Estávamos perto das 16 horas e era um dia normal de trabalho. Estava a meio de um texto quando, com grande espanto, sou interrompida com a vídeochamada mais improvável do universo. Era a minha mãe a ligar-me pelo WhatsApp.
“Aninhas, estás tão gira. Esta é a Teresa. Está a ensinar-me a mexer no telefone.”
Aos 64 anos a minha mãe recebeu o seu primeiro smartphone. Estávamos a 24 de dezembro. Era Natal. O presente não vinha na lista, mas houve finalmente quorum entre os restantes membros da família. Apesar de dois anos antes ter-nos proibido expressamente de oferecer-lhe qualquer tipo de tecnologia (sempre foi avessa a estas coisas), em 2017 decidimos ignorar a lei imposta pela doce, justa, mas assertiva comandante. Era essencial equipá-la com um telefone inteligente, porque a reforma já se aproximava e era urgente dar-lhe algum tempo de preparação para dominar o novo universo, antes de lhe passarmos um tablet para as mãos.
Tinha há quase uma década o mesmo “aparelho”, daqueles para lá de tosco. Era preto, minúsculo e estranhamanete leve. Parecia de brincar. Tinha toques polifónicos, com uma lista de sons quase capaz de lhe conferir o estatuto de vintage. Tinha 11 teclas (ainda tinha teclas, notem) centrais, com números de um a nove, asterisco, cardinal, três letras por botão e uma dezena de símbolos.
Rasgou o embrulho e torceu o nariz. Explicámos-lhe que teria de cortar o cartão. Que para isso teria de ir a uma loja. Que tinha mesmo de ser porque os cartões modernos são assim. O telefone ficou parado dois meses.
A minha mãe sabe enviar emails, compreende o google e sabe consultar sites. Vai à procura das sessões de cinema, é uma das utilizadoras mais assíduas do Instituto Português do Mar e da Atmosfera e, em acessos de voyeurismo consumista (ao qual é frequente juntar-me), consegue aceder aos sites das marcas de que mais gosta. Trabalha num computador desde os tempos em que passou a ser normal trabalhar com computadores, mas sem a consciência da evolução supersónica que foi decorrendo e que abriu um mar de possibilidades na Internet, fora da caixa que se senta na sua secretária do escritório.
A minha mãe faz parte da geração Baby Boomers. Eu faço parte dos Millenials. Ela nasceu quando a televisão passou a entrar em casa das pessoas. Eu cresci com a banalização dos telemóveis. E a forma como nos afeiçoámos a cada uma destas invenções é evidente: eu não vivo sem o meu telefone e ela passa os serões a saltar entre a SIC e a SIC Notícias.
A aventura com o smartphone tem sido desafiante, sobretudo para ela, mas também para mim. Explicar aquilo que nos parece óbvio é dificil porque significa ter de ir à matriz da cada definição. É quase como estar com uma criança que atravessa a idade dos porquês, só que com a diferença de que se trata de um adulto, neste caso extremamente inteligente, muito mais vivido e culto e com uma destreza para enfrentar a vida real muito superior à minha, que tenho medo de fritar batatas fritas e que ao mínimo problema burocrático, doméstico ou relacional lhe fujo para as saias.
Aqui ficam algumas questões que ilustram aquilo de que falo.
“Como é que posso tirar fotografias?”, pergunta-me. “É só carregar em cima da câmara, mãe.”
“Onde é que faço as chamadas?”, pergunta-me. “É no botão em que aparece um telefone, mãe.”
“Qual é que é o botão para desligar a chamada?”, pergunta-me (algum tempo depois de já ter o telefone). “É o vermelho, mãe”.
"Como é que se põem as carinhas?", pergunta-me. "Os emojis? Diz-me tu: de todos estes botões, qual é que te parece que serve para isso?"
“De onde vem a Internet?”, pergunta-me. “Pode vir de dois sítios: daquela caixa que tens ao lado da televisão ou, quando estás na rua, dos dados móveis que deves ter sempre ligados.”
“Também quero ouvir música aqui. Como é que fazes?”, pergunta-me. “Eu oiço pelo Spotify, mas vamos com calma. Quando estiveres preparada eu instalo e ensino-te a mexer.”
Sorrio, suspiro e respondo com uma condescendência afetuosa. Num primeiro momento fico chocada, mas no segundo seguinte admiro-a. Compreendo a determinação, coragem e capacidade para lidar com a frustração envolvidos neste exercício difícil que é o de lidar com um telefone inteligente pela primeira vez, depois de mais de meio século neste mundo. Há o touch para dominar, os botões para decorar, os sons para saber escutar.
Passou um mês e a evolução é notória. Está a afeiçoar-se ao seu novo “aparelho”. Apesar de ainda ser frequente insultá-lo (acontece bastante), prevejo uma longa e duradoura amizade. Já vai conseguindo dominar o whatsApp, já lê as notícias nas aplicações dos jornais que instalei. Já faz videochamadas. Já envia mensagens de voz. E já me ignora para lhe dar atenção (principalmente quando joga Solitário). Qualquer dia está a pedir-me para lhe instalar o Facebook.
Cuidado.