Os leitores perguntam, a psicóloga Sara Ferreira responde. É assim todas as semanas. Saúde, amor, sexo, carreira, filhos — seja qual for o tema, a nossa especialista sabe como ajudar. Para enviar as suas perguntas, procure-nos nos Stories do Instagram da MAGG.
Cara leitora,
O tema da sua questão — “Os meus sogros estão a acabar com o meu casamento“ — é “daqueles”! No entanto, deve ser tão comum quanto oculto na vida de muitas pessoas, pois tem tanto de quotidiano quanto de “cabeludo”, por si só.
Como tema complexo e delicado que é, dado envolver uma série de realidades, contextos, sensibilidades e prismas diferentes — tão diferentes quanto as famílias que existem à face da Terra —, por vezes vale a pena parar, escutar e olhar antes de sentenciar. É que a internet é este “lugar” onde, com a mesma facilidade com que podemos encontrar um universo de super-novas, de igual forma podemos cair num buraco negro de desinformação e generalizações discutíveis.
Se pesquisar por este assunto, verá que a maior parte das “dicas infalíveis” sobre como lidar com a situação sugerem, quase que invariavelmente, uma mudança de postura/comportamento/atitude/sentimento/e o diabo a quatro, em relação aos sogros “problemáticos”, da parte de quem, consegue adivinhar? Bingo! Da nora. Ou seja, da mulher do esposo, que é o filho da mãe… e do pai, que pelos vistos estão a “acabar com o casamento” da nora que é casada com o marido, filho da mãe… e do pai, que... OK.
Bom, a mulher, já sabemos, é a origem do mal do mundo (literalistas, estou a hiperbolizar), mas neste tipo de situações confesso que me incomoda um pouco ver sempre de alguma forma (explícita ou implicitamente) um tom recriminatório nestas “orientações” genéricas a defender que a responsabilidade de modificar esta situação negativa tenha ou deva forçosamente que recair sobre ela, a mulher, neste caso, sobre si (independentemente de qualquer que seja o motivo desse “problema”). Sugerindo-nos, basicamente, que tenha de adicionar à sua lista de afazeres domésticos o ónus desta (bicuda) questão.
Mas não… hoje vai aliviar-se (ou desesperar-se!?) ao descobrir porque é que a solução desta intrincada questão não terá (diria mesmo, nem deverá) passar “apenas” por si! Mas… e por quem, então?!
Afinal, quem poderia estar, “tecnicamente” mais habilitado e até capacitado para resolver esta questão?! Pois é… ele mesmo, o seu marido! Calma, que eu explico.
É inegável o impacto que a relação com a família de origem tem sobre os níveis de satisfação conjugal, sendo que as dificuldades nesta área da vida de casal estendem-se geralmente a outras áreas quando os parceiros não se mostram capazes de dar uma resposta eficaz aos problemas.
Nestes quase 14 anos de experiência profissional, mentiria se dissesse não estar já habituada a ouvir histórias (algumas tenebrosas) sobre este tipo de dificuldades de relacionamento entre um dos membros do casal e os sogros — e muitas vezes, mais concretamente, com a sogra. Nestas coisas, as sogras geralmente tendem a assumir a “frente” da batalha, cabendo ao sogro (obviamente com as devidas exceções) um papel de facilitador (por atos, em conluio, ou omissões) do processo.
É óbvio que também existem as honrosas exceções “à regra”. Eu por exemplo, à parte do "setting" terapêutico e da lida clínica deste tipo de casos, posso dizer que não sei o que é viver com este tipo de situação, pois tenho a felicidade de ter uns sogros maravilhosos, a quem muito agradeço a existência (e, já agora, o ser humano que fabricaram, que me levou até ao altar).
No entanto, a verdade é que é muito comum ouvir casos de pessoas que se queixam porque os sogros são conflituosos (de forma ostensiva ou velada) e que a sogra, em particular, é intrometida ou invasiva, porque aos seus olhos, esta tem uma influência excessiva sobre o cônjuge, limitando a liberdade conjugal.
Mas de que falamos quando descremos sogros dominadores ou de sogras abelhudas? Atente comigo aos seguintes pontos de questionamento:
– De quem será a responsabilidade sobre esta dinâmica?
– Quem estará a permitir ou mesmo legitimar esta forma de emaranhamento e (con)fusão?
– E mais: a quem compete repor a nitidez das fronteiras, ou de umas bordas que urgiriam ser criadas para o restabelecimento básico das relações?
Não é por acaso que nos habituámos a ouvir histórias mais ou menos tenebrosas a respeito de dificuldades de relacionamento entre um dos membros do casal e a sogra.
