Os portugueses são do caraças. Ok, podemos não ser dos mais rápidos a reagir e a história recente diz-nos que preferimos apagar fogos em vez de cortar mato. E protetor solar? Eh pá, prefiro aftersun.
Somos aquela espécie de adolescente que não consegue acordar antes do meio-dia. Quando o faz é devagarinho, a resmungar, com olhos cheios de remelas e a boca a saber a toda a cerveja que bebemos ontem. Mas assim que toca a sirene, oh meus amigos. Em cinco minutos vestimos um fato de treino, calçamos umas botas, lavamos a cara com água fria e estamos prontos a ir para a Guiné defender uma terra que não é nossa.
A pandemia não é uma guerra, ainda que a ideia romântica de um inimigo-que-não-se-vê seja também bem portuguesa. Fizemos revoluções com cravos e tivemos um Lobo Antunes a escrever cartas de guerra tão bonitas que quase nos fazem esquecer da barbaridade que foi mandar miúdos de 18 anos para as trincheiras. Somos uns românticos, não há volta a dar.
Mas somos também uns MacGyver, daqueles que com um clip fazem uma casa. Ou que com uma mistura de pão duro, azeite e alho faz uma açorda.
Podemos mesmo usar a cozinha como um espelho do nosso desenrascanço. Não havia dinheiro para grandes pequenos-almoços? Vinho, açúcar e pão numa tigela e as sopas de cavalo cansado davam a força necessária para uma manhã no campo. Ou então água de unto, numa mistura de água, pão e gordura de porco. Alguém falou em porco? Comemos desde o nariz às patas — e nem vamos falar do que se faz com as entranhas, que o sarrabulho devia ser caso de estudo internacional.
Esta arte de fazer muito com pouco volta sempre que é preciso. Só há um tomate, meia cebola e três espargos já murchos no frigorífico? Salteados são uma delícia. No armário já só há um resto de arroz no fundo do pacote e no cesto dos legumes meia cenoura e um pimento? Arroz com todos, funciona muito bem cá em casa. Fecharam-nos as portas e não podemos servir refeições? Em dois dias viramos a cozinha do avesso e levamos a comida à casa das pessoas.
Parece assim fácil como juntar arroz com restos e servir não é? Mas o que a restauração em Portugal está a fazer é digno de aplausos às dez da noite, mas também às oito da manhã ao meio dia ou a qualquer hora em que a fome aperta e sabemos que estamos à distância de um telefonema até que um ramen quente nos toque à campainha.
É que em 48 horas, António Carvalhão e João Ferreira, transformaram o Ajitama, aquele que é um dos mais conhecidos restaurantes asiáticos de Lisboa num serviço de entregas de um prato que, habitualmente se come depois de uma preparação pensada ao detalhe.
E não é que tenha deixado de ser assim. Aliás, esta dupla estudou todas as opções e optou por dividir o prato em dois recipientes: num vai o caldo a ferver que recomendam que seja novamente aquecido em casa. Noutro estão os noodles cozidos, já com os toppings na mesma disposição que usam no restaurante.
O Rui e a Maria, que abriram o primeiro restaurante sem desperdício do País, transformaram o Kitchen Dates num serviço de entregas. Passaram a trabalhar só os dois e, por isso, começam às 8h e só terminam por volta da meia-noite. É que além de cozinheiros, são também estafetas e parte do dia é passado a distribuir os pratos que fazem em conjunto logo de manhã. Rui usa a mota que já tinha e uma mochila emprestada para as entregas e Maria fica a tratar dos pedidos de take away e a preparar o pão para o dia seguinte.
O Hugo Brito, chef do Boi Cavalo, viu o seu restaurante que funciona apenas com um menu de degustação transformado um take away de frango frito e pho. Em três tempos, o Boi-Cavalo passou a Phoi-Cavalo & Chicken e serve aquela comida de conforto e que até sabe melhor comida à mão.
O Pigmeu, restaurante em Campo de Ourique dedicado à carne de porco, começou por servir em regime de take away e delivery assim que o estado de emergência ditou o fecho do restaurante ao público, mas juntou outra componente (que, aliás, acabam de anunciar que passa a ser a única). Agora são também uma mercearia, com entregas de pão, carne, legumes, queijos, fruta, charcutaria, doces, conservas e vinho. As entregas de refeições ao domicílio foram suspensas este fim de semana depois de perceberem que vendem mais mercearia do que pratos de carne de porco. Tal como todos nós, estão a viver ao sabor do que dita um mundo às apalpadelas.
Estava prestes a pôr um ponto final na crónica quando me cai um email com o título: "Restaurante Dom Queijo adapta-se e cria novos serviços". Além de serviço de take away e delivery, dão aulas de culinária através do Instagram e do site — atenção que hoje, 14 de abril, a receita é de croquetes de parmesão. As refeições resultantes destas emissões culinárias em direto são feitas em grande escala de forma a serem entregues pelos proprietários do restaurante aos profissionais de saúde do Hospital Curry Cabral, aos utentes do Centro Paroquial do Campo Grande, da PSP do Campo Grande e dos Bombeiros Sapadores de Alvalade.
Não é a praia de Carcavelos que merece uma enchente quando esta quarentena acabar. Nem o Colombo, nem o Estádio da Luz. Encham a mesa destes restaurantes e, no entretanto, estipulem um dia por semana (ou por mês, que ninguém está a ganhar com isto) para encomendar comida dos restaurantes que considerem que merecem o vosso apoio. Eu já fiz uma lista nas notas do iPhone. Já risquei o Botanista e o Prado, mas é provável que lá volte. O crumble de caramelo e frutos vermelhos de um e os cogumelos pleurotus com molho de pimentão de outro merecem o meu aplauso sem hora marcada.