Mais do que uma batalha contra o excesso de peso, Magda Gonçalves travou uma batalha enorme contra a compulsão alimentar. Na sua vida adulta oscilou entre os 58 e 115 quilos, várias vezes. Metia na cabeça que queria perder 20 quilos e era capaz, em muito pouco tempo. Mas, depois, vinha o reverso: um descontrolo absurdo, que a fazia comer desenfreadamente. Não era a fome que a motivava. Eram outras questões.
“Eu costumo dizer que quem faz isto é quem não tem um problema de comida. É um problema gravíssimo de falta de capacidade para gerir os sentimentos. Não temos as ferramentas adequadas para lidar com aquilo que são coisas banais do dia a dia: frustração, stresse, expectativas dos outros, de nós próprios”, diz à MAGG.
Como resultado, desencadeiam-se “mecanismos mal adaptados, compensatórios e aditivos", que permitem fugir da realidade porque há mais em que pensar: “As pessoas quando planeiam um episódio compulsivo, de comprar um saco cheio de comida, comer e apagar os vestígios, têm de passar por várias fases: pré-contemplação, contemplação, planeamentos, execução, sentimento de culpa. É um trabalho completo. É um trabalho que nos absorve da realidade.”
A dor é tão grande. Comia porque comia e não pensava porque é que estava a comer. Agora tenho plena consciência e tenho armas e formas de ultrapassar a compulsão em momentos de crise."
Durante 28 anos sofreu de compulsão alimentar sem saber. Além de um exercício “extremamente solitário e feito às escondidas”, considera o problema “uma doença, como o alcoolismo, adição ao sexo ou jogo”. O problema, considera, ainda é tabu: “Há um estigma enorme que leva as pessoas a acreditarem que quem come compulsiivamente tem um problema de gula ou só de falta de controlo.”
Aquilo que durante duas décadas a fez sofrer mais, foi também aquilo que a salvou. Depois de várias sessões de terapia em Portugal, foi numa clínica nos Estados Unidos que Magda Gonçalves foi capaz de identificar aquilo que já a atormentava há tanto tempo. Mas, além disto, descobriu, finalmente, a sua vocação. Hoje é coach em psicologia alimentar e dá consultas (em Lisboa e por skype) para ajudar quem, como ela, tem tendência para comer emocionalmente. “Este trabalho salvou e mudou a minha vida”, diz. Já lá vão seis anos. Em 2016 lançou um livro, "Vencer a Batalha com a Comida", onde conta a sua história.
Fazer as pazes com as comidas gatilho
Tanto Teresa (nome fictício) como Marta (nome fictício), em conversa com a MAGG, utilizaram esta expressão: comidas gatilho. As duas mulheres, de 40 e 27 anos, respetivamente, lutam contra o problema da alimentação compulsiva, apesar de já terem feito as pazes consigo próprias. Magda Gonçalves teve um papel fundamental no processo, porque as acompanhou, forneceu ferramentas e um plano alimentar personalizado.
Num processo de recuperação, têm de se eliminar conceitos como os das comidas boas e comidas más. As gatilho são as que desencadeiam os ataques. ”Das batalhas maiores que tenho com os meus clientes é convencê-los que eles têm de comer as suas comidas gatilho. Se têm um ataque de binging com Haagen Dazs, vamos, imperativamente, não o cortar da sua vida. Bem pelo contrário: não o podemos parar de comer e vamos inclui-lo de forma controlada na alimentação, em doses moderadas.” É preciso fazer as pazes com a comida. “Com toda a comida”, salienta Magda. “Não é só com as maçãs e com as alfaces. É com os bolos e com a pizza.”
Mais do que a quantidade de comida que se ingere, interessa entender a causa. Teresa explica que o stresse da faculdade potenciou este problema, mas que qualquer frustração da vida era motivo para se esconder atrás dos alimentos, sobretudo dos empacotados: “Lembro-me de me descontrolar com uma amizade que se degradou. Até as meras discussões com os pais faziam-me perder o controlo”, conta a veterinária, que atualmente tem 88 quilos, mas que já pesou 130.
