Se a palavra bullying há muito que é conhecida e cada vez mais frequente quando se fala de temas relacionados com crianças e jovens, o bullying digital, mais concretamente os grupos de ódio virtuais, são uma tendência mais recente, e que continua a apanhar de surpresa pais e educadores.

Seja através de um grupo privado no Facebook ou de uma conversa no WhatsApp, a dinâmica destes grupos de ódio é adicionar vários jovens, por vezes até a totalidade dos elementos de uma turma, com um único propósito: gozar e humilhar um colega, esse sim deixado à margem destas conversas. A arma para o ataque é, neste caso, sempre o telemóvel.

“Há muitos miúdos com telemóveis, demais até”, salienta à MAGG Ana Branquinho, professora de Português do 3.º ciclo e ensino secundário. “A grande maioria dos alunos do 1.º ciclo já tem telemóvel. Não têm idade para ter, não deviam ter, mas a verdade é que os têm, e vão-se habituando a mexer em redes sociais, WhatsApp e tudo isso.”

Grupos de ódio entre miúdos: "O anormal do Manel, a filha da puta da Francisca. Os nomes são todos assim"
Grupos de ódio entre miúdos: "O anormal do Manel, a filha da puta da Francisca. Os nomes são todos assim"
Ver artigo

Para a professora de 35 anos, que tem uma carreira de 12 anos e leciona atualmente na Escola Secundária de Ponte de Lima, a dependência dos jovens em relação a estes aparelhos está a crescer cada vez mais, e é transversal a crianças mais novas e adolescentes.

“Passo pelos meus alunos no corredor, durante os intervalos, e vejo-os todos agarrados ao telefone. São as redes sociais, as conversas, os jogos. Os jogos então, tornaram-se uma obsessão para alguns miúdos. Estamos a falar de adolescentes em grupo, todos com o telemóvel nas mãos, quando podiam estar a falar, a discutir assuntos do dia a dia, o que for”.

Proibir os telemóveis pode acabar com o bullying digital?

Os grupos de ódio são criados através dos telemóveis, mas será que a solução passa por proibir a utilização dos telefones em recinto escolar — e não apenas nas aulas?

“Sim e não, digamos que é um ‘um pau de dois bicos’”, responde Ana Branquinho. “É verdade que se a utilização fosse proibida a 100% nas escolas, o bullying digital cessava em recinto escolar, e até podia fazer com que o foco de atenção durante o período em que não tivessem acesso aos telemóveis fosse outro, permitindo um relacionamento mais próximo com os colega e o distanciamento dos ataques virtuais. Se pensarmos dessa forma, sim, podia ser benéfico.”

Filipa Jardim da Silva, psicóloga clínica, também concorda que pode existir um lado bom a uma proibição mais radical. “Acredito que uma medida desta natureza pode limitar o bullying digital, embora naturalmente não o consiga extinguir. Limita na medida em que as crianças e jovens estão muitas horas por dia nas escolas”, explica à MAGG a especialista.

Filipa Jardim da Silva, psicóloga clínica, acredita que 'o excesso de tempo em frente aos ecrãs está a interferir cada vez mais com a capacidade de foco e concentração das crianças'
Filipa Jardim da Silva, psicóloga clínica, acredita que 'o excesso de tempo em frente aos ecrãs está a interferir cada vez mais com a capacidade de foco e concentração das crianças'

Na ótica da psicóloga clínica, “se nesse largo intervalo de tempo os jovens forem convidados a conviverem uns com os outros sem tecnologia presente de forma permanente, isso naturalmente que impacta no tipo de uso que fazem dos telemóveis, e pode contribuir para uma quebra de hábito, ou pelo menos de utilização compulsiva destes equipamentos”.

Mas Ana Branquinho reforça o outro lado da questão: “Mesmo a existir uma proibição no recinto escolar, não há nada que impeça o recurso aos telemóveis assim que os alunos saem da escola. Pegam no telefone e o bullying continua a existir. E também não nos podemos esquecer que o ‘fruto proibido é o mais apetecido’, por isso a medida até podia fazer com que o bullying ganhe outras dimensões”.

Para a professora do 3.º ciclo e do ensino secundário, o verdadeiramente importante nesta questão dos telemóveis é a utilização consciente. “O que podemos fazer, e fazemos, enquanto professores, é apostar nas ações de sensibilização entre os jovens, educando-os para o uso destes aparelhos. E isto sempre em conjunto com os pais, até porque não vale a pena a escola trabalhar muito a questão se em casa não existir monitorização e um diálogo aberto sobre os temas.”

Ana Branquinho acredita que um trabalho para a utilização consciente dos telefones resultará melhor do que uma proibição, mas admite a gravidade dos grupos de ódio, fenómeno para o qual os professores têm poucas respostas.

