Quando “Star Wars: Episódio IV — Uma Nova Esperança” (na altura só "A Guerra das Estrelas") chegou a Portugal, em dezembro de 1977, mais de seis meses depois da estreia nos Estados Unidos, o filme foi um sucesso. Não se esperava outra coisa: a história de George Lucas estava a correr o mundo numa galáxia assim não tão distante.
Quase 40 anos depois do lançamento do primeiro filme da saga, é indiscutível que existe uma geração "Star Wars", gente que coleciona bonecos, cromos, posters, que vai às antestreias dos novos filmes, que sabe a ordem correta de todos os filmes, o nome de quase todos os monstros e robôs, gente que lhe lançará um olhar ameaçador se se atrever a dizer que a fala "Luke, I am your father" existe — porque não existe, na realidade Darth Vader diz apenas: "I am your father”.
Esta não é a minha história. Quando nasci, em 1989, já havia três filmes da saga "Star Wars" (os três que interessam, dirão os fãs). Só viria a conhecer história do miúdo sonhador que acaba a liderar uma revolução contra um império muitos anos mais tarde. Se gostei? Claro que sim. Mas não fez parte da minha juventude. Não sinto que faça parte dessa geração.
Mas faço parte de outra. E foi por isso que, há uns dias, sugeri que se falasse sobre a geração Harry Potter. A ideia foi recebida com desdém, sobretudo pelos mais velhos da redação. "Mas existe uma geração Harry Potter? Alguém ainda lê isso?". O meu olho direito começou a tremer com os nervos. Como se atrevem?
Tinha 11 anos quando comprei o meu primeiro livro de J. K. Rowling. A nossa história de amor não começou bem: o fenómeno do feiticeiro tinha-me passado completamente ao lado, portanto naquele momento não fazia a menor ideia de que estava a comprar o terceiro livro da saga. Percebi isso assim que cheguei a casa e folheei as primeiras páginas.
Já não havia nada a fazer. Apesar de tudo ter começado a mal, o cocktail hormonal que se deu no nosso corpo quando nos apaixonámos já estava a explodir cá dentro. Eu precisava de ter rapidamente os dois primeiros livros. Eu tinha de saber mais sobre aquela história.
E assim foi. Só precisei de três dias para devorar tudo de uma ponta a outra. Nas semanas que se seguiram, reli-os até à exaustão. É difícil explicar a importância que Harry Potter teve para mim naquele momento. Aos 11 anos, eu era uma criança gordinha com uns óculos de massa cor-de-rosa. Praticamente não tinha amigos e tentava a todo o custo perceber como é que os meus pais tinham passado de um casamento sem discussões para um divórcio digno de uma Terceira Guerra Mundial.
Harry Potter era um bocadinho como eu. Não era particularmente bonito, não tinha amigos e tinha uma vida familiar complicada. No fundo, também estava rodeado pelo drama e solidão. Até que um dia chegou uma carta de Hogwarts e tudo mudou.
A minha carta nunca chegou. Mas chegou Harry Potter. Quase duas décadas depois, já não tenho nada a ver com aquela miúda de 11 anos. Mas ainda tenho um enorme carinho pela história que J. K. Rowling criou. Tanto que a primeira coisa que fiz no ano passado quando cheguei a Londres foi sair direta do aeroporto para a Estação de King's Cross. Tanto que ainda compro canecas, capas de edredão e camisolas inspiradas na saga. Tanto que ainda leio excertos do livro quando me sinto triste.
Existe uma geração Harry Potter? Eu digo que sim. E pelos vistos não estou sozinha.
"Um livro sobre magia com crianças? Que porcaria. Não vou ler, não gosto de modas"
Joana Melo não começou a ler os livros quando eles se tornaram populares. Quando a namorado do irmão na altura lhe ofereceu no Natal "Harry Potter e a Pedra Filosofal", esta lisboeta, de 28 anos, pegou no livro e arrumou-o numa prateleira. "Um livro sobre magia com crianças? Que porcaria", recorda à MAGG. "Não vou ler, não gosto de modas."
