Não faço ideia se André Filipe é um ator do caraças, um puto parvo que tem a mania, um jovem adulto obcecado pela fama ou um rapaz com um distúrbio mental. Nem sequer sei se esse distúrbio pode um surto psicótico, o viver numa realidade paralela ou qualquer outra patologia ou problema a que os especialistas darão um nome técnico. Uma coisa eu sei: observando todos os comportamentos do concorrente expulso do “BB — A Revolução” fico com dúvidas. Muitas dúvidas. Fico eu, ficam milhares de telespectadores e ficam também muitos psicólogos e psiquiatras por esse País fora.
Ainda bem que ficamos todos com dúvidas, porque a saúde mental não é uma ciência exata como a Matemática em que a soma de 1 + 1 dá sempre 2. É absolutamente chocante ver especialistas em saúde mental, que nunca observaram este participante, que nunca o consultaram, nunca o acompanharam, não lhe conhecem o histórico, traçarem verdades que vendem como absolutas sobre este tema. Ou seja, o que para todos nós (leigos e não leigos, porque entre este “nós” também haverá muitos psicólogos e psiquiatras) são dúvidas e mais dúvidas, para os especialistas que usam do tempo de antena que a TVI lhes dá o comportamento de André Filipe só lhes deixa certezas: o rapaz é só um jogador que devia levar umas palmadas para ver se tem juízo (uau, que pedagógico).
Basta isso, uma dúvida, tão só existir essa dúvida, para haver a obrigação de agir e proteger um possível doente. Existe a possibilidade de André Filipe ser um doente. E é tudo o que é preciso: a tal dúvida. Existindo, não se pode especular, não se pode desvalorizar, não se pode brincar, é preciso agir. Falar de uma possível doença do foro mental de um concorrente que está a ser exposto perante milhões de pessoas de forma afirmativa, leviana, sem qualquer tipo de observação profissional vale tanto como um médico dizer a uma pessoa que nunca observou que ela está com uma gripe porque a viu espirrar. Não se faz, não se pode fazer, é perigoso que se faça. Mas uma possível doença, distúrbio, patologia do foro mental não é uma gripe, pode ser muito mais grave do que uma gripe. Pode custar a vida de uma pessoa, ou de várias.
Voltemos à parte da comparação entre a saúde mental e a Matemática. Qualquer professor de Matemática, independentemente do grau académico que possa ter, irá confirmar que 1 + 1 são 2. Um diagnóstico de um psicólogo, psiquiatra ou até de uma equipa de especialistas não é, necessariamente, a verdade absoluta sobre um paciente. Isto é válido para a saúde mental, como para a saúde física. É por isso que tanta e tanta gente pede segundas opiniões médicas. E tantas e tantas vezes recebem opiniões diferentes. Na Psicologia, então, isto é muito comum. Mas atenção: estas opiniões, repito, são sempre formuladas por pessoas que observam os seus pacientes, muitas vezes durante dias, semanas, meses, anos. E às vezes enganam-se.
Mas agora vamos à forma como dois especialistas em saúde mental que comentam o programa trataram este tema. Começo por Quintino Aires, que falou no programa “Extra” sobre o que se estaria a passar com André Filipe. Para ser mais fácil desconstruir a mensagem do psicólogo, irei expor as citações uma a uma. Primeira:
“Ele não precisa de um psicólogo, precisa de um pai que lhe dê umas boas palmadas para o acalmar”.
Então, para Quintino Aires, que nunca observou André Filipe como especialista, o rapaz “não precisa de um psicólogo, precisa de um pai”. Só certezas. Não há sequer aqui a sugestão de dúvida, ou aquela coisa que ficaria bem a um psicólogo de dizer que está a falar sem conhecer a pessoa e sem a observar. Não. Quintino Aires diz, com certeza, que André Filipe não precisa de um psicólogo, precisa de um pai. Mais: precisa de um pai “que lhe dê umas boas palmadas para o acalmar”. Ou seja, na opinião deste psicólogo, os miúdos parvos devem ser acalmados à chapada. Muito bem.
Segunda frase de Quintino Aires:
“Ele é parvo. Isto não tem nada de perturbação psicológica. Não há aqui nenhuma patologia”.
Certezas, certezas, certezas. Ele “é parvo”. Um psicólogo chamar uma pessoa de “parva” só porque está a ter um comportamento errático é, no mínimo, irresponsável. Ou parvo, para usar a mesma palavra. “Isto não tem nada de perturbação psicológica”, diz Quintino, sem alguma vez ter observado o concorrente. “Não há aqui nenhuma patologia” vai pelo mesmo caminho: certezas, sem pôr, sequer, a hipótese, de o que está a dizer não ser verdade.
Mas a solução para o problema de André Filipe, proposta por Quintino Aires, não se fica pelos tabefes no rapaz (dados pelo pai, claro, porque vivemos no ano de 1938). Há outra solução mais eficaz: “Por favor, ponham-no três dias fechado no bunker”, pediu o psicólogo à produção. Portanto, a solução para lidar com André Filipe seria, na opinião de Quintino Aires, dar-lhe umas chapadas e fechá-lo três dias num bunker. Certíssimo.
