A criança está a subir o escorrega. Quem assiste, com medo que caia, grita-lhe "Não". Além da frustração, qual a primeira coisa que passa pela cabeça da criança a seguir? Subir o escorrega outra vez, mais que não seja para marcar posição e testar limites.

Pensamos que a coisa muda muito com a idade, mas a verdade é que a vontade de questionar os "nãos" que a vida nos dá continua. E a vontade de subir escorregas sem autorização também.

O que pode e deve mudar nesta passagem de criança para a vida adulta é a forma de dizer e de ouvir este "não". Se cresceu com muitos daqueles irritantes "Porque não" ditos pelos pais quando já não podem ouvir as nossas reclamações, transforme-se num adulto que explica essas negações. "Não podes subir ao escorrega porque choveu, está molhado e vais escorregar". Pronto.

Esta delicadeza na resposta serve para tudo. E olhem que quem vos escreve é uma pessoa muitas vezes mal interpretada pela voz alta, grave e, por vezes, ríspida, mesmo quando não é essa a intenção. Mas nisto da sustentabilidade, dificilmente me apanham em falso.

"Não, não vou querer esse saco, tenho aqui os meus". "Não, não precisa de me dar um cartão, eu aponto o seu número no telemóvel". "Não vou precisar do saco de pano, posso devolver?". O "não" é uma palavra incrível, garanto-vos, e pode trazer-vos muitos sins nesta vida.

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Ao dizer que não àquele saco de plástico, digo sim a mais uns centímetros quadrados de mar sem resíduos. Ao dizer que não àquele cartão de visita, digo sim a uma carteira mais leve e a um mundo que inventou a agenda do iPhone para alguma coisa. Ao dizer não àquele saco de pano dado em tudo o que é conferência, digo sim a que seja reaproveitado num próximo evento.

A primeira vez que assisti a um "não sustentável", como gosto de lhe chamar, foi num evento onde estava a Joana Guerra Tadeu, mais conhecida como a Minimalista. Com delicadeza, ouvi-a a recusar um tal cartão de visita, quando todo o resto do grupo estendeu a mão para o receber — e, cá entre nós, deitar fora cinco minutos depois. Aquilo ficou-me e desde aí que penso sempre duas vezes antes de voltar a estender a mão. E mais? Normalmente é nos meios empresariais que isto mais acontece, os mesmos que são movidos a gadgets de última geração. Apontem o número no telemóvel, pessoal. Toda a gente sabe que ninguém guarda o cartão de ninguém.

Mais tarde, falei com Bea Johnson, a guru do zero waste, que me voltou a falar do poder do "não" para quem quer evitar o desperdício,  O “não” é uma palavra poderosa para quem quer evitar o desperdício. "Estamos habituados a aceitar tudo o que nos dão, principalmente se for de graça", admitia ela, em entrevista à MAGG. Mas Bea há muito que aprendeu a dizer que não à caneta grátis, ao saco plástico e à comida que venha embalada ou servida sem ser em loiça verdadeira. Só assim é capaz de colocar num frasco o lixo produzido pela família durante um ano.

Em Portugal, temos a Ana Milhazes, que desde 2017 ainda não foi capaz de encher sequer um frasquinho com os seus resíduos. É louca? Li o livro dela num dia, por isso se é louca é uma louca interessante. É hippie? Bom, acabou de se mudar para o Alentejo, mas pelo que sei vai morar numa casa feita de tijolo, e se plantar alguma coisa no jardim devem ser só coentros. É diferente? É, ainda que ela ache que não. Mas ela acha que não porque, tal como diz em entrevista à MAGG, está só a ser a Ana. A Ana que diz que não aos guardanapos descartáveis dos restaurantes, que pede o café só em chávena, sem pires nem colher. A Ana que viaja com a vida numa mochila e a que diz que não à comida do avião, porque vem embalada.

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A Ana faz tudo sem vergonha e com uma naturalidade que transforma o estranho em normal. E ainda que numa escala equivalente à diferença entre uma colina de Lisboa e os Pirinéus, eu cá faço a minha parte.

Já ouvi muitos "Olhe que não paga mais por isso" ou um "leve, é grátis". Mas digo que não, obrigada. E se há uns anos tinha as pessoas olhar com estranheza para os meus sacos de rede nos quais pesava a fruta no supermercado, agora recebo mensagens destas:

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