Foram precisos dois anos para Joana pegar novamente no presente. Durante umas férias de Natal muito aborrecidas, e sem nada para fazer, agarrou no livro e começou a folheá-lo. No dia seguinte, foi à papelaria comprar o segundo. E no dia a seguir, o terceiro. Depois sentiu o peso da depressão a invadi-la porque agora tinha de esperar pelo quarto — e J. K. Rowling ainda estava a escrevê-lo.
Em Londres comprei 'Monstros Fantásticos e Onde Encontrá-los' só porque estava à espera do comboio."
Entre edições em inglês, português ou em capa dura, Joana Melo tem neste momento 13 livros da saga Harry Potter. "Tenho uma segunda edição do primeiro livro que comprei na Faculdade de Letras por 5€. Um verdadeiro achado. Em Londres comprei 'Monstros Fantásticos e Onde Encontrá-los' só porque estava à espera do comboio."
Hoje, os livros praticamente não saem da prateleira. Não porque já não os leia mas porque tem medo de estragar as capas. "Tenho tudo no Kindle. Às vezes quando vou a caminho de casa ou do trabalho dou por mim e estou a ler um capítulo, em vez de ir para o Instagram ou para o Facebook."
Quando perguntamos a Joana Melo quantas vezes leu os livros, ela ri-se. Depois para e ri-se outra vez. "Não faço a mínima ideia. Quando estava a fazer a tese sobre a imagem percebida de Lisboa pelos turistas no estrangeiro, a minha soundtrack eram os livros do Harry Potter. Era a única coisa que não me distraía porque sei as falas de cor."
Joana Melo não está sozinha no seu amor por Harry Potter. "Quando cheguei à faculdade, conheci pessoas que partilhavam a mesma obsessão. Na Faculdade de Letras era a loucura." Ainda assim, parece que o fenómeno não se limita a quem nasceu no final da década de 80 e início de 90.
"Eu trabalho numa empresa de telecomunicação com 300 pessoas e tenho colegas muito mais novos do que eu, com 18, 20 anos, que também são loucas por Harry Potter. É bom saber que teve uma continuidade, que não caiu no esquecimento. No Carnaval, a empresa deixa-nos ir vestidos como quisermos. Tenho uma colega que apareceu vestida de Hermione. Eu fui de Harley Quinn."
"Ele tinha 11 anos, eu também. Ele vivia com os tios, eu com os meus padrinhos. Bateu tudo certo"
Cátia Gomes também tinha 11 anos quando começou a ler os livros de Harry Potter. Tal como Joana, recebeu o primeiro de presente. "Já não me lembro se foi de anos ou de Natal, mas foi a minha prima que me ofereceu." O clique foi imediato.
"Sempre gostei muito de ler, e de ler fantasia em particular. Foi uma convergência de fatores que levou àquele amor: eu tinha 11 anos, ele também tinha 11 anos; ele vivia com os tios, eu na altura também vivia com os meus padrinhos. Acabou por ser o momento certo porque fomos crescendo os dois. Revia-me nos livros."
As coincidências eram tantas que a lisboeta, de 28 anos, quase acertou na data de aniversário do feiticeiro: Harry Potter nasceu a 31 de julho, Cátia a 23. "O Daniel Radcliffe [ator que dá vida ao protagonista nos filmes] nasceu nesse dia", ri-se.
Tal como Joana, Cátia não faz a menor ideia de quantas vezes já leu os livros. Sempre que precisa de "leitura de conforto", porém, é às palavras de J. K. Rowling que recorre. E não está sozinha — há muitas pessoas que partilham a sua paixão por Harry Potter.
"No secundário nem tanto, acho que nessa altura não era fixe ler J. K. Rowling. Mas quando entrei na faculdade senti imenso isso. Um dia dei por mim e estava rodeada por pessoas que conheciam todas o Harry Potter e sabiam tudo sobre ele. Há uma geração que foi definitivamente muito marcada pelos livros."