Passemos à segunda especialista, a psicóloga Susana Dias Ramos, que comentou o caso de André Filipe no programa “Extra” desta quarta-feira à noite, após a expulsão do concorrente. Repare-se na diferença de discurso, e nas contradições. Primeira frase:
“Eu não tenho dados suficientes para avaliar o André Filipe”. Muito bem. É isto, e só isto, que um especialista pode e deve dizer sobre este caso, quando não conhece o paciente, a pessoa, o seu historial, nunca o observou, não teve qualquer consulta com ele. Mas Susana Dias Ramos não se fica por aqui. Frase dois:
“Adoraria fazer uma bateria de exames para ver o que é que se passa ali”. Ou seja, Susana Dias Ramos acha que deveria ser feita uma bateria de exames “para ver o que se passa ali”. Logo, admite que se possa passar algo, o que é absolutamente normal tendo em conta o que toda a gente viu. Só que a psicóloga termina esta mesma frase dizendo o seguinte:
“Mas para mim, que assisto aqui de fora, isto é jogo, ponto final parágrafo”. Como assim ponto final parágrafo? Isso não é uma expressão absolutamente afirmativa que elimina as dúvidas levantadas anteriormente? Então e a bateria de testes que ela gostava de fazer? A sugestão de dúvida passou, de repente, a certeza absoluta? Mas há mais:
“Ele não regista nenhuma atitude de uma patologia séria”.
Como é que uma psicóloga pode afirmar isto sem observar uma pessoa, unicamente com base em imagens que passam na televisão? Pode suspeitar, claro que pode. Pode ter uma opinião, claro que pode. Não pode, nunca, ter certezas, ser taxativa, porque a sua profissão e ética profissional a isso obrigam.
E se eles estiverem errados? E se nos convencermos a todos de que André Filipe é só um miúdo parvo à procura de fama e, depois, ele revelar ser um doente com uma perturbação mental que possa levar a uma tragédia? E se este miúdo parvo chegar a casa, perturbado com tudo o que tem vivido, abrir as redes sociais e perceber que foi alvo de chacota de milhares de pessoas, que é o tema de conversa nacional, e humilhado por toda a gente? Como vai reagir? O que vai fazer? Todos os especialistas do mundo podem ter a sua opinião sobre isto, mas nenhum terá certezas. E sem certezas, é preciso agir com todo o cuidado, porque estamos a falar de uma vida, de várias vidas que podem estar em jogo.
Recordo, sucintamente, um episódio que marca a história da criminologia em Portugal. Em 1987, Vítor Manuel Jorge, um homem que há vários meses era seguido por um psicólogo, e a quem revelava vontade de matar pessoas, foi avaliado pelo especialista como alguém que procurava apenas atenção. Era inclusive alvo de chacota por parte do próprio psicólogo, que insistia em desvalorizar o que ele lhe dizia em consulta.
Na madrugada de 1 de março desse ano, Vítor Jorge assassinou a mulher, a filha mais velha, a mulher por quem estava apaixonado, o namorado dela, e mais três amigos do casal, na Praia do Osso da Baleia, na zona da Marinha Grande. Ficou conhecido como o Mata-Sete, ainda hoje o maior assassino em massa da história criminológica portuguesa.
Após o crime, e a sua detenção, Vítor Jorge foi observado e analisado durante semanas pela equipa do catedrático e psiquiatra Eduardo Cortesão, dos hospitais da Universidade de Coimbra. O diagnóstico: estávamos perante um doente esquizofrénico, que precisava de internamento e tratamento urgentes. Só que o Ministério Público, pressionado por uma opinião pública que exigia uma condenação pela pena máxima, não aceitou esta tese apresentada pela defesa e encomendou um outro relatório ao centro de saúde mental de Leiria. Observado durante apenas um dia, esta equipa concluiu que nada se passava de errado com Vítor Jorge, que era imputável e deveria ser responsabilizado pelos seus atos.
Vítor Jorge acabou condenado à pena máxima de prisão e nunca foi tratado à esquizofrenia. Tentou matar-se variadíssimas vezes na prisão. Acabou por morrer, já depois de ter sido libertado, num hospital psiquiátrico perto de Paris.
Especialistas de um lado tiveram uma opinião, especialistas de outro lado tiveram uma opinião totalmente diferente. Não há verdades, há dúvidas. E basta existir uma sugestão de dúvida para haver a obrigação de agir, de proteger um possível doente, e, jamais, explorar essa mesma possível doença em nome de audiências, ou fazer dessa possível doença alvo de chacota pública.
E se André Filipe for, de facto, um doente com uma perturbação mental? E se não souber lidar com tudo o que está a viver por estes dias? E se daqui a uns tempos isso custar vidas? Vamos apontar o dedo a quem? Vamos fazer o quê? Vamos continuar a rir? Vamos continuar a achar que o problema era falta de umas chapadas na infância? Não. Não vamos fazer nada, porque tudo o que possamos fazer vai valer zero.
Aquilo que o “BB 2020” fez de positivo pela discussão da importância da doença mental, o “BB — A Revolução” está a destruir. E é pena. E é sobretudo importante que toda a gente com poder de fazer qualquer coisa ponha a mão na consciência e faça, de vez, o que deve ser feito, o que é correto fazer-se. O showbizz nunca poderá estar acima da vida de ninguém.