Talvez a leitora já esteja a começar a ter uma noção de que, por vezes, as fronteiras em relação à família de origem podem ser difusas. Isto é, nos casos em que percebemos existirem sérias dificuldades em perceber onde começa e acaba o papel de cada um. Nestas situações, é extremamente comum que pelo menos um dos cônjuges sinta que a sua privacidade é sistematicamente invadida, seja pela presença física, seja pelo papel ou influência destes sogros em tomadas de decisão que deveriam ser competência apenas do casal.
A verdade é que nós quando nos casamos com alguém, levamos para dentro de casa também aquilo que são ou foram as heranças que cada um dos parceiros traz em termos de hábitos, valores e história familiares. Neste ponto, qualquer casal deverá estabelecer um diálogo ou, se quiser, uma negociação, bem como uma definição clara das regras e hábitos que servirão de base para a vida a dois num novo sistema familiar que acaba de ser criado.
Neste sentido, os membros do casal não devem apenas ser extensão ou corresponder ao “modelo importado” dos hábitos e regras de um dos lados. Muitas vezes, os primeiros anos da vida do casal podem ser especialmente desafiantes para o relacionamento, no caso de se ter que lidar com sogros intrusivos. Isso poderá incluir alguns “braços de ferro” ou lutas de poder que, mais cedo ou mais tarde, poderão dar lugar a um outro patamar de interações, composto por cedências ou delimitação de fronteiras mais nítidas, através das quais poderá ocorrer uma maior interiorização de que, para que a nova família evolua, é preciso que ambos abram mão de algumas convicções.
Não me explicitou os motivos porque considera que os seus “sogros estão a acabar com o seu casamento”, mas estes talvez incluam ou se refiram a questões/dilemas específicos sobre autonomia Vs. dependência (financeira ou emocional) ou mesmo espaço próprio/individual (da casa, da relação, da privacidade dos dois) vs. espaço partilhado/alargado.
Mesmo assim, seja qual for a sua questão em particular, naquilo que podemos antever como uma dinâmica mais disfuncional ou desequilibrada que coloca, pelo que refere, o casal vs. os sogros, uma coisa é certa. As regras de uma família devem ser co-construídas pelos membros do casal que a fundou, e quando criamos uma nova família ela passa a ser a “nossa” família nuclear, e não propriamente a de origem.
E é aqui que, quanto a mim, reside o verdadeiro “X” desta espinhosa questão.
A reposição dos limites saudáveis (que visem uma maior harmonia na relação de casal) em relação aos sogros (neste caso, os pais do seu marido) começa no comportamento dos filhos – não é à nora ou ao genro (se se tratasse da situação inversa) que compete impor novas regras aos respetivos sogros, agudizando as dificuldades na relação. É aos filhos (dos pais/sogros abusivos) que compete traçar fronteiras claras de modo a garantir a sobrevivência da sua própria família.
Vamos lá a destrinchar isto.
Então, quando você casou com o seu marido, já sabe que ele veio com os “apêndices” todos (o pai, a mãe, o tio, o primo, o periquito), enfim, o pacote completo.
Agora, diga-me cá: com quem é você se está a relacionar? Com aquela pessoa (o seu marido). E ele já veio com todos os apêndices dele, que existiam na vida dele provavelmente muito antes de você ter chegado. Então, quem tem que agir em relação aos respectivos apêndices é ele… porque a leitora é a “a ponta fraca” da relação.
Os pais são dele, não seus. A dinâmica veio com isso, provavelmente nem foi você que a gerou. Provavelmente também, essa dinâmica já existia na família de origem do seu marido antes de você sequer existir na vida dele.
Portanto, é preciso deixar claro aqui uma coisa. Costumamos dizer “sogros abusivos” mas na verdade, nestes casos, abusivo é o sistema familiar. É essa dinâmica que promove esse tipo de abusividade.
Geralmente, o parceiro é abusivo também, na medida e que ele negligencia a situação de intrusividade ou é permissivo com ela e então acaba por compactuar indiretamente e ser passivo em face ao comportamento ou atitudes dos pais.
Deixe-me por isto de uma forma que talvez fique mais fácil de entender. Imagine a leitora que estava a conversar (relacionar-se) comigo e que entretanto há alguém que lhe bate pelas costas. Eu, do meu lado, até vejo, supostamente sou sua amiga e companheira e até estou num relacionamento consigo. Olho para o que está a acontecer e limito-me a dizer: “ah, daqui a nada vai parar…” e não procuro impedir ou interromper o ciclo de abuso ou agressão. Entende? Neste sentido, se eu estou a ser conivente com uma coisa, eu estou a participar nisso.
Então, minha cara, não, talvez eu não possa acusar os sogros. Eu tenho que entrar pela questão de outra forma e questionar-me sobre “quem é que está a ser permissivo?” e/ou perguntar-me: “Quem aqui deveria defender-me?".
