É um filme português, feito por atores portugueses. Tem pouca ação. Não tem praticamente banda sonora. Há saltos temporais que só se compreendem a meio da trama. A imagem não é colorida nem viva. "Submissão" passa-se numa Lisboa cinzenta, onde chove, com pessoas que não estão maquilhadas para serem lindas. É um filme que não é fácil de ver.
Estes são os argumentos superficiais que poderão fazer alguém não pagar um bilhete para, a partir de dia 20 de outubro, ir ver "Submissão" a uma sala de cinema. Agora vamos às razões que realmente interessam.
"Submissão", escrito e realizado por Leonardo António, conta a história de Lúcia (Iolanda Laranjeiro), uma mulher que, após ser violada pelo marido, Miguel Corte Real (João Catarré), decide levar o caso a tribunal e até às últimas consequências. Lúcia é cabeleireira, tem um salário modesto. Miguel, mais abastado, é filho do vice-procurador-geral da República. A desigualdade da relação atravessa todos os campos, do financeiro ao sexual. Até que, numa noite banal como outra qualquer, Lúcia é violada pelo marido.
Aquilo que parece um casamento estável e feliz vai sendo desmontado à medida que Lúcia vai partilhando, quer com a procuradora (Maria João Abreu), quer com amigos, quer com o grupo que frequenta na APAV, as circunstâncias da relação. Em tribunal, perante um juiz (Marcantonio Del Carlo), um advogado (José Raposo) e um procurador (João Didelet), que corporizam a visão machista, heteronormativa, patriarcal e datada que a Justiça ainda tem sobre questões como o casamento, o abuso sexual e a autonomia feminina face ao homem, Lúcia vai desfiando os acontecimentos que levaram àquilo que, para aqueles homens, parece impossível: um marido violar uma mulher.
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De forma absolutamente brilhante e soberba, sem excessos de emoção, Iolanda Laranjeiro e João Catarré são tantos casais desavindos, são tantas relações tóxicas. Catarré interpreta o típico macho de ego ferido, manipulador, dominante perante a sua fêmea, que não descansa enquanto não a manieta (física e simbolicamente). Mas, como é filho de boas famílias e bem falante, ainda para mais um homem sério que ama a sua mulher, tenta convencer o tribunal de que uma violação, afinal, não é mais do que amor conjugal.
Há zonas cinzentas, poucos preto no branco neste filme incómodo, que tem uma das mais intensas (e bonitas) cenas de sexo alguma vez mostradas no cinema português (grandioso trabalho de Iolanda Laranjeiro e Martinho Silva). Há uma decisão aparentemente impossível que Lúcia toma e que dividirá a opinião dos espectadores. E há, sobretudo para quem é mulher e sabe o que é viver micro-agressões, assédios e desigualdades desde a primeira menstruação, um arrepio contínuo. Um susto, uma solidariedade carnal para com Lúcia.
Pode uma violação nascer do amor? Pode o amor nascer de uma violação? O que é o amor? Até onde estamos dispostos a ir por amor ao outro e por amor próprio? "Submissão" não responde. Mas incomoda. E é grandioso na forma como o faz.
*a MAGG assistiu à antestreia do filme "Submissão" no âmbito do TVCINE Fest.