O sub-título do primeiro livro da pediatra Joana Martins pode referir-se aos bebés, mas a autora afirma, que acima de tudo, este é um livro "para as mães". "O Quarto Trimestre — Os primeiros três meses de vida do seu bebé" é a primeira experiência no mundo editorial de Joana Martins, e partiu de um desafio da Ego Editora. Mas a pediatra, que trabalha na unidade de cuidados intensivos do Hospital Dona Estefânia e acompanha famílias em consultório, inspirou-se nas mulheres, que enfrentam um desafio atroz quando se tornam mães, e foi mais além.
"No contexto daquilo que fui escrevendo online [Joana Martins tem uma crónica semanal no portal Sapo], fui contactada pela editora, que me fez ver uma lacuna no mercado editorial: não existia muita coisa dedicada às mulheres e ao bebé naquele período temporal mais frágil, que são os primeiros três meses da vida da criança", explica a pediatra à MAGG.
No entanto, Joana Martins salienta que, mais do escrever um livro de saúde infantil dedicado aos bebés pequeninos, queria ajudar as mulheres e dotá-las de informação sobre o que se passa neste desafiante período inicial. "Aceitei o desafio e achei que podia escrever mais do que isso. Tentei consolidar um guia de apoio para a mãe no processo do pós-parto e no processo do nascimento da mãe. Porque o nascimento de uma mãe é demorado e pode ser doloroso. Foi essa a minha inspiração, a minha ideia foi mesmo tentar apoiar as mulheres."
E é justamente essa necessidade de apoio às mães, que vai muito além de alguém ajudar a trocar fraldas, que precisa de ser falada, discutida e posta às claras, sem julgamentos. "A frase não é minha, mas sim da psicóloga argentina Laura Gutman, mas os bebés são visíveis, as mães são invisíveis. Na nossa sociedade, existe uma predisposição para adorar o bebé no momento do nascimento, focar apenas na criança, e entrar naquela bolha cor de rosa. Mas há que refletir sobre o processo de nascimento de uma mãe. Tornar-se mãe é a maior crise de identidade que uma mulher vai enfrentar na vida."
Joana Martins explica que muito disto tem que ver com a culpa que as mulheres sentem por não estarem 100% felizes, e acabam por não pedir ajuda. "Não é falado porque esta pequena mancha no processo de felicidade que é receber um bebé não faz sentido, então é varrido para debaixo do tapete. Mas o nascimento de uma mãe é uma dicotomia: óbvio que a mulher está feliz por receber o bebé, mas está ambivalente, porque isto significa uma mudança enorme."
Para a pediatra e autora, no passado, quando a mulher tinha maioritariamente um papel de mãe e dona de casa, "a gestão de expetativas era mais linear", mas o presente traz outros desafios. "Hoje em dia, a mulher tem um papel que ultrapassa muito a maternidade. Tem uma carreira, está no mercado de trabalho, tem outros desafios na sua vida, e este momento, em que tem de abraçar um novo papel e reequacionar os outros objetivos, não é fácil. Mas também não querem falar com medo de serem julgadas e rotuladas de más mães."
Joana Martins refere ainda que, muitas mulheres, se não se sentem completamente felizes são logo conotadas, por elas próprias ou terceiros, como mães com falta de instinto maternal. "Há uma grande culpa e silêncio em torno destes assuntos porque é conveniente, porque estamos a colocar em causa um papel se o fizermos. No meio disto tudo, há muitas mulheres a sofrerem em silêncio, muitas depressões pós-parto erradamente conotadas com problemas hormonais, e conflitos emocionais em casal que começam uma má gestão de tudo isto."
"Ninguém a sofrer consegue amar o outro"
Para além de todas as consequências emocionais negativas para a mulher, não pedir ajuda e esconder o processo difícil por que está a passar pode ter também consequências na ligação com o filho. "Se uma mulher não se reconhece no seu novo papel, isto pode comprometer a vinculação com o bebé", alerta Joana Martins.
