Com as mãos trémulas, Joana pousou a carta coberta de lágrimas sobre a mesa de centro e deixou o corpo cair no sofá. Desorientada, com os pensamentos a atropelarem-se e o desespero a engoli-la, recomeçou a chorar. Quis fazê-lo em silêncio, quis que a sua dor não passasse de bocados de água com sal a escorrerem-lhe pelo rosto, mas não conseguiu: quanto mais se permitia soltar as lágrimas, mais o peito lhe implorava que o fizesse em desespero.

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Sentiu-se um animal prestes a ser abatido: boca aberta, gemidos transformados em grunhidos, movimentos em câmara lenta, olhos esbugalhados, todo o corpo a tremer. Quis pedir auxílio, mas já tinha idade suficiente para saber que o auxílio não chegava, nunca chegava, a ajuda não vinha de lado nenhum. Chorou mais.

Alice entrou na sala com o cobertor de lã amarelo a arrastar no chão. Quando Joana a viu, tentou rapidamente transformar os soluços de desespero em sorrisos de esperança, mas não conseguiu fazer mais do que um careta disforme que assustou por segundos a filha. Esticou-lhe os braços, ela aceitou o colo. Como é que lhe poderia dizer que tinham acabado de perder a casa? Como seria capaz de encontrar as palavras certas para explicar à filha que mais uma vez falhava, mais uma vez teriam de fazer as malas, arrumar as suas coisas e partir, para longe, para cada vez mais longe, para uma casa cada vez mais pequena, para uma vida cada vez mais frágil? E ela culpava-se, ó se se culpava, culpava-se por tudo, mas no seu íntimo sabia que não tinha culpa de nada, tudo o que fazia era lutar e lutar, já não sabia viver de outra maneira. Só que tudo continuava a falhar. E ela sofria, mas a filha também. E tudo o que ela queria era que a filha não sofresse mais.

Tocaram à porta. Com a menina de seis anos agora adormecida no colo, Joana levantou-se com ela nos braços e caminhou até à porta. Temeu por uns segundos que fosse a vizinha de baixo, mulher rezingona que por tudo e por nada batia com a vassoura no teto para impor silêncio, mesmo que ainda houvesse luz lá fora e tudo o que mãe e filha estivessem a fazer fosse existir.
Não era a vizinha de baixo.
— Também recebeste?
Joana recomeçou a chorar. Inês, a vizinha da frente, abanou a cabeça revoltada, com o papel comprimido na mão direita, enquanto Jorge, o namorado, esticava as mãos para receber a criança no colo e ajudar no que podia, que naquele instante mais não era do que levar uma menina adormecida de volta para as suas cobertas de princesa. Joana deixou, entregou-lhe a filha nos braços, e aos soluços viu-a partir pelo corredor em direção ao quarto.
— O que vamos fazer? Temos de fazer alguma coisa!

Não havia nada a fazer. Inês tinha vinte e três anos, era uma criança no corpo de uma mulher, e isso tinha tudo de bom, porque ela ainda acreditava em justiça. Joana não. Aos trinta e nove anos, ela sabia que não havia nada de justo no mundo, da mesma forma que o auxílio nunca chegava de parte alguma e às vezes somos meros animais à espera de ser abatidos.

Não tinham qualquer direito sobre aquela vivenda dividida em apartamentos, porque ambas tinham aceitado pagar a renda por baixo da mesa para garantir um valor mais baixo. O proprietário tinha o direito de os meter na rua. E mesmo que tivessem um contrato, o resultado seria igual. A casa era dele, eles eram meros inquilinos. Inquilinos sem direitos, inquilinos que tinham aceitado aquelas e outras tantas condições só para terem um teto sobre as suas cabeças. Ele agora queria vender a casa. Elas não podiam fazer mais nada além de arrumar as suas coisas e sair.

Disse-lhe isso mesmo. Com um ataque de pânico a formar-se lentamente no peito, aceitou o copo de água que Jorge lhe estendeu e bebeu pequenos goles, procurando concentrar-se no ato de engolir. Era a única coisa que a ajudava naqueles momentos, focar a sua atenção no presente. Mas o presente era negro, e ela não queria pensar nele, mesmo que estivesse apenas a beber água. Estava a fazê-lo numa casa que já não lhe pertencia. De onde teria de partir em breve.

Outra vez.

Há três anos, Joana conseguira finalmente sair de casa com Alice. Depois de anos de uma relação tóxica que quase a destruiu, encontrou um pequeno T1 para arrendar na Margem Sul. Havia humidade nas paredes, o mobiliário implorava por reforma, a casa de banho estava sempre a dar problemas, mas era a sua casa. Era a casa que conseguia pagar sozinha, sem deixar de assegurar a escola da filha, comida na mesa e contas pagas. Era possível viver, e viver tinha de ser melhor agora.