Se acha que está a ter problemas graves no seu casamento devido à influência (nociva, suponho) dos seus sogros isso é um sinal claro de que este tipo de emaranhamentos familiares ou sistémicos estão a tomar lugar. E isso significa o quê, essencialmente?
Que alguém (e acho que você já descobriu quem!) não está a saber (ou a querer) posicionar-se dentro da família.
Uma das características que demonstram os sintomas de emaranhamento sistémico dentro de uma família é a confusão de papéis entre vários membros. Quer exemplos práticos (e infelizmente, reais)? Um pai que não está no seu lugar – como pai ou marido, por exemplo. Ou uma mãe que não está no lugar da esposa e mãe. Os filhos que também não estão no papel de filhos, e muitas vezes interferem na vida dos pais ou assumem mesmo o papel de “pais dos pais”. Da mesma forma, existem este tipo de pais que querem interferir na vida dos filhos adultos. Ou irmãos que querem mandar em irmãos. E o mais cómico (se não fosse apenas triste) são, por exemplo, os irmãos mais novos que se julgam “superiores” aos irmãos mais velhos… Já deve ter visto situações como estas, não é verdade? Tudo isto está fora de ordem e é destrutivo porque gera um rol de confusões e (com)fusões desmedidas e problemáticas no seio de uma família.
Quando os emaranhamentos familiares ocorrem, a experiência que as pessoas têm do convívio umas com as outras é tensa e “carregada”. Geralmente, os membros têm dificuldade em ocupar com sabedoria a harmonia os novos papéis que lhe são atribuídos, especialmente no contexto da formação de uma nova família ou sistema familiar.
É esse o perfil dos sogros que exercem influência, seja de uma forma indireta e mais subtil, com as vivências familiares que já existiam antes da formação do casal, seja de uma forma mais direta, através de crenças e expectativas, de cariz mais positivo ou negativo, que são dirigidas ao cônjuge do filho(a).
Os motivos para isso acontecer são diversos, mas por norma as pessoas estão identificadas com situações do passado ou até com vivências de ancestrais, e por isso, não conseguem viver uma vida livre e plena, aqui e agora. Essa identificação com o passado impede de viver plenamente o aqui e agora, com toda energia vital e um pulsar mais renovador de relações que, ao longo do tempo e das etapas do ciclo de vida, podem e devem ir-se atualizando. As emoções de uns em reação aos outros ficam distorcidas, um membro pode sentir-se extremamente cobrado numa situação, com ou sem razões para isso, enquanto que outro se sente culpado, e nem sabe o porquê. E então, estas emoções distorcidas são cuspidas para dentro do relacionamento familiar, com cobranças mútuas, acusações, sentimentos de culpa, rejeição, gente a fazer-se de vítima, outros a chantagear, a ameaçar, ou outros ainda a denegrir, a agredir e a abusar… E o pior é que, se for este seu caso, talvez sentimentos como mágoa e ressentimento pelo seu marido (que aparentemente não faz nada para travar a intromissão) também já façam parte deste cardápio indigesto para as rElações (mas “ideal” para as rAlações!).
Não é fácil reconhecer as evidências de emaranhamento e menos ainda ser solidário para com as queixas do cônjuge. Porém, apenas se os problemas forem identificados e as necessidades de cada um forem consideradas é possível avançar para as mudanças que promovam o reequilíbrio e o bem-estar de toda a família. Às vezes, pode ser que um dos membros do casal viva com medo de magoar ou desagradar os pais e, por isso, acabe por se anular a decisões importantes. Mas, como tudo na vida, há um preço a pagar por uma escolha destas: certamente, o fracasso do próprio projeto/núcleo familiar.
Afirmar limites pode parecer assustador de início, sobretudo, para as pessoas que passaram uma vida sem saber como expressar as suas necessidades ou posições.
Os limites definem quem somos. Eles estabelecem "o que é meu" daquilo que "não é comigo." Estabelecer limites pessoais (e conjugais) ajuda-nos a criar uma noção de propriedade e proteção em relação a nós mesmos. Os limites são a nossa segurança pessoal. E para ter limites, você precisa de ter controlo, de decidir, de optar. É tudo isto que definirá quem é, quem são, quem quer ser ou quem não quer ser. O que quer que faça parte da sua realidade, e o que não quer. Ao dizer " sim" a certos aspetos e "não" a outras coisas, uma pessoa cria essa vibração, uma frequência, um padrão, moldando assim a verdade dos seus relacionamentos e da sua vida.
