Vamos diretos ao ponto: recorrer a medicamentos antidiabéticos para fins de emagrecimento é efetivamente legal. E, sim, resulta. Mas não é para toda a gente e não deve tentar este tipo de tratamento por iniciativa própria. Fora das balizas da lei, não só não é recomendado como é perigoso. E são vários os riscos associados.

Mitos da diabetes. A fruta só deve ser comida com Bolacha Maria? E a doença, é exclusiva dos obesos?
Mitos da diabetes. A fruta só deve ser comida com Bolacha Maria? E a doença, é exclusiva dos obesos?
Ver artigo

O tema veio à tona em força em abril deste ano, quando publicações brasileiras (como R7 ou "Metrópoles") noticiaram a existência do recurso a injeções antidiabéticas para fins além do combate à diabetes e as proporções (descontroladas) que estava a tomar. De acordo com a publicação R7, no Brasil, este tratamento fugiu dos parâmetros protocolizados.

Não tem como objetivo ajudar a "perder uns quilinhos", mas, segundo médicos brasileiros, foi desta forma que começou a ser encarado. Nas farmácias do Brasil, fármacos antidiabéticos com influência direta na perda de peso arrecadaram um lugar no ranking de medicamentos mais vendidos, apesar de comercializados sob valores que chegavam a atingir 900 reais (cerca de 150 euros), segundo escreve a R7.

A lei é clara: pessoas com obesidade ou excesso de peso com doenças associadas como diabetes tipo 2 ou hipertensão arterial (HTA) são, até à data, as únicas elegíveis para este método, que também é legal em Portugal, para fins terapêuticos e nunca estéticos.

De acordo com o "Jornal de Notícias", este tratamento marcou uma "nova era" na luta contra a obesidade e é precisamente desta forma que deve ser reconhecido: como adjuvante à perda de peso em obesos ou casos de excesso de peso com doenças associadas. Nada mais.

Com a ressalva de que o "medicamento milagre" não existe e "nunca vai existir", Irina Bernardo, especialista em medicina anti-envelhecimento, modulação hormonal e tratamento de excesso de peso, da Clínica Milénio, ajuda-nos a compreender este método e todos os riscos e contraindicações que lhe são inerentes.

Afinal, como funciona? Porque é que não é recomendado a pessoas saudáveis que só querem "perder uns quilinhos"? Quais são os riscos associados? Fomos à procura de respostas.

Antes de conhecer os riscos, importa perceber como funciona

Quando falamos de medicamentos antidiabéticos enquanto aliados na luta contra a obesidade, temos a liraglutida como estrela da festa. É este o princípio ativo por detrás da relação entre perda de peso e medicação para a diabetes.

Isto porque a liraglutida "vai atuar numas células a nível cerebral, que vão provocar uma redução na sensação da fome" e, portanto, atua ao "nível da saciedade", explica a especialista Irina Bernardo, com a ressalva de que no que à gordura localizada diz respeito, o cenário já é outro.

"Na gordura localizada não vai ter uma ação direta, porque vai atuar no recetor de uma hormona [GLP1], que vai potenciar a secreção de insulina, a partir das células pancreáticas. (...) A única coisa que se sabe é que, de facto, vai atuar a nível cerebral, a nível do hipotálamo, porque vai diminuir a sensação da fome e, a partir daí, começamos a perder peso", diz.

Qualquer pessoa pode recorrer a este tratamento?

Não. Até porque não se aplica à perda de peso indiscriminada e muito menos não acompanhada.

"Foi aprovado pela Agência Europeia de Medicamentos (EMA) para situações muito específicas", avança a especialista, enquanto explica que, em Portugal, são comercializados dois fármacos com este efeito (Victoza e Saxenda), ambos com liraglutida como princípio ativo. Sendo que ambos pressupõem apresentação de receita médica e são utilizados para casos específicos e distintos.

O Victoza pode influenciar o emagrecimento, sim, mas a nível nacional é prescrito apenas para doentes diagnosticados com diabetes tipo 2. O único que, para além da sua função antidiabética, pode ser também utilizado para perda de peso em pessoas não diabéticas é o Saxenda, que abrange apenas, de forma legal, pessoas que sofrem de obesidade ou excesso de peso com doenças associadas como diabetes tipo 2 ou hipertensão arterial (HTA).

Portanto, este último aplica-se à perda de peso em obesos com um índice de massa corporal acima de 30 — e como adjuvante. E mesmo perante este quadro clínico, não é utilizado de forma isolada. "Tem de haver sempre uma dieta e exercício regular associados", diz a especialista.

Para além destes, abrange ainda pessoas diabéticas com excesso de peso, tendo a classificação internacional de índice de massa corporal como referência: falamos da fatia da população que se insere no nível imediatamente antes da classe 1 de obesidade.

"Antes de chegar a esse nível, temos o excesso de peso, que é de 26 a 30. Nessas pessoas dá, mas nas que têm diabetes tipo 2, hipertensão arterial ou apneia obstrutiva do sono", explica.  "Portanto, foi aprovado nestas situações. Agora, de facto, numa situação isolada, numa pessoa que não tenha estes problemas identificados, não está recomendado", completa, frisando que, aí, "já estamos a extravasar o fim da terapêutica".

