Beijos. Conseguem ser maravilhosos, não é verdade? (suspiro apaixonado) Eu gosto particularmente da dança do primeiro encontro, quando a vergonha se mete no meio e ninguém sabe quando é que a boa da beijoca vai acontecer: cabeça rola para a direita, e ai que ainda não é desta, cabeça rola para a esquerda, e não pisca pisca nada porque isto não é uma canção da Ruth Marlene, vamos agora ao centro, pronto, vamos lá, é agora (ler com voz de relatador desportivo), ao centro, sim, é beijo, sim, sim, é beijo, sim, e é BEIJOOOOOOOO…
Beijos (mais um suspiro apaixonado). Conseguem ser maravilhosos, sim. Quando é que não são maravilhosos? Quando não há consentimento e ilustram na perfeição o machismo sistémico que persiste na nossa sociedade ocidental. É… nesse caso não são mesmo nada maravilhosos.
Este domingo, Espanha sagrou-se campeã do mundo de futebol feminino depois de derrotar a Inglaterra por 1-0. Nos festejos, o presidente da Federação, Luis Rubiales, a explodir de alegria, deu um beijo na boca da jogadora Jenni Hermoso. Estalou a polémica: os meios de comunicação precipitaram-se a escrever que “a internet não gostou” (porque estamos em 2023 e a internet é considerada uma pessoa), na internet (a world wide web, não a pessoa) foi publicado um vídeo onde a jogadora diz que não gostou (já a internet-pessoa o tinha dito…), logo a seguir Rubiales disse que as críticas eram “idiotices”, depois lá acabou por pedir desculpa sem pedir, de facto, desculpa.
Pausa para respirar. Ufa, que isto foram muitos acontecimentos de uma só vez. Mas atentem lá neste pedido de desculpas, que merece a vossa máxima atenção:
“Eu não entendi, porque via esta situação como sendo normal, mas parece que, como algumas pessoas se sentiram afetadas por estes acontecimentos, tenho de pedir desculpa.”
Lol, OK, Luis. Já voltamos a ti.
Para terminar a história: a jogadora Jenni Hermoso desvalorizou a situação, dizendo que “foi um gesto mútuo totalmente espontâneo devido à imensa alegria de ganhar um Campeonato do Mundo”, mas se calhar não disse nenhuma destas coisas porque, de acordo com o portal Relevo, as declarações foram fabricadas pela Federação Espanhola de Futebol. Em que é que ficamos? Não sabemos. Mas sabemos que é deveras importante falar sobre isto.
Ora vejamos: para começar, um beijo sem consentimento aconteceu. Outra vez.
(A sério, 2023? A internet já pode ser considerada uma pessoa, mas continuamos a ter de assistir homens a beijar mulheres para celebrar festejos? Pois, parece que sim.)
Jenni Hermoso não pediu para ser beijada, não deu qualquer sinal de que era daquela forma que queria festejar a vitória da seleção com o presidente da Federação, não fez a dança do rola para a direita, rola para a esquerda, um beijinho agora é que vinha mesmo a calhar. Quem já foi beijado, apalpado ou agarrado sem consentimento, saberá do que falo (e estou a usar o masculino que a Língua Portuguesa nos diz representar os dois géneros, mas bem me posso deixar de merdas e usar o feminino, porque todos sabemos que isto acontece maioritariamente com as mulheres): não há maior violação da nossa privacidade, da nossa intimidade, do nosso eu, do que um ato destes acontecer sem o nosso consentimento.
Mas Rubiales fê-lo, da mesma forma que um homem bêbado fez o mesmo comigo uma noite quando eu ia a caminho do bar da discoteca: fê-lo porque pode, porque é um homem, porque sabe que a vítima não fará nada além de seguir em frente e porque muito provavelmente nunca parou dois segundos para pensar que aquilo que está a fazer é hediondo e demonstra como ele se sente superior perante uma mulher. É o chamado machismo sistémico, aquele que existe, sim, e muito, está cravado na nossa sociedade tal prego enferrujado que não sai, e manifesta-se, muitas vezes, de forma inconsciente.
É sobre tornar este ato consciente de que eu gostaria de falar agora.
Rubiales nunca teria feito aquilo se na sua frente estivesse um homem. E antes de revirar os olhos desse lado porque está farto desta frase, por favor, a sério, por favor, pense: teria? Acha que teria? Aposto 99% que não. Ele fê-lo porque se sentiu empoderado a fazê-lo. Ele fê-lo porque ele é homem e ela mulher. Ele fê-lo porque podia. Ele fê-lo porque se sente superior a ela.