Entretanto, perceba que enquanto o seu parceiro estiver submetido emocionalmente pela matriarca (ou pelos patriarcas), nenhuma outra mulher entrará na relação sem ser atingida.
No entanto, e como lhe disse antes, malditos não são os sogros, mas a simbiose de pais e filhos (adultos).
A leitora e o seu marido comprometeram-se um com o outro, e não com as respetivas famílias de origem, embora elas possam e devam integrar o espectro alargado do vosso atual núcleo familiar.
Se sentem que não estão a fazer alguma coisa que deveriam mas nem sabem bem o quê ou como, ponderem esta opção: recorram a apoio profissional (a terapia de casal seria especialmente indicada para este tipo de situações). Adotem uma postura mais ativa no combate às questões ou problemas que os afetam e incomodam, no vosso dia a dia.
Às vezes pode parecer uma tarefa hercúlea repor os limites saudáveis, mas não é impossível. Sobretudo, porque não estamos necessariamente a falar de um distanciamento afetivo, mas, sim, do estabelecimento de regras básicas que facilitem a exteriorização dos afetos. União familiar não tem de equivaler a emaranhamento de papéis, até porque quem ama, faz bem e respeita o espaço e o tempo do outro. Não é responsabilidade dos filhos servirem de marioneta para que os pais tentem viver através deles as próprias vidas.
Talvez a leitora e o seu marido não estejam, de momento, a conseguir colocar a vossa relação em primeiro lugar, daí a eminência de sentir que o próprio casamento, à conta dos seus sogros, está a “acabar”.
Provavelmente isso indica também que as discussões (ou pelo menos que a dissonância) entre vocês já esteja a atingir níveis perigosos de hostilidade, na medida em que há uma pessoa que se sente preterida e há outra que talvez se sinta forçada a escolher entre o amor aos pais e o amor ao cônjuge.
Ledo engano! O que poderá estar aqui em causa nesta situação NÃO é a necessidade de escolher entre duas formas de amor. O que está aqui em causa é simplesmente a clarificação de papéis.
Tal como acontece noutras áreas da conjugalidade, o problema passa a merecer a intervenção externa (apoio psicoterapêutico) quando as competências do casal já não chegam para dar resposta às dificuldades e/ou quando estas se prolongam indefinidamente, deteriorando os (re)laços. E há alguns casos em que os níveis de tensão já são tão elevados que estão quase sempre presentes o que torna indispensável a figura de uma espécie de mediador da contenda.
Toda esta insatisfação pode intensificar-se principalmente quando há uma dificuldade de comunicação do casal. Contudo, só vocês podem conversar e responsabilizar-se quanto à tentativa de reconciliação ou separação, bem como estreitar as fronteiras da vossa relação a dois.
Pelo seu relato, fico com a sensação de uma permeabilidade na relação que tem permitido, de facto, a entrada de outras pessoas em situações ou aspetos que são conjugais.
Neste tipo de desentendimentos, ambos acabam por construir muros para se defenderem um do outro, sem possibilitar alternativas de conversa e negociação (que seria a construção não de muros, mas de pontes). A comunicação fica prejudicada e à falta de diálogo, ambos passam a “ler pensamentos”, ou seja, a deduzir o que o outro quer, pensa ou sente.
É neste contexto, que o psicólogo auxilia na compreensão desta dinâmica conjugal e familiar, a fim de possibilitar novos rumos, contactos, acordos, responsabilidades e sentimentos para a relação.
É claro que não há uma resposta ou solução única para todos os casos, mas existem profissionais que podem ajudar neste processo através da terapia individual ou mesmo de casal.
Para compreender melhor os conflitos que estão a decorrer (para em última análise os poder ultrapassar) é interessante também perceber como funciona a família dele. Cada família tem um jeito de ser e procura formas de conseguir conviver de alguma forma juntos, mesmo que por maneiras enviesadas. Entender essa dinâmica familiar, como cada membro é e qual é a sua importância, ordem e papel na família, significa conseguir lidar melhor com a situação.
Uma família constrói-se todos os dias. E um casal também. Os conflitos e problemas podem e devem ser administrados de forma saudável, mas em casos destes, o papel do marido/filho é fundamental no desenvolvimento da relação sogros-nora. Se ambas (ou uma das partes) amadurecerem emocionalmente, poderão compreender-se mutuamente e tomarão consciência que não precisam competir, já que cada um(a) exerce um papel diferente na vida do filho/marido. Talvez este seja um grande desafio para ambas as partes, que necessita ser superado para que haja a (re)construção de uma relação saudável.
E voltando à “vaca fria” da sua questão e à urgência na definição de limites… não é que eles podem causar ‘stress’? Sim! Mas aqui para nós, e não ter esses limites definidos… não está a provocar “stress” também?!
Até para a semana!