"Estamos a falar aqui de um injetável, subcutâneo é certo, mas é uma solução injetável. É uma caneta que necessita de um doseamento, porque vem com uma quantidade máxima e o seu ajuste é feito de forma progressiva — e sempre com receita médica", frisa.

Para além de não ser recomendado além dos casos supramencionados, o levantamento dos dois fármacos com este efeito em Portugal (Victoza e Saxenda) pressupõe apresentação de receita médica.

Dra. Irina Bernardo
Dra.Irina Bernardo, especialista em medicina anti-envelhecimento, modulação hormonal e tratamento de excesso de peso da Clínica Milénio

"Pessoas que querem emagrecer vão querer um medicamento milagre e isso não existe e nunca vai existir"

Apesar de alguns especialistas reconhecerem que há "resultados incríveis" no recurso a fármacos antidiabéticos para perda de peso, Irina Bernardo garante que "não há milagres" e alerta para os riscos associados.

"Não há milagres. As pessoas que querem emagrecer vão querer um medicamento milagre e isso não existe e nunca vai existir. O medicamento está cá para ajudar, numa fase inicial para ajudar a chegar a uma boa gestão de peso e a um peso saudável. Mas não existe, nem vai existir, um medicamento milagroso, que tomamos e ficamos à espera de que as coisas aconteçam, sem que tenhamos um estilo de vida saudável."

De acordo com a especialista da Clínica Milénio, é um bom medicamento e uma ótima notícia, mas não é para toda a gente. "É preciso ter muita cautela e individualizar sempre o tratamento que se propõe de perda e gestão de peso para o doente. Tudo tem de ser individualizado, até a alimentação."

Atenção às contraindicações

Irina Bernardo diz-nos que, à semelhança de qualquer outro fármaco, também estes têm contraindicações, sendo que pessoas com doença renal, doença hepática, pedras nos rins (ou com tendência) não podem usar estes medicamentos. "Temos de ter muito cuidado quando usamos esta medicação", avança.

Para além dos efeitos secundários já conhecidos (náuseas, vómitos, diarreia e obstipação), "depois temos a parte genética: a que se chama imunogenicidade", explica a especialista. "Da mesma forma que há pessoas que têm alergia à aspirina, nós criamos anticorpos para o medicamento. E estes medicamentos não são diferentes, por isso, pode existir este efeito. Estas pessoas podem criar anticorpos e ter reações graves", destaca.

Tendo em conta que se trata de um estudo recente, a especialista admite que o ideal é esperar que, com o tempo, seja sujeito a mais estudos conclusivos, de forma a perceber o verdadeiro impacto no organismo, antes de o assumir como seguro, sem dúvidas inerentes.

"Para qualquer medicamento que é aprovado, é importante deixar um bocadinho de tempo. Ainda estão a haver estudos. Ainda não sabemos o verdadeiro mecanismo deste medicamento", conta, com recurso a um exemplo prático dos perigos das desinformação.

"O Reductil foi um medicamento que, há mais de 10 anos, era utilizado também para perda de peso, da mesma forma que este. Também atuava a nível cerebral. Foi aprovado inicialmente, mas, passado uns anos, foi retirado pela Infarmed. Porquê? Porque depois continuaram-se os estudos e chegou-se à conclusão de que havia muitos efeitos secundários. Havia aumento da incidência de AVC com esse medicamento, por exemplo. Portanto, para fins de emagrecimento, foi retirado", começa por explicar.

"Gosto de deixar a mensagem de que temos de ter alguma cautela com um medicamento que é aprovado para outro fim", admite.

Vamos a números?

De acordo com Irina Bernardo, estudos mostram que, dentro deste público alvo, há uma perda de 7,5% de peso corporal inicial em 12 meses. No entanto, se a pessoa não perder durante 12 semanas menos de 5% de peso corporal inicial, não pode continuar. "Há qualquer coisa que não está a correr bem. Tem de parar o tratamento, porque não está a responder. E há muitas variáveis. Nestes casos, tem de se fazer alguma restrição: uma dieta hipocalórica, com baixa gordura e baixa ingestão de hidratos, por exemplo", explica.

"Quando estamos numa situação de iniciação de perda de peso, temos de procurar primeiro as razões e o porquê de aquela pessoa ter chegado àquele estado. Pode ser um desequilíbrio hormonal, pode ser compulsão alimentar (...) há várias razões. [O doente] tem de ser estudado inicialmente para percebermos o que se está a passar e conseguirmos tratar o problema subjacente", acrescenta.

Conclusão? A utilização de liraglutida para fins de emagrecimento revela ter potencial, mas ainda há pouca informação em relação aos impactos deste tratamento. Por enquanto, sabe-se que se mostra eficaz, mas Irina Bernardo frisa que não é "milagroso". Não se aplica a "toda a gente", não pode ser utilizado por autorecriação e pressupõe sempre acompanhamento especializado. Até porque o levantamento dos fármacos só é permitido mediante apresentação de receita médica.

A MAGG procurou saber até que ponto a utilização destes fármacos para outros fins além do combate à diabetes poderia afetar os stocks disponíveis nas farmácias nacionais. No entanto, até à data, a Infarmed admite que não tem informação de que esteja a prejudicar o stock habitualmente disponível no País. Todas as farmácias contactadas até à data de publicação deste artigo, de norte a sul do País, confirmaram que não há falhas significativas de stock.