“É complicado, porque nós só sabemos do que se passa se algum aluno recorrer a nós ou falar connosco. De uma forma geral, tenho consciência de que é algo que se passa nas escolas, mas não tenho um contacto muito direto com estes grupos. Em tempos já aconteceu ter um aluno que sim, me veio contar que andava a circular um grupo de WhatsApp em que gozavam com uma colega, e claro que falei com a turma e agi após ter conhecimento da situação, mas é raro. Enquanto professores, e em relação aos grupos de ódio, é muito difícil termos conhecimento do que se passa a menos que nos seja transmitido.”

Os benefícios e as contrariedades da proibição dos telemóveis nas escolas

De acordo com o gabinete do Ministro da Educação, “as escolas têm autonomia” para proibir os telemóveis no seu recinto, e cada escola pode colocar a mesma proibição no seu regulamento interno, quer sejam públicas ou privadas.

No entanto, e apesar de ser transversal que a grande maioria das escolas portuguesas proíbem o acesso aos telefones dentro da sala de aula, Ana Branquinho não tem conhecimento de nenhuma instituição que proíba a 100% estes aparelhos no recinto. “Pode existir essa proibição no regulamento interno, como já acontece em alguns países, mas creio que não há nenhuma escola a nível nacional que o faça”, salienta a professora.

Deixando de lado o que uma proibição dos aparelhos poderia fazer em relação ao bullying digital, existem outros benefícios em deixar os telemóveis longe das escolas.

Para a psicóloga Filipa Jardim da Silva, a proibição podia “promover uma presença no momento presente mais inteira, favorecendo que as crianças interajam umas com as outras com mais atenção e se relacionem com o meio envolvente com mais curiosidade, estimulando assim a sua criatividade, imaginação e competências interpessoais”.

A especialista também refere que “o excesso de tempo em frente aos ecrãs está a interferir cada vez mais com a capacidade de foco e concentração das crianças, para além de diminuir as suas capacidades de empatia e inteligência emocional”.

Histórias de bullying e como o prevenir. "É preciso acabar com a palavra queixinhas"
Histórias de bullying e como o prevenir. "É preciso acabar com a palavra queixinhas"
Ver artigo

Outros benefícios passam por “delimitar as crianças a um espaço físico, por oposição a um espaço virtual sem limites (mas que cabe num telemóvel com internet), que pode contribuir para que os agentes educativos sejam capazes de realizar um trabalho mais eficaz no que diz respeito à sua educação, proteção e estimulação”.

A psicóloga clínica também refere que tem de existir uma preocupação com as desigualdades, que são promovidas através destes aparelhos: “Nem todas as crianças e jovens têm a possibilidade de ter um telemóvel. A tecnologia tende a ser, muitas vezes, um fator que distingue de forma significativa o poder económico das famílias, podendo resultar na discriminação de uns e exaltação de outros”.

Mas proibir os telefones também pode ter um lado negativo. “Os telemóveis constituem, atualmente, um instrumento de ligação direta entre as crianças e as suas famílias, pelo que bani-los quebra este acesso imediato”, explica Filipa Jardim da Silva, que também refere que estes aparelhos “podem constituir um recurso didático em complementaridade a outras estratégias de ensino em sala de aula”.

A psicóloga Filipa Jardim da Silva refere que a tecnologia pode ser um fator que distingue o poder económico das famílias, favorecendo a discriminação entre jovens
A psicóloga Filipa Jardim da Silva refere que a tecnologia pode ser um fator que distingue o poder económico das famílias, favorecendo a discriminação entre jovens

Esta é uma opinião partilhada pela professora Ana Branquinho, que também consegue ver pontos positivos na utilização dos telefones em contexto escolar, mesmo dentro da sala de aula.

“Se estes aparelhos forem bem utilizados, de uma forma consciente, podem ter vários benefícios”, salienta a professora de Português, que destaca a utilização dos telemóveis como ferramentas de pesquisa, por exemplo.

“Se eu tiver uma turma a fazer um trabalho de grupo, com necessidade de fazer pesquisa, utilizar os telefones como recurso, dado que acedem à internet facilmente, é muito mais simples do que mudar uma turma inteira para uma sala de TIC [Tecnologias de Informação e Comunicação], que nem sempre estão disponíveis.”

Ana Branquinho também reforça que os telefones podem ser utilizados para fazer trabalhos mais interativos ou até para responder a questões de escolha múltipla: “A utilização em sala até pode ser benéfica, como recurso, usando uma ferramenta de que os jovens gostam em prol da aprendizagem. E isso resulta, tem é de ser muito bem trabalhado”.

No entanto, a educadora reconhece que, por mais que exista uma aposta na educação consciente do telefone, existirão sempre contrariedades.

“Claro que a partir do momento em que 30 alunos me pegam no telefone ao mesmo tempo, eu não consigo ver o que estão a fazer. E também sei que mesmo que consigamos trabalhar esta questão, existirá sempre uma minoria que não vai fazer o melhor uso do telemóvel. Mas se conseguirmos consciencializar os jovens, a potencialidade desta ferramenta pode ser muito positiva, tanto que há muitos países que já os usam como recurso didático”, conclui Ana Branquinho.