Há uns meses, o meu pai chegou a casa depois de um longo passeio a pé, sentou-se ao meu lado e atirou: “Então Aninhas, diz-me lá, o que é a civilização?” Fiquei pasmada a olhar para ele, naquele “ham… ham…” típico de quem não tem uma resposta imediata para uma pergunta tão simples. Depois de pensar uns minutos, lá atirei uma resposta.
O objetivo desta questão não queria que eu tivesse a definição na ponta da língua para o termo “civilização”. O propósito passava tão pura e simplesmente por pôr-me a refletir sobre um conhecimento alegadamente básico, que toda a gente tem por garantido, mesmo que nunca tenha pensado sobre ele.
Depois, falou-me sobre o livro de Hanna Arendt que se chama “Pensar Sem Corrimão” e estivemos a conversar sobre este título, a entendê-lo como uma metáfora para a capacidade de nos informarmos, refletirmos e depois, por nós próprios, sermos capazes de gerar algum tipo de opinião, que não seja meramente a réplica de uma outra que lemos algures — provavelmente, também ela uma imitação de outra, e de outra e de outra.
Infelizmente, esta coisa do pensar sem corrimão é um exercício a que poucos de nós se dedicam — e pela falta de prática torna-se no sudoku mais difícil da humanidade. Já dei por mim, face a diversos temas, a pensar: “Mas qual é a minha opinião sobre isto?”. E fico extremamente confusa porque é difícil dissociar aquilo que eu própria acho daquilo que os outros acham. Tentar pensar sem corrimão é tramado, sobretudo nesta forma de viver em que facilmente se perde o fio aos factos. E admitir que não se tem uma opinião fechada sobre um assunto exige uma boa dose de coragem. É que o mundo extremou-se, deixou de ter espaço para o que está no meio, para quem ainda está no processo de pensar. Hoje em dia, toda a gente quer ter uma opinião, mesmo que não tenha estudado sobre aquilo que opina.
Para se comprovar este fenómeno da bacoquice pensante, basta dar uma pequena volta às cada vez mais assustadoras caixas de comentários do Facebook ou do Twitter. É uma absoluta selva de estupidez irrefletida: gente a insultar-se por tudo e por nada, a cobardia atroz de quem se esconde por detrás de um ecrã, opiniões que são fruto da absoluta ignorância, partilhas de notícias manifestamente falsas. É o sedentarismo total do pensamento — e da gramática e ortografia, convenhamos. É exatamente como uma conversa de bêbados de tasca: está tudo aos berros, ninguém diz nada de jeito, ninguém ouve ninguém.
“Ah, mas isso é um mundo à parte, mais vale não ligar”. Infelizmente, temos demasiados exemplos que mostram como esta nova dimensão da vida gerada pela internet está longe de ser estéril — ela produz efeitos. E é por isso que eu digo que as redes social podem ter sido a pior invenção da humanidade. O Facebook, em particular, está para a destruição do pensamento como a bomba atómica está para a destruição da terra. Contam-se pelos dedos as criticas construtivas. O mundo parece estar, aliás, com um défice colossal de construção. Neste momento, só se destrói.
Muitos dirão que as redes sociais foram uma invenção magnifica porque nos puseram em permanente e instantâneo contacto, independentemente da localização geográfica. Isto é verdade. Há uns tempos encontrei uma pessoa que me foi muito querida nos tempos em que vivi em Macau e que não via desde os sete anos. Muitos dirão que o Facebook é um excelente meio para promover negócios. Também é verdade.
Mas será que compensa? É que do outro lado temos: páginas de notícias falsas, que servem para produzir uma manipulação política abjeta — fenómeno que, de tão abundante, de repente, passou a ser encarado com uma normalidade desconcertante; opiniões massivas sobre quem deveria ter o espaço mediático cerceado pelo perigo que acarreta para uma sociedade democrática; a passivo-agressividade de quem até quer defender causas legitima, mas com a displicência da utilização palavras que são um verdadeiro impedimento à união — em prol da divisão. Será que compensa? Eu acho que não. Vejamos o caso do Chega: se não fossem as redes sociais, ninguém passava cartão a este partido e à personagem que lhe dá voz. O Facebook deixou que toda a gente tivesse espaço mediático. Isso foi excelente para algumas iniciativas e causas que estavam há demasiado tempo a ser varridas para debaixo do tapete (o racismo, a igualdade de género, os movimentos LGBT). Mas também trouxe uma monumental dose de escumalhada cá para fora.
Podemos falar de mais exemplos que demonstram os perigos deste rede social: o Brexit, a eleição de Donald Trump, inseridos no escandaloso caso da Cambridge Analyica, empresa que usou como veiculo para a manipulação de resultados a arma criada por Zuckerburg. O Facebook foi um meio importantíssimo para a nomeação de um homem narcisista, à frente de uma das maiores potências do mundo; foi uma forma de influenciar a opinião pública no início do longo processo que foi a saída do Reino Unido da Europa. Isto continua a acontecer, com tantos e tantos outros temas, bem debaixo das nossas barbas. Somos marionetas. Conseguimos perceber a gravidade disto?
Não consigo ter uma opinião fechada, imagine-se. Repito: se por um lado é positiva a existência de um espaço público que dê voz a todos, por um lado acho que quem não reflete sobre o que diz não merece um espaço onde possa manifestar-se. Às vezes tenho saudades dos tempos em que só havia jornais, telejornais e rádio. Ao menos aí havia tempo para pensar.