"Portuguesa", o sexto álbum de Carminho, foi lançado esta sexta-feira, 3 de março. A fadista de 38 anos tem a sua marca em letra e música de várias das 14 composições, além de várias colaborações com artistas como Luísa Sobral, Rita Vian e Joana Espadinha.
Em entrevista à MAGG, Carminho fala sobre o processo de composição e gravação deste álbum, que demorou quase quatro anos a conhecer a luz do dia, bem como aquilo que entende ser o seu caminho no mundo do fado. Da moda à maternidade (a fadista foi mãe em maio de 2020 de uma menina, fruto do casamento com o músico João Pimenta Gomes), a artista explica ainda, com sentido de humor, qual é a sua relação com a exposição mediática. O segundo single de "Portuguesa", "Praias Desertas", também foi lançado esta sexta-feira.
Porque é que escolheu um fado de Alfredo Marceneiro para primeiro single do seu novo álbum?
A melhor forma de definir este disco é a exploração, a prática do próprio fado como género musical, como um artesanato que é feito pelos fadistas, pelo meio. E, nesse sentido, há muito dessa exploração das combinações, dos poemas, das músicas, e uma das pessoas que muito me influenciou nesse sentido foi Alfredo Marceneiro, do ponto de vista da construção de um repertório original. Se olharmos para trás, o repertório que Alfredo Marceneiro cantava era composto por ele ou por alguns parceiros e contemporâneos dele. Isso acaba por provar que o fado é uma língua viva, que continua a ser pertinente, que continua a ter que ser explorada dessa maneira.
A abertura do disco é um bocadinho uma reverência aos antigos, a essa atitude corajosa que eles tiveram. Eu também não queria explicar ipsis verbis, gosto de deixar alguma subliminaridade, mas como a pergunta foi tão direta (risos)... é tão comum, no âmbito do fado, ir buscar fados antigos e colocar novas letras que acaba por não ficar tão vincada esta ideia. E esta ideia é mesmo as combinações da prática do fado, como sendo escrever para fados tradicionais que já existem ou pegar num livro, como aconteceu com as “Fontes” de Sophia de Mello Breyner, e ter o instinto de ver a estrutura tradicional do fado na poesia e compor um fado para essas palavras, ou mesmo a composição tradicional, com letra e música originais, porque é a exploração dessa forma que é utilizada no fado. Tudo isto é um caminho, é uma língua viva, que eu continuo a achar que tem imensa riqueza para explorar.
Quando ouvimos este tema, o som é tão límpido que há momentos em que conseguimos ouvir a sua respiração. Foi intencional lançar um primeiro single sem quase nenhum efeito?
Isso não é uma intenção que tenha que ver com o single ou não porque nenhuma das canções tem esse tipo de pós-produção. Diz, e bem, que as escolhas de produção também passam pela forma como se grava ou não o disco. A escolha de gravar o disco numa sala aberta, sem nenhum tipo de interferência acústica entre mim e os músicos, isso causa uma vertigem e uma atitude contínua de takes que têm que viver do momento, assumindo tudo o que estará a acontecer naquele momento.
Tenta-se ensaiar para que o fado e o take corra realmente bem do princípio ao fim… mas é captar o momento, e o momento tem todas essas texturas. Para mim, não faz sentido nenhum retirá-las ou manipulá-las. Eu trato a prática do fado também nesse sentido, da perfomance e da atitude de interpretação, de músicos e voz, essa ligação numa atitude fadista, que passa muito pelo laivo, pela canção ao vivo.
Porque é que escolheu o nome “Portuguesa” para este álbum? Parece-me bastante ousado, apesar de curto.
Porque é que acha que é ousado?
Por ser tão simples, por ser uma afirmação de ser portuguesa. Não é Portugal, nem português. É portuguesa, no feminino, e a Carminho é uma mulher.
Portuguesa, do ponto de vista da atitude, do olhar, da poesia, da língua portuguesa. É a prática constante do fado, que aborda vários campos que a mim me são muito queridos e onde eu permaneço o maior tempo possível. É nessa busca. Eu continuo a achar que é a prática portuguesa, a prática do fado, da língua portuguesa, da identidade que, de alguma maneira, eu tenho em mim. Acredito que a identidade é algo muito pessoal, algo que cada um consegue ou não definir para si, ainda que existam pontos em comum e que outras pessoas possam sentir-se incluídas ou não. Tudo isto é retratar o meu olhar sobre a música que ouvi desde pequena, sobre a palavra, sobre a língua que, de alguma maneira, reflete uma identidade. E foi essa a minha intenção.
"Eu não estou contracorrente, eu estou a fazer aquilo que sempre fiz"
Como é que se concretizam dois anos de trabalho em 10 dias de gravações?