"Se a mulher não está de alma e coração para se entregar ao amor daquele bebé, porque está a sofrer, os bebés correm o risco de não serem amados na sua plenitude. Ninguém a sofrer consegue amar o outro. Depois ainda se sentem mais culpadas, porque estão a fazer tudo ao seu alcance para criar esse vínculo, e não se deu o clique que esperavam. Aliás, há muitas mães que falam de uma situação de fraude, sentem-se enganadas."
E também há a questão da insegurança, que pode levar a que as recém-mães sejam mais afetadas pelas opiniões não solicitadas de terceiros. "Quando uma mulher não está segura dos seus afetos, é muito mais afetada pelos comentários e opiniões. É quase como se se sentisse perdida, sem se sentir ela própria", realça Joana Martins.
É justamente para que as mães consigam ter um pouco de normalidade, e também para se adaptarem à nova realidade, que Joana Martins incentiva os pais a irem jantar fora, sozinhos, por volta dois 2 meses de idade da criança. "Não tem que ver com nada romântico, atenção. Por esta altura, é normalmente uma fase em que o bebé já saiu daquele ciclo complicado de amamentação, já pode distinguir dia da noite, e está tudo um pouco mais calmo do que nas primeiras semanas. A razão desta minha recomendação é tão simples como isto: dois adultos que consigam ter uma conversa e aproveitar uma refeição quente, em simultâneo. Para além disso, é importante para a mãe recordar a antiga mulher que era, perceber o quão diferentes estão as coisas, e tentar adaptar as duas realidades."
Mais de metade das mulheres não sente um amor inigualável pelo filho no momento do parto
Vemos o momento nos filmes, ouvimos da boca das amigas, vemos as publicações nas redes sociais. A grande maioria das histórias de partos que ouvimos dão conta de um maior ou menor sofrimento, com um resultado comum: as lágrimas de felicidade no momento em que colocam o bebé nos braços da mulher, o amor instantâneo quando os olhos de mãe e filho se cruzam, quase como se tudo fizesse sentido naquele momento, e a exaustão e as dores das horas que antecederam o parto ficassem imediatamente esquecidas.
Resultado? Quando uma mulher dá à luz e não sente nada disto, chega a culpa. O sentimento de que têm um problema. A célebre tormenta do "porque é que não estou já apaixonada pelo meu filho", e a sensação de que algo de estranho se passa. A verdade? Se passou por isto, não está sozinha. Aliás, faz parte da maioria — só que, publicamente, ninguém o gosta de admitir.
"Vários estudos científicos, baseados em relatos anónimos de mulheres, dão conta de que cerca de 60% das mães não sente um amor inigualável no momento em que tem o bebé nos braços pela primeira vez. Mas abafa-se essa realidade pelo medo, novamente, de ser conotada como uma má mãe. E atenção: isto é perfeitamente normal, e a maioria das mulheres não vai experienciar esse tal amor no primeiro momento. Cada mãe e cada bebé têm o seu ritmo, e o amor constrói-se. É quase como os primeiros encontros. Quem é que já ficou apaixonado de uma forma avassaladora no primeiro encontro?", diz Joana Martins.
A pandemia aumentou a ansiedade das grávidas
O contexto atual, em que vivemos em plena pandemia causada pelo novo coronavírus, é uma fator extra de stresse para as grávidas e mães recentes. "Temos dados que apontam que a ansiedade e os sintomas depressivos das grávidas aumentaram consideravelmente", informa a pediatra.
"Estou muito preocupada com a saúde mental destas mulheres. Em relação aos bebés, ainda está a ser estudado o impacto que o stresse acumulado e a ansiedade extra relacionada com esta situação pode provocar aos fetos ainda durante a gestação, nomeadamente no desenvolvimento cerebral na gravidez. Mas em relação às mães, depois do parto, preocupa-me o que o isolamento social que a pandemia impõe pode fazer a estas mulheres."
