Vivemos numa época em que muita gente não lê mais do que um título de uma notícia para se sentir totalmente esclarecida e informada sobre qualquer assunto, por isso, e porque acredito que há quem vá além desse título, e chegue mesmo a ler as primeiras duas ou três linhas dos artigos, aqui vai:
Ponto prévio 1. O que Joana Mascarenhas se orgulha de ter feito à filha é algo tenebroso, assustador, condenável, quase impensável nos dias de hoje. Não há ali nada de bom, equilibrado, justificável, zero. E tão grave como submergir a filha na piscina ou dar-lhe banhos de água gelada para pôr fim a birras é vir publicitar essas alarvidades nas redes sociais. Tudo certo, acho que neste ponto deve haver um quase unânime consenso entre pessoas mais ou menos normais, que jogam com o baralho todo, por assim dizer.
Ponto prévio 2. Tenho três filhos, com 16, 10 e 5 anos, e nunca, em qualquer situação, lhes bati. Quando digo bater estou a falar de situações de violência, estaladas, puxões de orelhas, agressões, coisas desse género, não estou a falar daquela palmadinha na mão ou no rabo por cima da fralda, que representam quase sempre muito mais um desgaste emocional do pai ou da mãe do que propriamente uma vontade de aplicar um corretivo à criança. Isso já fiz, sim, não muitas vezes, mas uma ou outra muito de vez em quando (e, lá está, quando o fiz o problema era eu, muito mais do que o comportamento deles).
Dito isto, acho que tem de se olhar para este episódio de Joana Mascarenhas de vários prismas e com uma abordagem que tem de ir muito além desta coisa de irmos todos numa turba atrás da justiça com as próprias mãos, linchando uma pessoa e tentando destrui-la por completo. É nestes momentos que é preciso parar, pensar um bocadinho, olhar para os outros mas olhar também para nós próprios, e pensar muito bem antes de falar.
Tal como praticamente todas as pessoas, quando vi esta história a minha vontade foi a de dizer mais ou menos o que toda a gente disse. Mas com o passar do tempo, e depois de pensar melhor sobre tudo isto, acho que é muito mais interessante abordar o outro lado da questão, que é a do análise objetiva da situação que ocorreria se as coisas acontecessem por vontade popular. Ou seja, se fosse a tal turba em fúria das redes sociais a decidir o futuro desta mãe e desta filha, o que aconteceria seria que a Joana Mascarenhas seria detida por maus tratos à filha e a pequena Julieta, de 3 anos, ser-lhe-ia retirada. Acho que é mais ou menos isto que se pode retirar das centenas de opiniões que vi nestes últimos dias nas redes sociais.
Então, mas se entendemos que a criança deve ser retirada à mãe porque terá ficado traumatizada com os banhos de água fria que levou, não será lógico achar que a pequena Julieta ficaria muito mais traumatizada se, de um dia para o outro, fosse retirada da companhia da mãe? Por pior que nos possa parecer o comportamento da senhora — e é, terrível — por que é que devemos achar que isso leva a que aquela criança não ame a mãe mais do que qualquer outra coisa na vida? E o contrário, ou seja, que aquela mãe ame aquela filha mais do que qualquer outra coisa na vida?
É pelo facto de muitos de nós, em situações de desespero, enfiarmos um tabefe no nosso filho que isso dará o direito à Comissão de Proteção de Menores retirar-nos a criança? Ou que isso signifique que não amemos o nosso filho? E que ele não nos ame? É por, em situações de desespero, termos um comportamento altamente reprovável enquanto pais que isso faz de nós pais incapazes e sem o direito de estarmos com os nossos filhos?
Honestamente, acho que deve haver muito poucos pais, muito poucos mesmo, que nunca tenham vivido essas situações em que perdem a cabeça com os putos e fazem qualquer coisa de que se arrependem logo depois. Ou mesmo que não se arrependam, mesmo que achem que dessa forma estão a contribuir para que os filhos ganhem algum tipo de resistência, disciplina, o que for, isso dará ao Estado o direito de retirar uma criança a um pai ou mãe? Deve ser o Estado, ou a opinião das redes sociais, a decidir se um pai ou mãe tem o direito de ser pai ou mãe porque teve um comportamento inadequado numa determinada situação? Essa decisão é mesmo o superior interesse da criança? Pois, não sei, só sei que estas situações são demasiado complexas para que achemos que sabemos tudo e que a nossa opinião é a correta e a única possível.