Quando o avô morreu, há 7 anos, a veterinária engordou muito, por volta de 20 quilos. Sobre isto, recorda: “A dor é tão grande. Comia porque comia e não pensava porque é que estava a comer. Agora tenho plena consciência e tenho armas e formas de ultrapassar a compulsão em momentos de crise. Não deixei de comer nada, mas como de forma regrada e tento distrair-me com outras coisas, como ir dar um passeio, fazer compras, distrair-me porque sei que é o caminho para eu comer. “
Nos longos anos em que se sentiu muito mal, Magda Gonçalves experimentou de tudo. Todas as dietas possíveis, "com drogas ou sem drogas." Hoje sabe que as restrições são um dos fatores que mais potenciam o vai-vem entre descontrolo e restrição. Depois da inclusão das comidas gatilho, os hidratos de carbono são a sua segunda maior batalha com os pacientes.
"É completamente impossível uma pessoa que não come hidratos de carbono o dia todo, chegar às 18 horas e não estar completamente esfomeada, com o cérebro a gritar por aquele nutriente. À tarde ou à noite já se sabe, porque não comeu durante o dia. É uma questão física que, tal como a comportamental, também tem de ser trabalhada.”
Não são só as pessoas com excesso de peso que comem compulsivamente
Marta engordou dez quilos depois da morte de dois familiares, quase em simultâneo. Foi nesta altura que reparou que tinha uma relação estranha com a comida.
“Nessa altura, a minha família estava dividida entre velórios de um lado e de outro. E eu ficava encarregue das crianças, em casa, porque era a prima mais velha. Quando chegava a noite, e ficava sozinha, pegava em caixas de cereais e não conseguia parar de comer. Depois da tensão do dia todo, era como se fosse uma descompressão ou um escape”, conta.
Ao contrário de Teresa, Marta, nunca teve peso excessivo. O máximo que atingiu foram os 63 quilos. Segundo Magda Gonçalves, a compulsão e os números da balança não estão relacionados. Com este problema há "pessoas com peso a menos”, com um “peso normalissimo” e em excesso.
“Nunca tive excesso de peso. Mas aqueles dez quilos a mais pesavam-me na autoestima. E, depois, havia o sentimento de culpa que nascia daquele jogo em que comia de tudo para depois restringir”, diz. “Passava dias a fazer dieta apertada depois voltava a comer tudo outra vez. Estava a ser difícil de quebrar.”
A minha mãe teve cancro e esteve praticamente a morrer no hospital. Quase ao mesmo tempo, um dos meus melhores amigos morreu com 34 anos. Não tive nenhum ataque, mas tive vontade. Mas como já estava alerta relativamente ao meu problema, não me fui abaixo. Sabia que não ia conseguir comer a tristeza que sentia"
O problema começou em 2013 e arrastou-se até 2015. Como é médica, autodiagnosticou-se. Sentiu que aqueles acessos não eram normais. Mas, “independentemente disso, a sensação de falta de controlo quando se come é tão forte, tal como o mau estar que se sente depois, que deve alertar qualquer pessoa. Claramente há alguma coisa que não está bem.”
Apesar de os dois lutos simultâneos terem intensificado o problema, Marta sabe, hoje, que havia um contexto psicológico que fomentava aqueles comportamentos. “A percepção que tenho é que foram dois lutos difíceis e muito próximos, mas a verdade é que quando se destapa a capa da compulsão aparece tudo o que está por baixo: a solidão permanente que tinha, por chegar a casa e não ter ninguém, uma vida profissional muito stressante, uma vida amorosa que não acontecia e com algumas desilusões”, conta. “Acho que foi todo este conjunto de fatores que perpetuou este estado.”
Foi num dos seus acessos de binge eating, a ver televisão, que soube da existência do trabalho que Magda desenvolve. “Ela apareceu num programa da SIC Mulher”, conta. Contactou-a e iniciou o seu processo de recuperação.
Teresa e Marta já fizeram as pazes com a comida e, com a ajuda da coach, têm as ferramentas necessárias, capazes de lidar com este problema que é mais emocional do que alimentar. Comem as suas comidas gatilho, em quantidades normais.
“A minha mãe teve cancro e esteve praticamente a morrer no hospital. Quase ao mesmo tempo, um dos meus melhores amigos morreu com 34 anos. Não tive nenhum ataque, mas tive vontade. Mas como já estava alerta relativamente ao meu problema, não me fui abaixo. Sabia que não ia conseguir comer a tristeza que sentia.”
*artigo originalmente publicado em maio de 2018