Só há um País na Europa onde um comentador se torna político, um político se torna comentador e um comentador político pode ser comentador e político ao mesmo tempo que ninguém quer saber: Portugal. Será por termos poucochinho dinheiro e precisarmos de pessoas multifacetadas, que deem uma perninha aqui e ali? Não faço ideia. A verdade é que basta espreitar o Carga de Trabalhos para vermos que não existe tal coisa como competências a mais. A título ilustrativo: procura-se candidato para estágio curricular. Privilegiam-se pessoas que:
- dominem cinco línguas;
- trabalhem com o InDesign e o Illustrator;
- tenham conhecimentos de HTML + CSS;
- sejam capazes de desenvolver estratégias de social media;
- tenham carta de condução de pesados;
- consigam encostar a língua na ponta do nariz;
- saibam fazer croquembouche.
(Saber tricotar camisolas de lã, tirar nódoas de café com bicarbonato de sódio e fazer fogo com pauzinhos são consideradas mais-valias.)
Desconheço se Luís Marques Mendes tem estas qualificações todas: estive a scrollar no seu Linkedin e nada vi sobre as suas habilidades culinárias ou quão longe consegue chegar com a língua. Mas posso dizer-vos que iniciou a sua atividade política como militante do PSD, integrou os três governos de Cavaco, foi secretário de uma data de coisas, ministro de outras, e lá pelo meio ainda presidente do PSD durante dois anos e poucos meses. Desde 2013, é comentador político na SIC. Desde 2016, é Conselheiro de Estado. Desde segunda-feira, 28 de agosto de 2023, é um possível candidato a Belém.
Onde é que nós já vimos isto antes? Ah, sim! Corria o ano de 2000 e o professor Marcelo tornou-se comentador da atualidade política na TVI. Foi um sucesso estrondoso, até porque nunca se tinha visto nada assim. Alguém que conseguia falar de temas complexos de forma simples e direta, acessível a qualquer pessoa? Foi inédito. De repente, os temas políticos não pertenciam a uma elite exclusiva. De repente, toda a gente conseguia ter uma opinião. Maioritariamente a de Marcelo, mas vá, isso é outra história.
O que aconteceu de seguida todos sabemos: o professor tornou-se numa das figuras mais queridas da televisão, uns anitos depois tornou-se Presidente da República. Nenhum analista político ou pessoa com dois dedos de testa teve dúvidas do impacto que o espaço de comentário teve para alavancar a popularidade de Marcelo. Só que ninguém quis saber, da mesma forma que ninguém quis saber que, enquanto o professor esteve a comentar a atualidade política, semana após semana, a mensagem que nos chegava não estava totalmente desprovida de interesses.
Nunca poderia ser de outra maneira. E isto nem sequer tem que ver com a hombridade ou não de Marcelo. Recordo com muito carinho um professor que tive na faculdade, que um dia perguntou: «O que é a verdade?» Avanço já para a resposta: a verdade não existe. A verdade é uma construção de cada um de nós, com base nas nossas histórias, vivências, crenças, vieses comportamentais e tanto mais. Dois jornalistas em campo podem produzir narrativas completamente diferentes pelo simples facto de serem pessoas diferentes. Mas aqui ainda há uma procura ativa pela isenção, ou pelo menos assim deveria ser. No comentário, não. No comentário, é suposto que aconteça exatamente o contrário, isto é, que seja expressa uma opinião. Por isso mesmo é que é classificado como um espaço de opinião.
Por mais isento que um indivíduo queira ser, pergunto, como é que consegue sê-lo quando está a comentar uma realidade que lhe é tão próxima? Um mundo onde ele esteve durante décadas, a privar, a colaborar e a criar relações com figuras que permanecem ativas no poder? Pior, quando, na mesma altura que é comentador, transmite conselhos ao Presidente da República? Falámos de Marques Mendes, mas aconteceu o mesmo com Marcelo, que foi membro do Conselho de Estado nos mandatos dos Presidentes Jorge Sampaio (2000-2001) e Aníbal Cavaco Silva (2006-2016).
Como é que podemos acreditar que a crítica e o elogio são isentos, totalmente desprovidos de interesse?
Ao longo dos últimos anos, Luís Marques Mendes disse sempre que não. Não, não, não, regressar à política estava fora de questão, nem pensar, deixem-se lá de coisas. O "não" mais recente tem menos de quinze dias (não é lindo?), quando, na Festa do Pontal, um arraial para os militantes e simpatizantes do PSD, disse ter ido só em passeio porque o amigo Luís Montenegro o convidou. "A minha vida partidária acabou há 16 anos."
Onde é que nós já vimos isto antes?, repito. Ah, sim! Marcelo Rebelo de Sousa também disse que não, não, não, nem pensar, deixem-se lá de coisas. Depois apresentou uma candidatura à Presidência da República e venceu. Talvez por isso ninguém tenha ficado verdadeiramente surpreendido quando Luís Marques Mendes mudou o discurso e disse que se calhar até sim. Isto, claro, em nome do povo, como todos os outros antes dele. Alguém se candidata a um cargo político por ambição? Não, é sempre porque veem que têm alguma "utilidade".
Durante décadas, a atualidade foi, em grande parte, definida por eles: foram eles que destacaram o que consideravam de mais relevante na agenda, os pontos de vista que devíamos ter em consideração, no fundo, de que forma poderíamos pensar. Não nos esqueçamos de que a maioria das pessoas não procura ativamente vários meios de comunicação social, nem tão pouco diversos espaços de opinião. Muitas limitam-se a ver o jornal de domingo à noite ou, pior ainda, a ler as gordas que surgem nas redes sociais.
E assim de repente, é esta a visão do País e do mundo que prolifera em Portugal: a deles; a de dois homens que estiveram na política, por lá continuaram e, anos mais tarde, concorrem à Presidência da República.
Vou repetir, porque quero que fique muito claro: não é apenas uma questão de hombridade. Marcelo e Marques Mendes não têm de ser as bruxas más dos contos de fadas, sádicos maquiavélicos que nos querem envenenar com maçãs. Mas não podem ser jamais totalmente isentos, da mesma forma que ninguém pode dizer que não há um aproveitamento quando, anos depois de serem vozes ativas na sociedade e acarinhadas pelo público, decidem candidatar-se a um cargo político.
Marques Mendes é um triste exemplo de uma realidade que só em Portugal é que acontece. Infelizmente, não é o único: é assustadoramente surreal a quantidade de pessoas ligadas à política, atualmente ou no passado, que ocupam neste momento espaços privilegiados de opinião na comunicação social. E digo mais uma vez, a última por hoje: não acredito que estas pessoas todas nos estejam a tentar fazer comer maçãs envenenadas. Mas que andamos todos a comer gelados com a testa, ah disso ninguém tenha dúvidas.
Até à próxima quarta-feira.