Costuma-se dizer que os amigos são a família que escolhemos e existem estudos que o comprovam: numa investigação divulgada em 2017, publicada no site “Personal Relationships”, os autores afirmaram que as amizades tornam-se cada vez mais importantes à medida que envelhecemos — e podem até contribuir mais para o nosso bem-estar do que as relações familiares.

Este é um cenário em que Maria (prefere não revelar o apelido), 32 anos, professora, se revê. Aos 14 anos, conheceu uma amiga que a viria a acompanhar nos piores momentos da sua vida. A sua própria família via-a como um deles. Mas a amizade não resistiu à violência psicológica de que Maria era vítima, que a obrigou a lutar por si e a colocar um ponto final numa relação que se tornou tóxica.

“Conheci-a quando devia ter cerca de 14 anos, ela é um pouco mais velha do que eu e, depois de chumbar de ano, calhou na minha turma. No início creio que não fomos com a cara uma da outra, mas o tempo, as aulas e os amigos em comum, acabaram por nos aproximar”, conta Maria à MAGG.

O tempo passou e a amizade entre a então adolescente e a sua colega de turma cresceu. Sobreviveu à entrada de Maria na faculdade, dado que a amiga não prosseguiu com os estudos, e até a um período de afastamento de alguns anos, onde o contacto era mantido esporadicamente, maioritariamente através da internet.

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As duas jovens acabaram por fortalecer a amizade depois de Maria sofrer um acidente de viação: “Quando tive o acidente, foi ela quem cuidou e ajudou os meus pais. Quando precisei dela, estava sempre comigo e eu com ela. Quando estava bem, eu estava lá, e quando estava mal, eu estava lá. Quando precisava de companhia ou de ajuda com o pai, que tem problemas de saúde, eu estava lá — sentia-me em casa com ela e com a sua família”.

“Disse-me que eu era uma merda e que não valia nada”

Mas nem tudo corria às mil maravilhas. No meio da entreajuda entre as duas mulheres, Maria acabava por sofrer as consequências dos desgostos amorosos da amiga. E não só.

“De cada vez que ela tinha problemas com alguém, especialmente com o namorado, quem pagava a conta era eu. Sempre lhe disse ‘Enquanto ele te fizer feliz, eu sou feliz. E quando te fizer mal, eu estou aqui também’. Mas inúmeras foram as vezes, tantas que lhes perdi a conta, que servi de capacho”, recorda a professora, que assume que foi vítima de violência psicológica nesta amizade.

Maria explica que era constantemente ofendida: “Era tratada como lixo, um tapete em que bates até tirares tudo. Era eu quem pagava e sofria pelo mal que os outros lhe faziam. Era eu quem sofria, era em mim que ela descarregava, porque era eu que estava lá”.

A professora lutou por esta relação. Assume que perdoou a amiga “vezes sem conta” e desgastou-se tanto a nível psicológico que piorou da depressão que já a acompanhava há algum tempo.

E atingiu o seu limite. “Cheguei a um ponto em que disse 'chega'. Sabia que tinha de cuidar de mim”, conta Maria, embora assuma que ainda sofra com a falta da amiga e da relação próxima que um dia tiveram — mas não se arrepende de ter colocado um ponto final nesta ligação.

“Dói muito não saber como ela está, dói não saber se ela se ela precisa de mim. Mas doía muito mais eu anular-me e sofrer para estar ao lado dela. Era a irmã que eu não tenho, e as irmãs perdoam. Mas até elas chegam a um ponto em que não dá mais”, salienta, recordando que de cada vez que tinham uma discussão, a amiga a bloqueava de todas as redes sociais, numa atitude que a professora considera “infantil e imatura”.

Apesar da dor, Maria tentou ter uma conversa honesta com a amiga antes de se afastar, mas nada funcionou.

“Nem quando ganhei coragem e lhe disse o quanto isto me magoava, algo mudou. A resposta dela foi ainda mais agressiva e irracional: disse-me que eu era uma merda e que não valia nada, que não queria saber de mim. Tenho saudades, sinto falta da risota, da amizade, mas não sinto falta das lágrimas, do sofrimento e da tristeza que ela me provocava. Um dia vou conseguir olhar para trás e não sentir nada disto.”

Terminar uma amizade pode ser tão doloroso como acabar uma relação amorosa?

Quem já passou pelo fim de um relacionamento sabe que não são momentos fáceis: temos que nos habituar à ausência da pessoa que esteve ao nosso lado nos últimos meses ou anos, lidar com a solidão, com as saudades e, caso a decisão de terminar tudo tenha partido de nós, lidar ainda com a dúvida se foi a escolha certa.

Mas a dor do término de uma relação não é exclusiva das ligações amorosas —também a separação de um amigo pode ter efeitos nefastos. “É verdade que tudo depende do tipo de ligação que se estabelece com as pessoas, mas sim, existem relações de amizade intensas e com muitos anos em que o término pode ser tão ou mais doloroso do que terminar um relacionamento amoroso”, explica à MAGG a psicóloga clínica Sílvia Botelho.

Sílvia Botelho é psicóloga clínica na Academia da Psicologia

De acordo com a especialista, “acabar uma relação de amizade, principalmente aquelas que nos acompanham há muitos anos, pode ter consequências muito negativas”, e até existe quem entre “em depressão ou experiencie outro tipo de situações graves, tal como no final de uma relação amorosa”.

