à missa, está-se a falar sobre o pecado e eu, como homossexual, estou sempre em pecado. Não há nada que eu possa fazer, ser, existir que não deixe de viver nesse pecado. É o caso da minha família: nós vamos à missa desde pequeninos e, desde essa altura, está-se a incutir essa ideia de que estamos errados, de que pecamos por pensamentos, palavras, atos e ações, portanto não há sítio para fugir. Não há forma de uma pessoa pensar 'ah, não, isto é tranquilo' – e tem um peso muito grande. A primeira vez que eu estive com um homem, eu lavei-me com lixívia e foi com a necessidade de me tentar limpar dessa ideia do pecado, de me tentar limpar de um sentimento de imundice que vivia em mim.

Então, demorou a desprender-se dessas amarras e a fazer todo esse processo.

Foi um processo que demorou bastante tempo. A vergonha que está associada à minha forma de ser é algo do qual demorei muitos, muitos anos a poder livrar-me. Nos últimos anos, há um salto muito grande em relação a isso e que tem a ver não só com a terapia que se faz, mas também com as pessoas de que me rodeei, da família escolhida de amigos, que me permite existir no ponto mais autêntico e me aceitar nesse sítio de maior autenticidade.

E sente que a entrada na representação, sendo que é uma área considerada por muitos mais liberal, também o ajudou neste processo?

Não, durante muito tempo até foi o contrário. Apesar de parecer uma área mais liberal, em muitos sentidos continua a ser uma área muito dominada por uma visão heteronormativa e implica aquilo que me aconteceu: 'Cuidado com a forma como te sentas e não fales assim, porque pareces muito maricas'. É um desfavor para ambos os campos, porque implica que uma pessoa heterossexual que possa ter uma voz mais aguda e trejeitos é imediatamente conotada como homossexual, portanto tem que esconder ou mascarar esse aspeto. Para alguém que é homossexual, está a tentar passar por uma visão mais masculina, com essa ideia de masculinidade e a puxar isso. Eu estudei como é que cruzava as pernas, como é que me sentava, como é que falava. Tudo isso foi estudado e são camadas de que é preciso livrarmo-nos.

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João Villas-Boas em "Fogo-Fátuo", uma comédia erótica em formato musical créditos: IMDB

Então, acha que faltam vozes LGBTQIA+ no ramo da representação? Por onde é que passa essa mudança?

Acho que essa mudança vê-se a acontecer aos poucos. Também não é uma mudança linear, mas vê-se em projetos novos, em equipas mais diversificadas. E não é só em questões de sexualidade, é também em questões raciais – afinal, continuamos a ser um mundo, muitas vezes, dominado por pessoas brancas. As equipas de projetos em que eu estive, e onde isso é tudo muito mais diversificado, foi imediatamente tudo muito melhor, porque toda a gente está muito mais à vontade, muito mais tranquila. Quando se tem uma voz só e pensamento único a funcionar, tudo fica mais pequenino; quando há mais possibilidade de discussão, mais pontos de vistas diferentes, enriquece qualquer obra.

Voltando ao início. Disse que ganhou um projeto para uma longa. O que é que pode contar sobre isso? 

É um projeto que estou a desenvolver há algum tempo, que faz parte de mim há algum tempo, e vem na sequência da primeira peça que eu escrevi, que falava sobre o Valentim de Barros, que é o primeiro bailarino português a internacionalizar-se e tem uma história magnífica. Portanto, isso é um pequeno embrião. O fundo que eu ganhei é para poder começar a escrita do guião. Estamos numa fase mesmo muito embrionária.

E projetos futuros?

Há projetos teatrais, mas que são só para o ano, mas estou neste momento a gravar os 'Morangos com Açúcar'. É muito engraçado, porque quando eles estrearam, há muitos anos, eu vim tentar entrar e não fui chamado para nada – e, agora, fazer parte deste projeto é muito engraçado. Estou a gravar as quarta e quinta temporadas – eles tiveram a primeira e a segunda, vai haver agora a de verão e eu entro depois, nas duas seguintes. Sou o professor de teatro. E as pessoas com quem trabalhei foram todas excelentes profissionais, muito abertas a ouvir, a ideias. (...) Esta capacidade elástica de adaptação é uma coisa muito importante para um ator e todos eles demonstraram isso.