Rapaz conhece rapariga. Rapaz e rapariga vivem juntos. Rapaz é professor e continua, todos os dias, a apanhar metro e comboio para chegar a uma escola cheia de narizes a pingar. Rapariga trabalha em casa, mas todos os dias se deita com este rapaz. Mãe da rapariga faz anos e rapariga decide apanhar um comboio para que a mãe não passe o aniversário sozinha, uma vez que as regras de confinamento já não permitiam grandes ajuntamentos familiares.

Rapariga no norte, rapaz em Lisboa. Rapaz começa a sentir febre e dores no corpo. Rapariga em alerta. Teste positivo para um, teste positivo para os dois e já não há comboio de regresso. Rapariga, que só queria fazer companhia à mãe, oferece-lhe nos anos uma prenda em forma de vírus e agora estão os três confinados.

História típica de passagem de vírus, não tivesse ela acontecido no fim de semana anterior às eleições presidenciais. É que às dores no corpo, febre e falta de paladar, todos aqueles que entraram em confinamento depois de dia 14 de janeiro, passam também a sofrer de um outro sintoma: a dor de não poder votar dia 24.

É que mal recebo o sms como o mal afamado "positivo", pego imediatamente no computador para fazer o registo e poder votar como pessoa confinada que passava, a partir daquele segundo, a ser. Avisos a vermelho denunciavam um erro e eu repito até á exaustão, pensado que me estava a enganar em qualquer dígito do cartão de eleitor. Mas não.

"Infetados e confinados nos dez dias antes das eleições não poderão votar", escrevia o "Público" em Novembro. "O pedido de inscrição para voto em confinamento é feito entre 14 e 17 de janeiro, mas a medida de confinamento obrigatório deve ter sido decretada pelas autoridades de saúde até ao dia 14 de janeiro", escreve o site do governo.

Eu, com teste positivo dia 16, já não ia a tempo de pedir o voto para quem está em confinamento. Nem a minha mãe, que já tinha estado em contacto comigo. E logo ali dois votos de batom vermelho.

Preciso de justificação para votar antecipadamente? Guia para votar em segurança

Depois comecei a extrapolar. E eu, que sou de Humanidades e estou com cérebro de covid, até fiz contas. De dia 14 até hoje, 49.492 pessoas ficaram infetadas. Agora, imaginem os tantos mais que vão fazer crescer este número até dia 24 e os quantos outros milhares que estão igualmente confinados por terem estado em contacto com estes casos positivos. E nenhum destes vai às urnas. É chocante.

Bem sei que se nem o Marcelo pode mudar a Constituição, não sou eu que o vou fazer. Mas reclamei para todos os emails que encontrei e contactei a Comissão Nacional de Eleições (CNE), que isto é uma crónica, mas eu continuo a ser jornalista.

João Tiago Machado, porta-voz da CNE, lembra que este é um sistema novo para toda a gente e tenta justificar o facto de haver dez dias de o poderes ficar em isolamento e o poderes votar nessas condições. "Temos que dar tempo às câmaras para que façam a recolha dos votos em casa das pessoas. Depois, esses votos têm que ficar dois dias em isolamento por questões de higiene e segurança, para que no dia 24 estejam prontos na hora da abertura das urnas".

Eu acho que fico em casa, mas se vir mais uma destas, pinto os lábios de vermelho, descubro onde o Ventura vota e vou lá dar-lhe um beijo na boca. Daqueles intensos, cheios de língua e vírus.

Certo. Mas a recolha dos votos em casa começa esta terça-feira, dia 19. Por que raio eu tinha que ter tipo a declaração de isolamento passada até dia 14? "Temos que dar tempo para que haja um cruzamento de dados entre a Direção Geral de Saúde, que declara o isolamento, e o CNE", refere. Ah, o cruzamento de dados. Se quando quero mudar o tarifário da Vodafone tenho que explicar a mesma história a cinco funcionários porque não há uma base de dados que funcione, imaginemos num sistema nunca antes testado em Portugal.

João Tiago Machado reforça que, graças a este esforço, 12.906 pessoas que estão em confinamento vão poder votar. Certo, mas eu não vou poder. Nem eu nem as muitas pessoas que, segundo o responsável, já apresentaram queixa junto da CNE. "Só no domingo foram 650 email e telefonemas". E espero que sejam muitos mais.

É que no mesmo dia que sobe em mim esta revolta, faço um zapping antes de ir para a cama e vejo que o André Ventura conseguiu quebrar dezenas de regras numa só noite ao juntar 170 pessoas num jantar-comício do Chega, em Braga.

Não dá vontade de, vendo passar os sintomas, munirmo-nos de máscara e desinfetante e ir na mesma às urnas dia 24? Conheço quem o vá fazer. Eu acho que fico em casa, mas se vir mais uma destas, pinto os lábios de vermelho, descubro onde o Ventura vota e vou lá dar-lhe um beijo na boca. Daqueles intensos, cheios de língua e vírus.