E na maioria das vezes, nada disto é processado de forma consciente, repito: esse é, aliás, o grande problema. A ideia de que os homens são superiores às mulheres é uma crença que nasce e cresce connosco, fruto dos séculos em que esteve enraizada na nossa sociedade ocidental, fruto dos séculos em que esteve enraizada no nosso cérebro, e que agora dali não quer sair. É preciso travar esta erva daninha. Como? Falando sobre o assunto.
Por isso mesmo, vamos lá outra vez: foi o machismo sistémico que persiste nos dias de hoje que levou Rubiales a beijar Hermoso.
- Ou um homem bêbado que eu não conhecia de lado nenhum a beijar-me numa discoteca.
- Ou um homem a violar uma mulher inconsciente numa cama.
- Ou um homem a mandar um piropo a duas miúdas que passam na rua.
- Ou um homem a procurar a opinião de outro homem para se sentir validado, mesmo que a sua chefia, naquele momento, seja uma mulher.
- Ou um homem a definir que o salário de outro homem deve ser maior do que aquele que atribuiu, no exercício das mesmas funções, a uma mulher.
- Ou um homem a explicar coisas a uma mulher como se ela tivesse 5 anos, porque há temas que é óbvio que ela não pode dominar e é melhor falar com ela devagar e pausadamente.
- Ou um homem a dizer que isto, aquilo e o outro “são coisas de gaja”.
- Ou um homem a tentar virar as mulheres umas contra as outras, porque é claro que existem “mulheres para casar” e depois há as outras. Já agora, as maiores inimigas das mulheres são as mulheres, não sabia?
- Ou um homem a criticar as roupas que uma mulher veste, a fotografia que uma mulher publica ou as ideias que uma mulher defende porque “se se veste assim é porca”, “se publica uma fotografia assim é porque só quer sexo”, “se defende aquelas ideias é porque é uma daquelas feminazis que já ninguém tem paciência para aturar”.
Já agora, Jenni Hermoso é homossexual. Consegue imaginar o que é ser beijado de forma não consentida por alguém que tem um sexo que não o atrai minimamente? Foi isso que aconteceu com Hermoso. Se é um homem heterossexual, peço-lhe: imagine o que era, de repente, ser agarrado por um homem de forma não consentida. Gostaria? Ser-lhe-ia indiferente?
Não odeio homens. Abomino discursos extremistas (de todo o género, na verdade), abomino blá blás de alegadas feministas que só fomentam o ódio, que colocam a tónica nos homens como eles sendo (sempre! Todos!) feios, porcos e maus, que generalizam um género com base em três comentários na internet e duas experiências malsucedidas na vida real. Odeio este tipo de feminismo da mesma forma que odeio o machismo.
Mas sou feminista, sim, como acho, aliás, que qualquer pessoa com dois dedos de testa nos dias de hoje tem de ser: sou feminista porque continuo a ver (e a sentir na pele) desigualdades, jogos de poder desequilibrados na balança, críticas gratuitas, e machismo, muito machismo sistémico, que na maioria das vezes não é consciente, não é sequer malicioso… mas está lá.
É por isso que um beijo sem consentimento é importante de ser analisado: não, não pode ser visto apenas como um beijo inocente em festejos; não, porque de facto não teria acontecido se estivessem ali dois homens (ou duas mulheres, já agora); não, porque ela é homossexual e isso tem de ser respeitado; não, porque um beijo sem consentimento não pode ser justificado por nada, mesmo que seja a vitória de uma seleção de futebol.
Não vale continuar a permanecer na ignorância. Não vale dizer: “Sim, eu digo pretos mas é só porque é a cor deles”, “sim, eu sei que os ciganos não são todos uns ladrões, mas eu tive um cigano na escola que…”, ou (o clássico!) “eu respeito todas as mulheres, mas mulher minha nunca…” Não vale. Temos suficiente informação neste momento para não o podermos fazer.
Já chega de beijos sem consentimento. Que sejamos capazes de refletir sobre isto e, daqui a uns anos, cingir a temática ao facto de a dança de cabeças num encontro ter terminado com um beijo desastroso, com dentes a chocalharem e excesso de saliva. Ou, pior ainda, de termos ouvido a canção do pisca pisca da Ruth Marlene e, desde então, não conseguirmos pensar noutra coisa.
Até à próxima quarta-feira.