Há uns anos, durante uma discussão por um motivo tonto, tive um namorado que me empurrou para cima de uma cama e fez pressão no meu pescoço com uma das mãos. Largou-me rapidamente e, de seguida, deu um murro na parede de tal forma que a marca ficou lá.

As próximas palavras escolho-as com com todo o cuidado porque 1) se, por um lado, na época não me considerei uma vítima no namoro devido a este comportamento ter sido um ato isolado (não que isso desculpe alguma coisa) e, na verdade, não me voltei a sentir agredida no resto da nossa relação  —, 2) por outro, não quero que esta atitude seja branqueada ou assumida como menos grave por se tratar do tal ato isolado. 

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A Catarina de hoje, com 34 anos, duas filhas e uma confiança que não tinha aos vintes, consegue reconhecer que se tratou de um comportamento agressivo causada por um qualquer comentário da minha parte no meio duma discussão, desproporcional e só revelador de quantos muitos homens acreditam que a violência é algo justificável numa relação que deveria ser de amor.

O meu namorado pôs-me a mão no pescoço no meio de uma discussão. E, há mais de uma década, interpretei o gesto como um símbolo do seu amor. “Tens noção do quanto ele gosta de mim para fazer isso? Mexeu mesmo com ele”, disse eu a várias amigas, de todas as vezes que repeti a história. Levei uma atitude agressiva como um amuleto de como era amada, de como era maravilhoso ter um rapaz a agir como uma besta a esmurrar paredes. Romantizei um apertar do pescoço.

A minha desculpa? Imaturidade, se é que isso desculpa alguma coisa. Mas o momento, que apaguei da minha cabeça não muito depois do sucedido, surgiu-me na cabeça durante a noite deste domingo, enquanto assistia à última gala do “Big Brother Famosos”.

Os contextos dispensam-se, e acredito que a relação tóxica de Bruno de Carvalho (entretanto expulso pelo público do programa) e Liliana Almeida já não seja novidade para ninguém, bem como a total impunidade como a produção do reality show e a estação que o transmite, a TVI, lidaram com o tema.

Durante os primeiros minutos da gala, entre várias frases feitas que, como li algures no Twitter, quase que pareciam um pedido desesperado para fazer valer novamente o chavão de “entre marido e mulher, não se mete a colher”, existiu uma que me fez clique e me trouxe imediatamente à memória a tal discussão com o meu namorado.

Perante imagens, a meu ver, agressivas de Bruno de Carvalho a agarrar no pescoço de Liliana Almeida (com esta a pedir para Bruno não a agarrar), Cristina Ferreira pediu à concorrente para classificar as mesmas imagens.

“É a nossa forma de demonstrar amor”, disse Liliana, acrescentando que era assim que agiam na intimidade. Ainda disse que os tais agarranços, que duvido que haja uma mulher no mundo a quem a espinha não se tenha arrepiado a imaginar  — ou pior, a recordar — o peso de uma mão mais forte no pescoço, eram formas de “tesão” e “paixão”.

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Não conheço Liliana Almeida de lado nenhum, e honestamente este texto não é tanto sobre ela ou Bruno de Carvalho — ou sobre a vergonha nacional que foi assistir a tudo isto na noite passada —, mas sim sobre o exemplo.

Liliana aparenta ser uma mulher forte, determinada, com a bagagem que a vida lhe deu e que dá a tantos de nós, ora mais, ora menos, mas dá. A tal bagagem que eu não tinha enquanto jovem, e que me fez olhar com uns óculos de romance para uma situação agressiva. No entanto, é-nos impossível saber o que se passa com Liliana: se não se sente, de facto, agredida; se tem os óculos de romance postos, por mais que sem o filtro das lentes esteja tudo negro à volta; ou se precisa apenas de espaço para respirar e perceber o quão tóxica é a relação em que está envolvida.

Mas o verdadeiramente grave de tudo o que se passou tem que ver com o exemplo. O exemplo de branquear estes comportamentos e olhar para eles como amor. O exemplo de fazer valer o tal chavão que já mencionei: "entre marido e mulher, não se mete a colher".

A certa altura, Cristina Ferreira disse que “só o amor pode resolver até as coisas mais condenáveis”. Não, não pode. O amor pode ter o poder para resolver muita coisa, mas nunca deveria ser um parceiro da violência, uma capa de glitter para comportamentos agressivos justificados por “ah, mas é porque ele/ela gosta tanto de mim”.

Aos vintes, o meu namorado agarrou-me o pescoço e achei que era amor. Hoje, sei que a minha missão como mãe, entre tantas outras coisas, é ensinar as minhas filhas que nem todo o amor do mundo resolve (ou justifica) uma mão no pescoço.

Sabem outra coisa que o amor não resolve? As 23 mulheres e crianças mortas por violência doméstica só no ano passado no nosso País.