Aconteceu no Verão, depois do primeiro confinamento. O consumo ocasional de pornografia é, para mim, não só normal como também um prazer solitário. Nunca foi algo em torno do qual criasse tabu. Mas, em meados de 2020, vi-me confrontada com duas realidades relacionadas com esta indústria (em particular com a maior plataforma online deste tipo de conteúdo, o Pornhub), e que me fizeram abdicar do consumo online de conteúdo pornográfico.
Antes de explicar as razões, um preâmbulo. A minha relação com a pornografia começa provavelmente como muitos milhares da minha geração, que era adolescente quando a televisão por cabo chegou a Portugal. Com o canal 18, o extinto Viver / Vivir que, às sextas-feiras, a partir de determinada hora, transmitia filmes pornográficos que, à distância do tempo, eram mais hilariantes do que excitantes (muita depilação feita às três pancadas e muita meia branca).
Sendo rapariga, não havia obviamente qualquer tipo de conversa sobre este tema, muito menos partilha de cassetes VHS ou, um pouco mais tarde, downloads ilegais sacados de sites peer-to-peer, como acontecia (e ainda acontece, agora em formato digital, com os rapazes, desde tenra idade). E foi preciso chegar à idade adulta, já perto dos 30, para deixar de ter vergonha de falar abertamente sobre este assunto.
No primeiro confinamento, o consumo de conteúdo pornográfico online no Pornhub, aumentou, em média, cerca de 25%, de acordo com dados do site.
E foi também em 2020 que Mia Khalifa veio a público pedir para que os seus vídeos fossem removidos do Pornhub. A petição teve 1,5 milhões de assinaturas. A ex-atriz pornográfica já tinha revelado publicamente que trabalhou na indústria durante apenas 3 meses, em 2015. Ganhou quase 10 mil euros e, desde então, não recebeu qualquer tipo de pagamento pelas visualizações dos conteúdos que protagonizou. Mia Khalifa é, até aos dias de hoje, uma das mais procuradas na internet pelos consumidores deste tipo de conteúdo. Nunca mais exerceu este tipo de atividade mas a sua imagem continua a ser explorada para lucro de terceiros.
Depois das denúncias de Mia Khalifa, vários órgãos de comunicação social publicaram investigações que expõem uma realidade assustadora e com a qual me recuso a pactuar: plataformas como o Pornhub permitem o carregamento de vídeos por qualquer utilizador que crie uma conta. Não há verificação de conteúdo, não há qualquer tipo de controlo, criando as condições perfeitas para a divulgação de vídeos de revenge porn, pornografia infantil, conteúdos resultantes de tráfico de seres humanos.
No início de dezembro, um artigo de opinião do "The New York Times", intitulado, “As Crianças do Pornhub", reunia uma série de relatos e reportagens que comprovavam como a plataforma não tinha qualquer controlo sobre o conteúdo dos vídeos que nela são carregados e que, assim, contribui para a exploração e tráfico sexual.
Como o caso arrepiante de uma adolescente, menor de idade, desaparecida durante um ano, e que foi encontrada através de 58 vídeos divulgados no Pornhub, onde fazia atos sexuais com homens adultos. Os envolvidos foram condenados, o Pornhub escapou a qualquer responsabilidade.
Não é preciso ser um perito em pesquisas online para, ao fim de alguns minutos, encontrar esse tipo de conteúdos. Há vídeos amadores nos quais é perfeitamente percetível que as pessoas expostas não sabem que aquele conteúdo está a ser gravado e / ou que vai ser publicamente divulgado. Há outros em que a violência não é encenada para propósitos de prazer e que há sofrimento real. Há um fascínio preocupante e mórbido com categorias como "barely legal" e "underage", e não é difícil perceber que há ali conteúdos protagonizados por menores de idade (embora, claro, isso seja quase impossível de provar).
E há cada vez mais conteúdo português. Vídeos curtos, sempre com títulos humilhantes para as mulheres, como “porca de Cascais gosta de levar com ele” ou “pita do liceu a levar por trás”. A nota dominante é sempre a mesma: a glorificação do macho cobridor e o insulto à mulher que, por praticar sexo, não é pura.
E outro dado também preocupante, embora menos grave: a desvalorização total do prazer feminino em prol da satisfação masculina. O que é que isto faz à cabeça de um miúdo de 13 anos que ainda não iniciou a sua vida sexual? É este o padrão? É esta a norma?
Além de questões de direitos humanos, do machismo, da misoginia, da violação de privacidade e do direito à imagem, existe também a parte financeira. Sendo o Pornhub uma plataforma que vive não só de assinantes pagos mas também de anúncios, o lucro reverte esmagadoramente para a empresa e não para os produtores de conteúdos (sejam eles profissionais ou amadores).
Existem cada vez mais atores desta indústria e também trabalhadores do sexo que estão a migrar para plataformas onde o conteúdo que produzem é pago (como, por exemplo, o OnlyFans) e em que recebem fatias consideravelmente maiores desses valores, só que ainda estamos longe de ter regulação que proteja este tipo de atividade (como se pode ler neste estudo da Universidade de Lincoln).
Em dezembro, o Pornhub eliminou dos seus servidores milhões de vídeos, após uma petição com dois milhões de assinaturas exigir o encerramento do site (e também depois da Mastercard ter cortado ligações com a empresa e a Visa tem suspendido a opção de pagamento). Várias organizações contra o tráfico e a exploração sexual criaram a iniciativa TraffickingHub, que tem por objetivo sensibilizar o público para o facto de o Pornhub lucrar com o tráfico e exploração sexual de mulheres e menores.
O Pornhub tem uma média de 3,5 mil milhões de visitas por mês. Mais do que Netflix, Amazon e Yahoo juntas. Estima-se que a empresa canadiana valha 1,24 mil milhões de euros. A empresa queixa-se de estar a ser discriminada em relação a outras plataformas como o Tik Tok, o Instagram e mesmo o Facebook. alegando que faz mais pelo controlo de conteúdos do que aquelas redes sociais.
O que está aqui em questão não é a demonização do consumo de pornografia. É para que é que estamos a contribuir quando, inocentemente, consumimos um vídeo de quatro minutos para descontrair, ou o partilhamos num grupo de Whatsapp ou Telegram.