Durou pouco tempo. O senhorio começou a ameaçar subir a renda, já não havia casas em Lisboa e agora a Margem Sul era cada vez mais atrativa, “é a lei da oferta e da procura, a menina tem de compreender”. Alguns meses depois, cumpriu mesmo a ameaça, e sem dó nem piedade os seiscentos euros de renda passaram para o dobro. Joana não desistiu, conseguiu encontrar outra casa, mais longe, claro, era assim que tinha de ser agora, e por momentos foi feliz, mesmo que tanto tempo ficasse perdido nos transportes. Um ano depois, aconteceu a mesma coisa. Voltou a sair, voltou a pegar num tudo que era nada, foi para ainda mais longe. Repetiu-se tudo outra vez: “Tenho pena de si, menina, claro que tenho, ainda para mais sendo mãe de uma pequena, mas o que posso eu fazer? O meu filho quer sair de casa e os preços estão absurdos. Aqui ele tem um teto, aqui ele pode viver”. Ele podia, ela não. Voltou a sair, voltou a provar a si mesma que conseguia, mesmo que agora o tempo dos transportes fosse ainda maior, a escola de Alice estivesse sempre a ameaçá-la com multas por chegar depois da hora e a vizinha de baixo batesse com a vassoura no teto quando ainda havia luz e tudo o que Joana e a filha estivessem a fazer fosse existir.

Decidiram ligar ao senhorio. Ao terceiro toque, ele atendeu, mas Inês foi a única a conseguir manter uma conversa. Ele falou da inflação, da vida cada vez mais difícil, das novas medidas do governo, de um programa que em breve seria promulgado pelo Presidente da República. Disse entender, claro que disse, todos o diziam, mas estava duro para todos e ele também já não sabia o que fazer.
— Neste momento, não quero saber mais disto, prefiro vender. Ainda consigo fazer algum dinheiro agora, lá mais para a frente não sei. Não compensa ficar com isto, agora já não, não quero ficar preso a aumentos de 2% e muito menos que o governo venha aqui meter o bedelho. Prefiro vender, meninas, já disse e está dito, desculpem qualquer coisa, mas não sei o que vos posso dizer mais.

A chamada caiu. Inês deixou que os seus braços dessem algum conforto à vizinha, Joana aceitou. Se a ajuda não chegava, ao menos que naquela hora tivesse outros braços para chorar além dos seus. O que iria fazer de seguida, ela não sabia. Só sabia que teria de encontrar forças para continuar: para longe, para cada vez mais longe. Era agora assim Portugal.

*

Na passada sexta-feira, 11 de agosto, António Costa disse aos jornalistas que o Presidente da República é “homem particularmente ativo e também merece descansar”. Respondeu desta forma quando foi questionado sobre o pacote legislativo Mais Habitação, agora nas mãos de Marcelo Rebelo de Sousa. O Presidente está de férias no Algarve, é certo, mas focado no programa — de tal forma que já tinha garantido às massas prestar-lhe atenção todas as manhãs e noites.

Problema: mesmo que ainda nada tenha sido chumbado ou promulgado, as consequências já se fizeram sentir. Segundo o barómetro da Associação Lisbonense de Proprietários (ALP), as medidas levaram 20% dos proprietários a decidir desfazer-se dos imóveis. Uma percentagem semelhante avançou com um aumento ou uma atualização extraordinária das rendas.

Os proprietários não querem submeter-se a um aumento das rendas limitado a 2% quando sabem que podem lucrar muito mais. A grande maioria também não está disposta a arrendar as suas casas ao Estado, para posterior subarrendamento, ou vender-lhas, mesmo que com isso beneficiem da isenção total de tributação das mais-valias geradas. Aos contratos de médio e longo prazo, mais de metade também diz “não, obrigada”, mesmo que isso traga benefícios fiscais. Quanto às casas devolutas, isso só gerou medo. Em alguns casos, puro pânico.

O pacote Mais Habitação só deixou os proprietários assustados. E isso é mau para todos. Não esperávamos mais problemas, caramba: há mais de um ano que imploramos apenas por soluções. Diabolizar quem tem na sua posse casas não é resposta. Não é o caminho, não é por aí que vamos conseguir alguma coisa.

Neste pacote, a única coisa boa é que, ao que parece, agora sim não serão admitidos novos pedidos de concessão de vistos gold. Ou talvez depois venha uma exceção, porque já assim foi no passado, e a verdade é que hoje em dia certezas ninguém tem. Exceto que não há casas. E é numa casa que todos queremos viver.
Sobre esta história que vos contei, nada nela é verídico e tudo nela é verídico. Infelizmente, é agora assim Portugal.
Até à próxima quarta-feira.

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