O termo 'manipulação' é algo que estamos habituados a ouvir. De certo modo, toda a gente é um pouco manipuladora, e até certo ponto não existe maldade nisso. Mas qual é o limiar que indica que este ato emocional estará a ir longe demais? Como é que uma pessoa sabe que está a ser manipulada? É sempre evidente? Quais são os traços comuns de um manipulador? É possível corrigir esta tendência? Falámos com duas especialistas para entender o que é, afinal, a manipulação.
Maria Cunha Louro, psicóloga forense, e detentora do podcast "inSanidades Mentais", começa por dizer que "todos nós somos manipuladores". "Nascemos manipuladores. As crianças, quando choram, caso tenham fome ou queiram atenção, estão a tentar manipular. Quando queremos manipular, queremos levar a nossa ideia ou a nossa vontade em frente, independentemente da vontade do outro. Fazemos com que a situação em si seja a nosso favor", refere a especialista.
"Há manipuladores que são muito básicos, e nestes casos as pessoas conseguem facilmente perceber que estão a ser manipuladas. A pessoa sabe como reagir, sabe que está a ser manipulada". Contudo, existem casos onde pode não ser tão evidente. "Depois há manipuladores emocionais, que utilizam a emoção do outro a seu favor, e muitas vezes é isto que leva a confundir amor com manipulação. Por vezes, há uma ideia errada de que o amor está associado ao sofrimento, e que os ciúmes são sinónimo de que gostam de nós."
"Somos tão exigentes quando vamos comprar algo, uma casa, um carro, e muitas vezes não somos exigentes com as pessoas que pedem para entrar na nossa vida. Parece que não temos essa preocupação, e mesmo quando nos estão a fazer mal, continuamos a deixá-las estar na nossa vida", diz Maria Louro.
A psicóloga forense revela que existem dois tipos de manipuladores: os experientes e os inexperientes. No caso de serem experientes, por norma, são pessoas "bem falantes, sedutoras, têm a capacidade de analisar e ler o outro", são "mais perigosos". Quanto aos manipuladores inexperientes, é mais fácil identificar as suas intenções, "há a consciência de que estamos a ser manipulados, e optamos, ou não, por deixar ir", refere.
"A questão que se torna preocupante é quando os manipuladores experientes levam à chantagem emocional. Os manipuladores têm muito a capacidade de alterar as próprias perceções das pessoas que são manipuladas."
Existem pessoas mais propensas a serem manipuladas?
A especialista confirma que "há pessoas que mais facilmente entram numa relação abusiva, nomeadamente pessoas mais dependentes, com baixa autoestima, que confiam demasiado nos outros, que têm uma grande necessidade de aceitação (...) estas pessoas são mais suscetíveis a entrar em relações tóxicas".
"Isto não é fácil, não é uma coisa que possamos pensar 'a mim nunca me vai acontecer'. Um manipulador experiente tem a capacidade de alterar as percepções, de começar a fazer duvidar dos próprios juízos de valor, tem um modo de atuar muito específico, que leva a pessoa que está a ser manipulada a crer que está errada, que ela é que é culpada."
Mas não começa assim. Tal como retratado por Maria Louro, o agressor "começa por seduzir, por conquistar, por analisar, por tentar perceber quem é aquela pessoa, e depois vai adaptando o seu comportamento manipulador às especificidades da própria vítima, são uma espécie de vampiros emocionais".
Quando aos efeitos nas vítimas, a especialista refere que "geralmente, a curto prazo é o isolamento, a médio prazo é a pessoa deixar de acreditar em si, e muitas vezes a longo prazo é achar que só pode viver e ser feliz com aquela pessoa". "Leva à dependência emocional. A vítima começa a questionar os seus próprios instintos, e depende cada vez mais da realidade que é criada, e manipulada, pelo agressor". De tal forma que "se a vítima expressa desânimo ou tristeza por algo que o manipulador disse, este tenta minimizar os seus sentimentos", dizendo coisas como: " 'és demasiado sensível, estás sempre com problemas'," como se fosse corroendo a pessoa, desvalorizando os sentimentos do outro, afirma.
A psicóloga forense explica que o efeito a curto prazo da manipulação, nomeadamente o isolamento, se inicia quando o agressor é capaz de fazer com que a vítima perca a confiança noutras pessoas, mas não só. "A vítima tem muito mais probabilidade de tolerar o comportamento abusivo e permanecer no relacionamento, ocorrendo quase como que uma despersonalização".
Engana-se se pensa que este processo ocorre de modo rápido. Pelo contrário, "é feito de forma gradual, vai-se instalando, e muitas vezes há um aproveitamento da fragilidade da vítima, que está nesta situação". Com a distorção da realidade, acompanhada muitas vezes de mentiras, a vítima chega ao ponto de "questionar a sua própria sanidade mental".
Maria Louro afirma que este padrão se observa muito em casos de violência doméstica, com "a descredibilização da vítima junto de amigos e familiares". O agressor tenta, assim, " isolar a vítima e fazer com que os outros acabem por concordar consigo". Perante esta atitude, a vítima vê-se na "impossibilidade de sair do ambiente de manipulação, porque até quem está mais próximo dela a coloca em causa", explica a especialista.
"Lamento se achas que te magoei, não te queria magoar, só faço isto porque gosto de ti"
De acordo com a especialista, outro dos pontos que os manipuladores experientes exploram é "colocar a memória da vítima em causa". "'Não estás com atenção, se calhar é do cansaço, mas estás com problemas de memória'. Afirmações deste tipo levam "a que a vítima não confie nas suas próprias avaliações, do que faz e daquilo que está a acontecer, seja com os outros, seja com o próprio agressor, e aqui há uma passagem do agressor a ter controlo absoluto sobre a vítima".
