São tantas as máscaras descartáveis que quase nos esquecíamos da sustentabilidade, não é meus amigos? Pois bem, cá estou eu de volta, qual voz irritante de mãe a dizer "eu bem te disse para levares um casaco".
O casaco já não é preciso, que agora é ver tudo o que é varanda com nesga de sol a virar areal improvisado. Mas aí, parece que ouvimos o clássico "Já puseste protetor?". A voz de mãe está por todo o lado, e ainda bem, foi com ela que aprendemos o "não sais da mesa até teres acabado tudo o que tens no prato".
E é que não saio mesmo, mas já não é por obrigação. É mesmo porque, ao contrário do que acontecia nessa altura, agora como o que eu quero, sem que nada se desperdice. Mas quando eu digo nada, é mesmo nada.
Até há pouco tempo, o meu caixote do lixo comum era do tamanho de um balde da praia e para lá só iam cocós de gato e algumas cascas de legumes. Agora, até essas cascas dão trinta mil voltas na minha cozinha até ao destino final.
Primeiro, tenho para mim que descascar batatas é o mesmo que passar cuecas a ferro. Como assim há pessoas que passam cuecas a ferro? Há sim e até já namorei com uma. Namorei, passado. Já dei para o peditório dos OCD dos vincos.
E a mesma coisa para as batatas, as cenouras e restantes companheiros da profundidade da terra. Se forem biológicos, tanto melhor, mas se não forem é desinfetar — o COVID não se foi embora amigos, botem vinagre nisso — e passar uma escova de pente grosso até ficarem limpos.
Mas pronto, caso não confiem nos legumes ou no vosso paladar para apreciar esta comida servida à séria, decasquem tudo, mas não deitem ao lixo. Calma, agora é que começa a diversão.
Tenho dois sacos no congelador que vou enchendo até não dar mais. Num ponho as tais cascas que não dá mesmo para comer, tipo as de cebola — a minha voz está ótima, não me venham cá com chás para afinar as cordas vocais — e com elas faço caldos, e no outro os talos mais grossos dos legumes que, até podem não ser muito agradáveis num salteado, mas ficam ótimos numa sopa. Falo aqui daquela parte mais rija dos brócolos ou das couve-flor ou dos ramos das aromáticas, por exemplo.
Fazer o caldo não é mais do que deitar numa panela a água com esses restos de legumes e deixar cozer. Esse líquido de ouro dá sabor a estufados, risottos e até à sopa, também ela feita muitas vezes com os legumes mais feios ou com as partes mais duras de cada um.
Pensavam que ficávamos por aqui? Não, até porque aquelas partes mais rijas que pomos no caldo, ficam moles com a cozedura e podem ser incorporadas na sopa. Sinto que podia ficar nisto horas e ainda ia descobrir que mais duas ou três transformações das cascas e tinha a vacina para o COVID na mina cozinha.
Com as ramas da beterraba e as folhas da couve flor faço salteados, aprendi recentemente que as folhas do nabo podem ser transformadas em esparregado, e com as cascas e as sementes de fruta faço chás, vinagres e chutneys.
Neste laboratório que é a minha cozinha, ontem decidi arriscar. Mas arriscar à grande, naqueles saltos de fé que damos quando a acreditar que tudo vai correr bem — ou que vai dar em merda. Não deu.
Tinha no cesto das bananas — sim, nunca misturem bananas com o resto da fruta se querem que ela não apodreça rapidamente — três almas esquecidas, mas com aquela maturação ótima para quem as quer usar para adoçar.
Descasquei, cortei, misturei as farinhas e as tâmaras e pumba, em trinta minutos tinha um Bolo de Banana.
As cascas, coitadinhas, ali pousadas no balcão, à mercê do meu gato que, vá-se lá saber como, até de limão gosta. Decidi dar-lhes dignidade na hora da morte e aventurar-me a cozinhar as cascas. É verdade, ontem o meu jantar foram cascas de banana. E estou aqui hoje para vos contar a história, por isso vão sem medo.
À casca raspei a parte branca interna, para tirar o sabor de banana. Essa parte branca, juntei à mistura das papas de aveia para o pequeno-almoço, onde o sabor de banana não se quer escondido.
Percebi então que a casca da banana em si, é uma espécie de tofu: absorve todos os sabores que lhe são adicionados. Uma espécie de tela em branco, estão a imaginar as possibilidade artísticas?
Vai daí que para a frigideira vai cebola e azeite, tomate e pimento aos cubos e, quase que num slow motion, as cascas de banana cortadas bem fininhas. Ajusta-se o sal e a pimenta, mistura-se pimentão fumado e molho de soja — nada disto tem receita, é a arte do improviso — e já está.
Servi com arroz basmati e couve roxa marinada e fiz um brilharete. Até para a pessoa com quem divido mesa — e outras partes da casa — que, desconfiado a olhar para as cascas de banana, me perguntava o que raio ia ser o jantar. Apeteceu-me sacar da tal voz de mãe e responder o clássico "Línguas de perguntador", mas ele nasceu no Zimbabwe e para "Lost in Translation" já basta o filme.