Vivemos uma época em que a educação com base no diálogo, na cordialidade, no respeito pelas crianças são quase norma nas sociedades mais desenvolvidas. Há cada vez mais pais com uma educação base forte, informados, letrados, licenciados, que entendem que a educação com base na violência é algo de muito errado e altamente prejudicial para as crianças. Isto contrasta em muito com aquilo que foi a educação dada aos nossos pais e avós, em que havia tareias de cinto, espancamentos, violência física, psicológica, emocional, até porque os nossos avós tinham sido, eles próprios, educados dessa forma pelos seus pais.
Só que é precisamente nesta geração atual, a tal que não foi educada na base da pancada, que foi educada com diálogo e cordialidade, que temos mais casos de problemas de saúde mental, de insegurança, de ansiedade, de crises de aceitação, de distúrbios emocionais e comportamentais. Uma vez mais, olhando para trás, para a geração dos nossos pais, muitos deles educados na base da pancada, e não vemos aquilo que defendemos ser a consequência dessa educação na base da pancada, ou seja, não vemos na geração dos nossos pais uma série de pessoas perturbadas, cheias de problemas de saúde mental, com crises de ansiedade ou traumas profundos que os marcam para a vida.
Volto a repetir, porque já sei que as pessoas gostam de ler o que não está nos textos: não, não estou a defender uma educação violenta. Não, nunca bati nem irei bater nos meus filhos. Não, não acredito que a solução para uma boa educação seja a violência ou a agressividade.
O que digo é que olhando à nossa volta, não vemos que a situação seja clara como a água, tal como ela nos é vendida: uma educação na base do diálogo gera pessoas felizes e educadas e uma educação na base da violência gera pessoas traumatizadas e com problemas de saúde mental. Eu vejo muito mais o contrário.
Voltemos aos modelos educativos. Não é de todo consensual entre os pais qual é a forma de se conseguir gerar pessoas felizes e úteis para a sociedade, que, no fundo, é aquilo que todos os pais devem querer dos filhos. Há mil caminhos diferentes que levam a esse resultado. E esses mesmos mil caminhos levam também a outros resultados totalmente opostos. Ou seja, não há fórmulas educativas certas, não há uma relação causa-efeito entre um determinado modelo educativo e um resultado final esperado. Se houvesse era simples: todos seguíamos essa fórmula.
Muitos pais gostam do modelo militar, até porque também eles foram militares ou educados por militares. É a educação com base na disciplina absoluta, o cumprimento cego de ordens de comando sem levantar cabelo, o fazer o que mandam e mais nada. E ai de quem conteste o que quer que seja. E a bofetada, o açoite são coisas mais do que válidas. Quantos e quantos pais foram educados assim e dizem que só têm a agradecer essa educação que lhe foi dada? E que depois até põem os filhos no Colégio Militar porque acham que esse caminho é o melhor para que o filho tenha um bom futuro? Muitos concordam, muitos discordam. Agora, um pai que segue este modelo e que acha que a melhor forma de conseguir educar o seu filho é dando-lhe uns tabefes de vez em quando deve ser impedido de ser pai? Os filhos devem ser-lhe retirados por isso? Não, acho que não.
Vamos ao outro lado, ao do pai que segue o modelo oposto, o da total permissividade, do respeito absoluto pela criança, pelos seus tempos, modos, disposições. O pai (ou mãe, naturalmente) que educa com base no diálogo, na explicação, no consenso, e que tem um filho totalmente irascível, mal educado, que não cumpre nem respeita nada do que os pais lhe dizem, que só faz o que quer. Este pai, ou mãe, é um modelo de perfeição e está a fazer tudo o que é correto? Provavelmente sim. Provavelmente não. Ninguém sabe.
Uma coisa eu sei: o pai militar e o pai permissivo, a fazerem as coisas certas ou erradas, têm o direito de educar o filho de acordo com aquilo que consideram ser o melhor para atingir o mesmo objetivo: gerar pessoas equilibradas, felizes e úteis para a sociedade. Se pelo caminho cometem erros, e erros muito graves, sim, seguramente, como todos os pais. Faz parte, educar é um processo de conhecimento da criança mas também dos próprios pais. Ninguém nos ensina a educar, nós aprendemos a educar educando. E ao aprender, erramos, faz parte.
Para mim, Joana Mascarenhas cometeu dois erros gravíssimos: achou boa ideia enfiar a filha em água gelada para acabar com uma birra e veio orgulhar-se disso nas redes sociais. A Joana Mascarenhas aprendeu com os erros nestes últimos dias. E acho que chega. Exigir que uma mãe que erra deve ser privada de ser mãe e, sobretudo, uma criança de 3 anos ser afastada da mãe só porque ela cometeu erros é, para mim, absurdo.
A Comissão de Proteção de Crianças e Jovens deve retirar crianças aos pais em situações limite, de risco de vida, de total incapacidade de educar um filho, de instabilidades mentais, não porque as redes sociais não concordam com a educação que um pai dá a um filho.