"'Lamento se achas que te magoei, não te queria magoar, só faço isto porque gosto de ti. Se não gostasse de ti não me preocupava. Se eu não me preocupasse contigo nem queria saber como é que te vestias, é por isso que te digo estas coisas'. Pode parecer um pedido de desculpas, mas não é", indica a psicóloga forense. "Em vez disso, é uma maneira de desviar a responsabilidade por qualquer dor que tenha causado à vítima, e culpá-la por interpretar mal a situação. (...) Pede desculpa, aparentemente, mas depois há aqui uma cambalhota ainda a culpabilizar a vítima, porque o agressor está a ser 'simpático' está a 'preocupar-se' e ela é que está a arranjar problemas."
Para entender se de facto se encontra numa relação tóxico, a especialista sugere que pense "há quanto tempo é que não faz nada por si, se a sua autoestima depende do outro, se está isolada daqueles de quem mais gosta, se continua a ter relações sociais (...) outro sintoma é perceber que coloca sempre em primeiro lugar a vontade do outro, independentemente do que quer".
"Quando a pessoa se apercebe que está numa relação tóxica em que o seu querer, o seu sentir, os seus comportamentos, são completamente colocados num plano secundário, a pessoa deve sair daquela relação. É fácil? Não. Há muitas pessoas que passam anos e anos em relações abusivas. Muitas vezes amigos e família tentam alertar para a situação, mas como a vítima tem a perceção alterada, está completamente maniatada pelo agressor, não consegue, acha que o agressor é que tem razão e que os outros estão contra a própria relação", explica Maria Louro, afirmando que a consciencialização da vítima, por pessoas externas, perante a situação em que se encontra, é um trabalho que deve ser feito "a médio-longo prazo".
Existem pessoas com tendência para serem mais manipuladoras do que outras?
Maria Louro afirma que "para se ser um bom manipulador emocional é preciso ter recursos cognitivos, ter a capacidade de leitura daqueles que estão à sua volta". "Muitas vezes eles próprios escolhem as vítimas, isto requer uma capacidade de análise."
A especialista concretiza que "o contexto familiar pode influenciar, mas também há traços de personalidade, que a pessoa herda, e pode ter um traço manipulador. (...) Esse traço, com fatores externos, é capaz de potenciar a manipulação". "Noutras situações, as pessoas até não nasceram com esse traço, não estiveram em contextos familiares em que a manipulação fosse utilizada, mas pelo seu percurso de vida, por uma questão de aprendizagem social, isso foi sendo desenvolvido, um bocadinho como uma espécie de sobrevivência para se adaptar ao meio", afirma.
Beatriz Matoso, psicóloga clínica e psicoterapeuta de casal e família, conta à MAGG que "por norma, os manipuladores são pessoas frias, que têm uma grande dificuldade de se pôr no lugar do outro, que não têm qualquer sensibilidade ao sentir do outro, e que, nos casos mais graves, nem têm culpabilidade, são egocêntricos, só pensam nas suas vantagens. São uma espécie de vampiros da vida dos outros. A vítima é sufocada".
A psicóloga refere que, dos casos que acompanha na clínica onde trabalha, os agressores são, normalmente, pessoas que sofreram em crianças. "O que encontramos muitas vezes são crianças maltratadas, que sofreram abusos, que foram negligenciadas, abandonadas, e acontece que interiorizaram esse estilo de relação patológico e maligno, e vão repeti-lo". Esta é uma forma de "compensarem pelas suas faltas, eles que foram humilhados, agora exercem humilhação sobre outro".
Para a psicóloga clínica, o ambiente familiar, em particular, tem um impacto acrescido na formação da personalidade de possíveis agressores. "Se cresceram num ambiente em que esse é o estilo de relação, tendem a copiar o ambiente em que cresceram. (...) O facto de as crianças terem de assistir aos conflitos dos pais é muito violento porque faz-lhes sentir um sentimento de impotência, difícil de suportar."
Beatriz Matoso explica a situação mais concretamente aplicada em casais com relacionamentos amorosos. "Num casal, cada um vai para a relação com a sua bagagem, com a sua história, e muitas vezes na história de um e de outro, há muito sofrimento na infância que depois acaba por contaminar a relação, e até com outras pessoas", explica. Para além disso, "quanto mais problemas e dificuldades há nas relações, mais facilmente a manipulação pode ocorrer".
"Do ponto de vista humano, é compreensivo que todos possamos ser um bocadinho manipuladores. Mas quando se trata de fazer uma manipulação que aniquila o outro, que desrespeita completamente o direito ao outro ter os seus interesses próprios, os seus ideias, a sua vida, estamos a falar de uma manipulação maligna."
A psicóloga fundamenta que, perante um manipulador extremo, não existe outra solução se não o afastamento, dado que a relação se torna "corrosiva" para a vítima. Contudo, acredita que existe sempre a possibilidade de um manipulador, nos casos mais extremos, conseguir reconhecer e tratar o seu problema, apesar de ser difícil.
"As pessoas podem sempre melhorar a sua vida se o quiserem. Às vezes, podem não estar disponíveis numa fase da vida mas estarem noutra, sofrerem um grande embate, e acordarem para a realidade, podem às vezes decidirem tratar-se, mas de um modo geral é muito difícil", especialmente "nas linhas mais malignas da manipulação", refere. "É difícil reconhecerem, sobretudo quando claramente tiram vantagens do poder que exercem", conclui.