Eram quatro da manhã quando dei por mim a ser violentamente atacada por uma melga. Tal ninja mestre do disfarce, a maldita nunca se deixou ver, mas a sua existência era por demais evidente pelas marcas deixadas no meu corpo. 15 minutos depois do primeiro golpe, dei por mim sentada na cama a coçar sem dó nem piedade os dedos, os braços, as pernas, a cara, enfim, tudo o que fosse pele e fizesse parte de mim.
Foi nesse momento que dei por mim a pensar em Faria Dias. E por mais que esta imagem tenha sido perturbadora, valeu uma reflexão interessante que decidi trazer-vos hoje.
Contexto: quatro homens brancos privilegiados sentam-se a uma mesa para falar publicamente sobre temas difíceis. O programa chama-se Devaneios, e neste episódio que valeu uma excelente análise de Joana Marques, contávamos com a presença de Tiago Paiva, Alexandre Santos, Faria Dias e John Mendes, quatro super-heróis que debateram sem medo o tema mulheres e discotecas.
Faria Dias não tem dúvidas de que mulher sua jamais mete os pés sozinha numa discoteca. Era o que mais faltava, pois claro. Se a namorada quiser ir dar um pezinho de dança, o “chefe da dupla”, como se intitula, vai obviamente com ela. É sobre Faria que recai a responsabilidade de “zelar pela segurança dela” — por outras palavras, e isto é esclarecido logo de seguida, asseverar que ninguém se atira a ela.
Ser-se homem é de facto muito difícil.
Garantir que a sua missão é cumprida com sucesso envolve uma série de regras. Em primeiro lugar, a partir de uma determinada hora, ninguém anda na rua. Ficou por clarificar qual a faixa horária, um pormenor deveras importante. É como a Cinderela, à meia-noite tem de estar tudo em casa? Às duas da manhã? Três e meia da manhã? Quatro? Cinco e quinze? Eu gostava de saber quando é que os homens que se fazem a mulheres na noite saem dos seus caixões, e fico imensamente triste que Faria, na posse dessa informação, não tenha percebido a importância de a partilhar.
Mas enfim, continuemos que isto infelizmente ainda não acabou. Em segundo lugar, e como homem, Faria Dias faz o seu “trabalho” com cuidado e rigor. Tal inspetor (da ASAE?), os locais escolhidos para a noite de “lazer” são estudados previamente por ele, sozinho; se achar que aquele sítio não é “bom para eles”, vai tentar dissuadir a namorada. Se achar que é seguro, então sim, podem ir abanar o capacete.
Mais uma vez, ficou por explicar exatamente qual é o “trabalho” efetuado neste estudo prévio. Tenho pena porque, tal como em relação ao horário, era uma informação muito pertinente de ser partilhada com o grande público. Será que os homens que se fazem a mulheres na noite deitam um cheiro específico que fica impregnado nas paredes? Se calhar esse odor causa uma reação química qualquer nas superfícies, uma espécie de humidade especial que só os chefes da dupla conseguem ver? Não sei, mas tenho muita pena, reforço, que esse esclarecimento não tenha sido dado. Era serviço público.
Vamos lá deixar-nos de brincadeiras: Faria Dias é um grande homem. Têm noção da quantidade de vezes que me virei no passado para ex-namorados, lhes disse que queria sair à noite e eles responderam-me, esparramados no sofá e com uma bolacha prestes a entrar na boca, “ai, não, não me apetece nada, vai tu”? Nenhum deles foi investigar o espaço previamente. Nenhum deles estava preocupado com horas, a não ser que essas horas fossem a desculpa perfeita para dizer “agora? Ai, não, já é tão tarde, não preferes ir noutro dia?”. Cambada de preguiçosos, é o que é. Em momentos diferentes, em sofás diferentes e com bolachas diferentes (felizmente), todos eles fizeram aquela mesma carinha de nojo misturada com um “deixa-me em paz”. Nenhum deles quis saber da sua responsabilidade enquanto chefe da dupla.
Eu gosto deste Faria Dias. A sério, senti-me inspirada. Tão inspirada que, quando voltar a ter uma relação, vou assumir eu esse papel de homem branco privilegiado. Deve ser incrível! Se conseguir romper com o meu evidente padrão de preguiçosos devoradores de bolachas*, aqui vos juro que jamais os deixarei sair à noite sozinhos. E se alguma mulher se faz a eles? Não quero que eles passem por essa situação tão difícil e confrangedora sem me terem lá para os proteger.
Como é óbvio, irei também analisar o espaço previamente. Se virem uma mulher de lupa na mão, a pedir aos empregados para a deixarem entrar no bar ou pendurada num escadote a inspecionar os tetos, não se preocupem, estou só a cumprir o meu papel. Se for seguro e não houver humidade no ar, então o meu amor pode sair de casa comigo, eu deixo, e ai dele que não me agradeça pelo descanso de poder abanar o rabo sem ter nenhuma mulher a importuná-lo. A partir de determinada hora, vamos embora. Qual? Não sei, tenho de perguntar ao Faria.
Melgas há muitas, mas infelizmente homens destes também. O problema da noite passada ficou resolvido com Dum Dum. Será que também funciona com o Faria?
*Aos preguiçosos devoradores de bolachas, vocês sabem quem são. E sabem também que este exagero teve uma função meramente humorística. Ao final do dia, eu também só queria esparramar-me no sofá a comer bolachas.
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