Joana Martins salienta que o pós-parto e as primeiras semanas após o nascimento de uma criança, só por si, já são uma fase de solidão — o que só aumenta no contexto atual. "Existe um grande sentido de responsabilidade incutido às mulheres, de não partilha das responsabilidades, que resulta numa grande solidão. Nesta altura de COVID-19, isso fica ainda mais exponenciado, e acho que tem de existir uma grande vigilância a estas mulheres, mais do que nunca. É preciso perceber sinais, e estarmos muito atentos."
Sobre as mudanças impostas pelas medidas de contingência face à COVID-19, que muitas vezes impedem os pais de estar presente no bloco de partos na altura do nascimento dos filhos (bem como antes e depois), a pediatra acredita que o impacto da ausência do parceiro terá muito que ver com a relação do casal, mas não prejudicará o vínculo com o bebé.
"Há mulheres para quem não vai existir um grande impacto, dado que já tomam este processo do parto como delas. No caso de outras, e nas relações em que falamos de um parceiro amado e respeitado, é claro que a falta do companheiro pode ser um fator extra de ansiedade, até mais numa fase anterior ao momento do parto, pois podiam ter no parceiro um apoio. Mas não acredito que a ausência do pai no momento do nascimento do filho vá prejudicar o vínculo entre o bebé e o homem de alguma forma."
"Quero que as mulheres que leiam este livro saibam que não estão sozinhas"
Ao longo do livro, Joana Martins aborda vários temas importantes nos primeiros meses da vida de mãe e bebé. Assim, em "O Quarto Trimestre — Os primeiros três meses de vida do seu bebé", a autora fala do parto, numa ótica de experiência de vida e não tanto médica, das dificuldades dos primeiros 40 dias após o nascimento, do processo de vinculação ao bebé e da importância de pedir ajuda, entre outros temas.
"No capítulo em que falo das mães, e da ajuda que devem pedir, saliento que é muito importante existir a figura da 'mãe da mãe'. E não estou a falar aqui da avó. Estou a falar de alguém, que pode ser uma amiga, uma tia mais próxima, o que for, que esteja inteiramente dedicada à mulher que foi mãe. Não está lá para ajudar a mudar fraldas ou para adormecer o bebé. Está lá para ir buscar uma salada de frutas à mãe, para fazer uma máquina de roupa, para pôr visitas indesejadas fora de casa. No fundo, está lá para dar colo à mãe, e apoiá-la no que for preciso."
Mas isto não seria mais facilmente incutido aos pais? "Não", responde Joana Martins. "Seria ótimo se os pais conseguissem desempenhar ambos os papéis, de pai e cuidador da companheira, mas não acontece. O foco do pai é o bebé, dado que ele também está a passar por um processo vinculativo com a criança. É pena que não aconteça mais, até porque podem surgir ressentimentos no casal devido a esta situação."
A avó, a verdadeira mãe da mãe na verdadeira essência da expressão, nem sempre é uma boa opção também. "Algumas mães não conseguem desempenhar este papel porque não conseguem ver a filha a sofrer. Assim, saltam logo para o papel de avó e focam-se na criança", explica a pediatra.
Apesar de ser especialmente útil para grávidas ou mulheres que foram mães há poucas semanas, "O Quarto Trimestre — Os primeiros três meses de vida do seu bebé" é também para os pais, para os ajudar a compreender a luta mental das parceiras, ou para outras mulheres, nem que seja para se informarem e possivelmente ajudarem amigas e familiares a passar por este processo.
"Temos de tirar da invisibilidade estas mulheres, acabar com o sofrimento, ajudá-las ou encaminhá-las para quem as possa ajudar. Quero que as mulheres que leiam este livro saibam que não estão sozinhas, e que se sintam capacitadas para pedir ajuda", conclui Joana Martins.