Por isso é que se trabalham dois anos, exatamente para afunilar, para escolher, para decidir. E essas decisões parecem simples quando, em 10 dias se tomam, só porque se esteve dois anos a trabalhar nisso. E não conscientemente e diretamente a decidir alguma coisa em particular, mas a trabalhar as texturas, os sons, as próprias canções em casa, testando, praticando. Quando se chega, depois dessa prática, torna-se muito intuitivo e até parece fácil porque já lá está tudo interiorizado, porque já foi feito esse trabalho durante esse tempo. Em 10 dias, muita coisa surge facilmente.
Porque é que escolheu três mulheres (Luísa Sobral, Rita Vian e Joana Espadinha) para comporem canções neste álbum, sendo que não são do universo do fado?
Eu escolhi canções que chegaram até a mim, ou seja, eu escolhi as canções que me tocaram e com que me identifiquei. Tenho a sorte de ter tido o encontro com estas canções, e de elas terem-nas oferecido, e de ter resultado. O repertório manda, mais do que as relações, mais do que os contextos. Pode haver um conceito, só cantar mulheres, por exemplo. Mas também não me interesso tanto por esse tipo de conceito porque sinto que é menor do que as próprias palavras e canções. Identifiquei-me e, ao identificar-me, isso pode querer dizer muito.
Talvez por serem mulheres as canções chegaram tão perfeitas e, por isso, identifiquei-me com elas a esse ponto. São compositoras muito boas, artistas incríveis. A Joana Espadinha, desde o disco anterior que temos feito um trabalho consistente e contínuo. A Rita [Vian] acho-a uma artista iluminada, com esta forma tão própria de se expressar e a Luísa é uma escritora de canções nata, parece que nasceu a escrever canções que tocam as pessoas. Sinto muito orgulho de as ter no meu disco.
Cinco anos separam “Portuguesa” do seu álbum anterior. Essa espera foi propositada ou foi o tempo que foi passando?
Foi o tempo que foi passando. Também aconteceu muita coisa pelo meio, uma pandemia, tudo isto precisa de tempo para assimilar, para compreender. Foi também a contingência, sobretudo da pandemia, que já não está tão presente em nós mas não nos podemos esquecer a estranheza que foram esses tempos. Mesmo quando voltámos, este regresso não foi nada lógico, nem natural nem imediato. Tudo isto demorou e tivemos de esperar.
Sente-se em contracorrente uma vez que a tendência é, cada vez mais, misturar o fado com outras influências? Este seu novo álbum vai no sentido contrário ao que está a acontecer atualmente no panorama musical.
Eu não estou contracorrente, estou a fazer aquilo que sempre fiz.
Mas podia haver essa escolha, da sua parte, de também fazer isso.
Eu não posso estar contracorrente quando a minha corrente começou quando nasci. Quanto muito haverá outras correntes que estão contracorrente (risos).
A estética do videoclipe “O Quarto (Fado Pagem)” é altamente sofistica e, ao mesmo tempo, simples. Como é que chegaram a este conceito?
Tive o privilégio enorme de voltar a trabalhar com o Giovanni Bianco, um criativo como há poucos no mundo. Ele veio para Portugal, conheceu a forma como eu estou na música, essa minha tendência mais minimal, uma ideia de simplicidade. Mas depois tenho de me entregar ao talento desses criativos e foi um resultado incrível. Sinto que há uma troca, uma comunicação e uma fluidez para se poder chegar àquele lugar. Por um lado, tenho de dizer quem sou, mostrar uma música que faço, explicar o contexto e o que ela pretende atingir em termos emocionais. Por outro, também tenho de deixar levar, com a confiança que é um olhar externo, e foi isso que procurei.
Em que momento da sua carreira percebe que a moda também é importante para a performance do artista? Desfilou, em julho de 2022 para a MaxMara e também fez uma parceria com a marca.
Eu não acho que a moda tenha importância na carreira de um artista. Eu acho que a estética, a imagem tem. A moda acaba por ser a ideia de contemporaneidade e de cruzamento de disciplinas. A colaboração é algo em que eu acredito. A única forma de as pessoas crescerem é colaborarem, é poder partilhar o conhecimento que vem de diferentes fontes para um outro resultado, exatamente como um dueto. Cria sempre um terceiro universo. A MaxMara surgiu como um convite do designer e da família MaxMara para que eu pudesse fazer a ponte entre eles e a história que eles têm mas sobretudo com a referência a que eles queriam chegar, e a inspiração, que foi Natália Correia, a cultura de uma mulher portuguesa. A Amália [Rodrigues] também estava, obviamente, intrincada nessas referências. E convidaram-me para eu poder, de alguma maneira, poder fazer essa ligação.
