Tinha 11 anos quando aconteceu o ataque às Torres Gémeas. Como toda a gente, sei exatamente onde estava — na sala, a fazer zapping, aborrecidíssima por não estar a dar nada de jeito na televisão. De repente, o som de pessoas aos gritos invadiu a divisão: homens e mulheres fugiam de uma nuvem densa de fumo, desesperados, desorientados, cobertos de pó. Estranhei que a TVI estivesse a dar um filme àquela hora, por isso mudei de canal. Só que na SIC o “filme” era o mesmo. Na RTP, também.

Chamei a minha mãe, disse-lhe que um avião tinha chocado contra uma torre em Nova Iorque. Ela respondeu: «Isso é impossível, viste mal». Não vi. E não era. Fiquei agarrada à televisão até à noite. Embora não percebesse muito bem o que estava a acontecer — nunca tinha ouvido falar de bin Laden, do Alcorão, da Al-Qaeda ou dos ensinamentos de um profeta chamado Maomé —, não conseguia tirar os olhos do que estava a acontecer.

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Nos anos seguintes, vivi com medo dos «árabes», aquela gente estranha que fazia bombas a partir de relógios (aqui já posso ter sido influenciada pelo "CSI"), deixava mochilas em estações de metro e matava malta em nome de Alá para ir ter com virgens no céu. Foi esta a mensagem que marcou o ocidente na primeira década do século XXI, e foi com ela, também, que eu cresci.

Aos 16 anos, decidi que queria perceber se seria mesmo assim, impulsionada pela vontade de escrever um livro de ficção sobre o tema. Não era. Mas desfazer o preconceito por completo levou vários anos, assim como descobrir todas as fake news que comemos às colheres cheias naquela altura. Armas nucleares no Iraque? Ah, afinal não. Árabes a festejar a queda das torres? Brincadeirinha! Na verdade as celebrações diziam respeito a outra coisa qualquer.

Vinte e dois anos depois, penso que não será necessário explicar a ninguém que há uma diferença abismal entre terroristas e muçulmanos, fanatismo religioso e o islão, jihad e guerra santa. Oi? Não? Ainda não é claro para toda a gente? Pronto, OK, então vou dar uns exemplos.

André Ventura tinha uma coelha chamada Acácia e gostava muito, muito dela. Isto significa que todas as pessoas que têm coelhas e gostam muito delas passam os seus dias aos berros, a pedir às pessoas para se demitirem, são obcecados por ciganos e adoram a palavra subsídio-dependente?

Não.

Marcelo Rebelo de Sousa ficou tão feliz, mas tão feliz quando viu o Papa em terras lusas, que quase lhe arrancou os dois bracinhos a cumprimentá-lo. Isso quer dizer que todos os cristãos saúdam personalidades da Igreja em esteroides?

Não.

Última: Kim Jong-un vai à Rússia em setembro, para se encontrar com Vladimir Putin. Lá porque são os dois malucos, devemos ficar preocupados? Bem, na realidade devemos, o líder da Coreia do Norte quer analisar a possibilidade de fornecer armas e cooperação militar à Rússia, para em troca receber satélites e submarinos. Este não é um bom exemplo.

Mas vamos voltar à vaca fria.

O primeiro dia do ano letivo francês ficou marcado pela proibição de todas as alunas muçulmanas usarem a abaya, um vestido comprido que cobre os braços e as pernas. Contrariamente ao que alguns meios de comunicação social escreveram, a abaya não tapa a cabeça ou as mãos, só o corpo. E não tem necessariamente um significado religioso (se tiver, tenho de repensar os meus vestidos de praia).

Antes disso, o governo francês já tinha proibido o hijab (véu que tapa o cabelo, orelhas e pescoço) e o burkini (fato de banho que cobre o corpo da cabeça aos tornozelos), entre outros símbolos religiosos.

«A laicidade não é um ato de coação», disse o ministro da Educação francês, Gabriel Attal. O presidente francês Emmanuel Macron foi mais longe e defendeu que «a escola deve permanecer neutra. Eu não sei qual é a sua religião e você não sabe qual é a minha religião». Mais: na escola pública, ninguém pode usar peças de vestuário que sejam consideradas «excêntricas», pelo que o governo pode vir até a implementar o uso obrigatório de uniformes escolares ou códigos de indumentária.

Quando eu tinha 15 anos, tive uma fase gótica em que comprei uma série de collants de rede, cortei-os na zona da púbis e vesti-os como se fossem um top com mangas. Logo a seguir decidi ir para a fase arco-íris e fiz o mesmo com uns collants coloridos. A Marta adolescente estava tramada se atualmente estudasse em França, porque, acreditem, não havia ninguém mais excêntrico do que eu.