Apesar de um namoro ou de um casamento ter mais intimidade e uma maior conexão entre duas pessoas, Sílvia Botelho afirma que, numa amizade, “o tempo da ligação, a forma como ambas as pessoas se ajudaram em diversos momentos da vida, entre outras coisas, pode fazer com que exista uma entreajuda e uma cumplicidade ainda maior neste tipo de relações do que nos relacionamentos amorosos”.

“Se fui para a universidade, foi graças a ele”

Quando Marta (prefere não revelar o apelido), 37 anos, bancária, conheceu Rui, aos 5 anos, nunca poderia adivinhar que esse rapaz com quem jogava à bola se tornaria num autêntico irmão.

Depois de crescerem juntos e de terem estudado na mesma escola, os dois amigos acabaram por ir parar à mesma faculdade. E Marta assume que tal não teria sido possível se não fosse a influência do amigo.

“Se fui para a universidade, foi graças a ele. Não tinha capacidades financeiras para continuar a estudar, mas o Rui incentivou-me a não desistir. Trabalhei durante um ano e inscrevi-me no ano seguinte na licenciatura de Serviço Social, o mesmo curso que ele”, recorda a bancária, que afirma que tinha uma “cumplicidade e um amor puro de amigos” com o antigo vizinho.

Aos 19 anos, e apesar de Rui ter um novo grupo de amigos com capacidades financeiras superiores às dele (e às de Marta), este fazia um esforço por incluir a amiga em todas as atividades sociais. A amizade manteve-se forte, mesmo quando a bancária teve de desistir da faculdade, e a morte da mãe de Rui aproximou ainda mais os dois amigos.

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“Falávamos diariamente, vivíamos perto um do outro, mas morte da mãe fez com que o Rui embarcasse numa vida de saídas, jantares e viagens com os amigos da faculdade. Mas nada nos separou, nem mesmo os namoricos que íamos tendo abalavam a nossa relação”.

A bancária recorda que a vida boémia do amigo se manteve nos anos seguintes, ao mesmo tempo que Marta garantiu um bom emprego. Por outro lado, Rui saltava de empregos pouco remunerados para outros do género, até que Marta descobriu a verdade sobre a vida financeira do amigo.

“Vivia numa bolha de créditos, de cartões e créditos pessoais. Tentei ajudar, pedi-lhe para se conter, para não viver acima das suas possibilidades. Como vivia com o pai, tinha hipóteses de recuperar”, conta Marta. Mas tal não aconteceu.

Depois de um período em que as coisas pareciam mais calmas, Marta apercebeu-se de que Rui fazia de tudo para impressionar a nova namorada, entre viagens, refeições em bons restaurantes, prendas, entre outras coisas.

“Eu dizia-lhe que se ela gostava dele podiam dividir a conta ou fazer refeições fora menos vezes, mas era assunto difícil”. Até que um acontecimento crucial marcou o final desta longa amizade.

Marta estava a trabalhar quando recebeu uma chamada ansiosa do amigo: “Disse-me que tinha de ir a Espanha em trabalho, mas que não lhe adiantavam as despesas e tinha a conta a zeros. E eu tentei ajudar. Falei com o meu gerente, expliquei-lhe a gravidade da situação e este agilizou a concessão de um crédito alocado à conta do Rui”.

Mas Rui nunca tinha estado em Espanha e o gerente de Marta, dias depois, mostrou-lhe como o crédito tinha sido utilizado em vários locais em Portugal.

“O meu superior percebeu que a mentira não tinha sido minha, felizmente, mas desabei logo ali. O que se passou a seguir foi horrível e ainda hoje doloroso. Quando confrontei o meu amigo, disse-me para não me meter na vida dele, e que o melhor era nem fazer parte dela. Foi uma facada e fisicamente doloroso”, recorda Marta, que sete anos depois deste acontecimento assume que nunca mais conseguiu confiar em ninguém.

A bancária nunca mais teve contacto com o amigo de infância, até ao funeral de um conhecido em comum. “Falámos e os nossos olhos e corações mataram saudades, mas voltámos à nossa vida.”

Perder um amigo exige um processo de luto — mas há amizades que podem ser recuperadas

Tal como no fim de um relacionamento amoroso ou depois de uma perda, também o fim das amizades deve ser seguido de um processo de luto.

“Há quem evite o assunto, mas é importante falar do mesmo com outras pessoas e passar pelas cinco fases do luto: negação, raiva, negociação, depressão e aceitação”, explica Sílvia Botelho.

No entanto, e apesar de a especialista salientar que nem todas as amizades podem ser recuperadas, acredita que outras podem voltar a existir, mesmo depois de um grande período de afastamento.

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“Muitas vezes, depois do término de uma amizade, esta pode regressar ainda com maior intensidade, com mais maturidade. Depois de um afastamento, as pessoas podem refletir na razão que levou à separação, se era assim tão importante, e aprendem a relativizar mais, a serem mais compreensivas”, refere a especialista.

No entanto, a psicóloga clínica refere que um dos segredos para a manutenção de uma amizade saudável é a comunicação, bem como a capacidade de ambas as partes saberem aceitar as diferenças de cada um.

“As pessoas precisam de falar. Nas amizades, especialmente nas de muitos anos, há uma dificuldade de comunicação, que é um ponto fulcral. Há quem se deixe influenciar por terceiras pessoas, por fatores externos, e isso é uma parvoíce. Para além disso, é necessário perceber que todos somos diferentes, e que temos de respeitar as opiniões e ideias dos outros, e separar a amizade de tudo o resto que a pode prejudicar”, conclui a especialista.

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