Fui até Itália conhecer a família, a fábrica. Eles vieram a Portugal, fomos aos fados, tivemos longas conversas e pesquisa sobre as experiências onde eles queriam chegar e o desenho da coleção foi muito inspirado em Portugal e nesse encontro com esta cultura portuguesa. E, no fim, houve esse desafio de me convidarem a desfilar. Ao princípio até resisti um bocadinho mas, depois, senti que não havia razão para resistir e acho que são momentos em que as pessoas se divertem e também criam novas emoções, porque são experiências únicas. Acho que a moda, a imagem, é de facto fundamental porque é comunicação, como qualquer outro tipo de linguagem.
"Acho que uma pessoa, quando é mãe, se transforma. E transforma-se em todos os seus campos"
Quando a Carminho e a Bárbara Bandeira, em conjunto com a restante equipa, compuseram “Onde Vais”, tinham alguma noção do alcance que a música, mesmo dois anos depois, iria ter?
Não, mas eu senti, quando a canção me chegou através da editora, que era muito emocionante. E essas canções têm algumas características comuns. Chegam às pessoas de uma forma muito dilacerante. Claro que nunca sabemos o que vai acontecer com as canções. Eu acho que as colaborações devem ser feitas com uma intuição de verdade, de encontro e de empatia entre os artistas. É a única forma que eu acredito que acontecem duetos que fazem a diferença e que emocionam as pessoas. Nós temos de nos emocionar primeiro. E foi exatamente no sítio onde estou agora, aqui junto à janela de minha casa, que ouvi a música pela primeira vez e me emocionei. Resolvi com imenso gosto conhecê-la primeiro, também para perceber se aquilo que eu tinha ouvido e aquilo que eu tinha sentido tinha sido um engano, e não foi. Porque ela mostrou-me também a personalidade, o caráter, a forma como ela é, fez-me ter a decisão final. Continuamos a tirar muito prazer e muita emoção desta canção.
Esta canção, não só por causa do airplay mas também por a Bárbara Bandeira chegar a públicos mais jovens, fê-la chegar a públicos que habitualmente não ouviriam fado?
Não sei, acredito que sim. Acho que a junção de dois artistas é sempre a criação de um terceiro mundo. São duas pessoas que se vão cruzando e que levam as pessoas a querer ouvir os artistas e aquilo que eles fazem, e a tirar os preconceitos. O facto de duas artistas tão diferentes se juntarem e de não terem nenhum tipo de preconceito em relação a essa colaboração, faz com que as pessoas também olhem com esse olhar de despretensioso em relação às coisas.
Ter sido mãe mudou a forma como canta, como atua?
Eu acho que uma pessoa, quando é mãe, se transforma. E transforma-se em todos os seus campos. Cantar é transversal à minha vida, é das coisas tão importantes como a minha família, como existir como pessoa. Esses grandes pilares da vida vão sendo transformados à medida que nos transformamos também.
Já tem outra forma de organizar o seu tempo, de forma a que a sua filha seja a prioridade?
Tudo mudou, é verdade.
A Carminho sempre teve uma gestão muito parcimoniosa da forma como se expõe. Acha que, mais do que qualquer outro género musical, um fadista ou uma fadista também ter à sua volta uma certa aura de mistério?
Eu não acredito que seja pelo género musical. Acredito que as pessoas têm de fazer aquilo com que se sentem bem. Isto não é uma prisão. Eu acredito que isto não é para os outros. É para me realizar pessoalmente. O público é, de facto, uma parte importante para aquilo que eu faço, mas se eu não estiver confortável, se eu não estiver feliz e confiante e não acreditar no que faço, vou estar a mentir às pessoas que me estão a ouvir.
Eu não sou assim para criar um mistério. Sou assim porque é a minha personalidade. Hoje em dia nós sabemos muito bem o que é que se ganha e o que é que se perde com a exposição. Se fosse pelo mistério, eu não estaria a ganhar o que poderia ganhar com isso. Acho que o mistério não me chegava para pagar as contas (risos)! Eu sou assim porque essa é a minha condição natural, e com toda a legitimidade para mudar no dia em que eu quiser! Isso não é uma coisa que esteja definida como uma estratégia, é uma questão de ser honesta comigo.
Este seu último álbum é o que a faz sentir mais realizada?
Agora, sim. Da outra vez foi cada um dos outros. E este já vai deixar de ser quando vier o outro, se Deus quiser. Porque espero que a minha melhor obra seja a que acabei de fazer. Não sei se vou conseguir esse feito, mas vamos ver.