Caro leitor, eu não entendo porque é que uma mulher quer cobrir-se da cabeça aos pés, e porque é que isso é sinal de modéstia. Não entendo, não concordo, acho que uma coisa nada tem que ver com a outra. Mas respeito. E respeito sobretudo uma mulher que diz que quer fazê-lo. Se é fruto da sua cultura, do que foi ensinada? Claro que sim. E depois? A mim também me ensinaram que não é bonito ir para a rua só de avental. E hoje não vou, porque de facto não quero.

Este tema é complexo, todos o sabemos, e seria impossível falar sobre tudo neste espaço. Mas o que quero deixar bem claro, e foi por isso que comecei com a memória do 11 de setembro, é que, tantas décadas depois, permanecemos a diabolizar uma cultura que não conhecemos, não queremos conhecer e só compreendemos porque metemos todos no mesmo saco e dizemos “são aquilo”. E não há espaço para tentar perceber que se calhar não são.

Dizer que o Islão trata mal todas as mulheres é demonstrar um total desconhecimento pelo que é o mundo, a cultura e a religião islâmica. As diferenças podem ser abismais de país para país e, garanto-vos, se forem olhar para a História, ficarão surpreendidos. Que existem mulheres altamente reprimidas pela cultura islâmica? Sem dúvida alguma. Mas sem dúvida alguma também que existem outras que não o são de forma alguma.

E se essas decidirem cobrir o corpo?

Sou feminista. Já o disse várias vezes, e repito-o agora porque é importante fazê-lo. E ser feminista é acreditar e defender o direito das mulheres. Se uma mulher não quiser usar uma abaya, um burkini ou um hijab, não usa. Se quiser, que o faça. Por que raio é que um governo tem o direito de opinar sobre o assunto? Como é que erguemos bandeiras por todo o lado a dizer que nós, ocidentais, somos os melhores do mundo no que diz respeito aos direitos das mulheres, dos homossexuais, que é aqui que há mais igualdade, liberdade e proteção dos direitos humanos, e depois proibimos uma mulher de usar uma determinada peça de roupa? Que direito tem um político de decidir o que eu posso ou não vestir?

«Mas se fores ao país deles, tens de cobrir a cabeça».

Em primeiro lugar, nem todos os países islâmicos têm esta indumentária instituída pela quase totalidade da população.

Em segundo lugar, há uma diferença enorme entre cobrir a cabeça, cobrir o corpo, cobrir o cabelo, as orelhas e o pescoço, cobrir as mãos, cobrir a cara inteira e deixar só os olhinhos de fora, cobrir as unhas dos pés. Enorme! Mas sim, respondendo à pergunta, fá-lo-ia. Fi-lo, aliás, sempre que estive em países islâmicos e entrei numa mesquita. Fi-lo, aliás, quando estive recentemente em Roma e fui obrigada por uma amiga a entrar em 5439 igrejas, capelas e capelinhas. É uma questão de respeito, independentemente de termos ou não uma convicção religiosa (no meu caso, não tenho; nenhuma).

Em terceiro e último lugar, haverá, sempre, uma diferença enorme entre tirar e pôr uma peça de roupa. Para estas mulheres, aquilo que lhes estão a pedir é tão duro como me pedirem a mim para ir amanhã trabalhar com as maminhas de fora. Ou mais difícil ainda, que eu tenha de explicar à minha filha que ela tem de ir estudar com as maminhas de fora, porque é assim que o governo agora quer.

«Mas eles vivem cá, têm de se adaptar às nossas regras».

Regras impostas por quem? Por si? Por mim? No meu país, todas as mulheres podem usar o que lhes apetecer. Felizmente. Desde que não perturbe, ofenda ou magoe alguém, está tudo bem. E se me responder que fica ofendido quando vê uma mulher de hijab, vou dizer-lhe que, então, deverá ficar igualmente ofendido quando entrar na casa do meu pai e vir os novecentos crucifixos que ele tem na parede. Ou com as freiras e os padres, que andam na rua vestidos “daquela” maneira. Ou com as miúdas que hoje em dia andam com metade das nádegas de fora. Ou com aquela malta que tem piercings no rosto. Ai, alguém nos salve! Não tarda ainda aparece aí alguém com collants de rede enfiados na cabeça.

Desde que não magoe. Desde que não perturbe. Desde que não ofenda.

França tem um enorme problema de terrorismo. É óbvio, eu sei disso, o leitor sabe disso. Mas o terrorismo vem do extremismo, e não se combate extremismo com extremismo. A culpa dos ataques violentos, dos atentados, das atrocidades que foram e continuam a ser cometidas em França, entre tantos outros países, nada têm que ver com o Islão. E muito menos com a roupa que uma mulher decide vestir.

Vinte e dois anos depois, achei mesmo que esta lição tinha sido aprendida. Infelizmente, não está.

Até à próxima quarta-feira.

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