Durante uma aula da manhã do primeiro ano de universidade, Sofia Silva Ribeiro, entretanto já formada em psicologia, não conseguia pegar na caneta devido às dores articulares, nem tirar apontamentos. Foi uma de muitas manhãs em que se sentia bastante cansada, e por vezes até tinha febre. Os sintomas estavam lá e deixaram Sofia, 29 anos, em alerta. Foi a um fisiatra, depois a um reumatologista, e passados vários meses e exames, descobriu o que se passava: foi diagnosticada com lúpus.
Trata-se de uma doença sem cura, com alguns mitos ainda associados, mas que tem um dia próprio para que se perceba melhor: dia Mundial do Lúpus, assinalado a 10 de maio.
"O lúpus é uma doença autoimune, e dizemos que é autoimune quando o nosso organismo produz anticorpos que reconhecem partes do corpo como se fossem estranhas, como se não fossem nossas", começa por explicar à MAGG Helena Canhão, presidente da Sociedade Portuguesa de Reumatologia (SPR).
"Esses anticorpos ativam vários sistemas que acabam por lutar contra órgãos que temos, o que pode levar a doença renal, lesões na pele — que são muito características do lúpus —, inflamação nas articulações, inflamação na membrana do coração, que é o pericárdico. No fundo, é uma inflamação desencadeada pela produção exagerada de anticorpos por um sistema imune que está muito reativo e não reconhece como nosso algo que é do nosso corpo", continua.
Sofia Silva Ribeiro começou por ir a um fisiatra devido às dores articulares, no qual foram levantadas várias suspeitas sem ser confirmado um diagnóstico. Após consultar vários especialistas, chegou a um reumatologista que lhe deu três possíveis diagnósticos: artrite reumatoide, doença de Behçet ou lúpus.
Acabou por ser o último, mais precisamente lúpus eritematoso sistémico. "Começou por ser apenas na pele e articulações, mas, entretanto, ao longo dos anos, já tive afetação de alguns órgãos e por isso considera-se que é sistémico, ou seja, afeta vários sistemas do meu corpo", explica.
Este é o segundo tipo de lúpus que decorre do primeiro: lúpus discoide, que afeta apenas a pele e caracteriza-se por lesões cutâneas na face, pescoço ou couro cabeludo.
Antes destes sinais visíveis, e por vezes dolorosos, surgirem, há sintomas a que devemos estar atentos e, uma vez detetados, o primeiro passo é consultar um especialista em reumatologia para que o diagnóstico seja feito o mais precocemente possível.
Como é feito o diagnóstico?
Cansaço, dores nas articulações, lesões na pele (que são exacerbadas pelo sol), manchas — por exemplo, na cara —, queda de cabelo, aftas, lesão renal com alternação na urina e alterações nas análises de sangue, como baixo nível de plaquetas ou anemia, são alguns dos sintomas apontados pela presidente da Sociedade Portuguesa de Reumatologia que podem levar à deteção do lúpus — que ocorre especialmente em mulheres jovens e em idade fértil.
Para confirmar, são feitos alguns exames como análises ao sangue, ecocardiogramas ao coração para ver se há líquido na membrana à volta do mesmo e, dependendo do tipo de lesões, pode ser necessário fazer outras ecografias.
Sofia, a viver com lúpus desde 2010, passou por este processo, que "acabou por ser longo e bastante doloroso", porque antes de descobrir o diagnóstico não conseguia "ser medicada devidamente e as dores continuavam". Porém, no dia em que teve a confirmação de que sofria de uma doença sem cura, não ficou devastada.
"Tendo em conta todo o processo para descobrir o que eu tinha, o facto de ter o diagnóstico em si até me deu uma sensação inicial de alívio, porque finalmente aquilo que eu tinha, tinha um nome, e os médicos conheciam e sabiam como tratar", conta. "Iniciei a medicação e comecei a sentir-me bastante melhor logo após as primeiras tomas, porque os sintomas começaram a ficar controlados."
No entanto, teve também de passar por um processo de adaptação. "Foi aceitar que, apesar da minha idade, havia muitas coisas que eu antes fazia que deixei de conseguir. Hoje vejo que me adaptei totalmente ao meu diagnóstico e ele tornou-se até o meu propósito, e é por causa do lúpus que eu trabalho todos os dias. Claro que se eu pudesse escolher não tinha lúpus, mas tendo, penso que acabei por me adaptar e considero que sou muito mais do que o meu diagnóstico, e consigo, felizmente, ter uma vida muito confortável, feliz e com qualidade", afirma.
Uma vida normal com lúpus: é possível e especialistas dizem como
Sofia Silva Ribeiro é a prova de que é possível viver com lúpus e, mais importante de tudo, com qualidade de vida. Atualmente, é psicóloga especialista em lúpus, doutoranda em psicologia da saúde, e é também health coach, função que lhe permite ajudar mulheres a conhecer, aceitar e controlar o Lúpus.
"Na maioria do tempo, o lúpus pouco ou nada afeta o meu dia a dia, no sentido em que mesmo tendo sintomas esse tornou-se o meu normal. Mas como todas as pessoas, tenho dias maus, dias em que o desafio é o cansaço dos sintomas em si, ou seja, quando passo vários dias com dor ou com fadiga", desabafa. Nesses dias, questiona-se, revoltada, "porque é que isto me está acontecer?” ou “quando é que eu tenho um dia sem dores?", mas logo de seguida surge o "desafio de voltar a aceitar, e de voltar a retomar o equilíbrio".
E esse equilíbrio é conseguido com a ajuda de especialistas, ou melhor, do seu conhecimento para levar as ferramentas certas para enfrentar o dia a dia com lúpus. A reumatologia é uma das áreas essenciais neste acompanhamento.
"É importante o reumatologista, porque permite fazer o diagnóstico precoce, antes que órgãos nobres, como o rim, o cérebro ou o coração, estejam desenvolvidos. Portanto, começamos o tratamento com imunossupressores, o que evita a morte e a insuficiência renal", explica Helena Canhão da SPR, acrescentando que dado que o lúpus é uma doença crónica, estes tratamentos podem ser contínuos.
No entanto, por vezes há outras formas de controlar e Sofia é exemplo disso. "Neste momento, em conjunto com o meu médico, optei por não tomar qualquer medicamento, pois tenho o lúpus controlado e consigo viver bem com os sintomas que tenho. No entanto, faço vários 'tratamentos', que podem não os pensar assim", refere.
"Tenho muito cuidado com a minha alimentação, sou acompanhada pela nutricionista Renata Vicente, especialista em doença autoimunes que me ajuda a compreender que cuidados ter. Faço exercício regularmente e de acordo com as minhas necessidades e limitações a cada momento, sou acompanhada pelo personal trainer Rui Maldini. E sempre que sinto necessidade, recorro a acompanhamento psicológico para gerir as minhas emoções, stresses e até alguns sintomas", continua a psicóloga especialista em em lúpus.
O processo gestacional com lúpus também pode ser visto com normalidade, sendo precisos cuidados extra, não obstante a noção de alguns riscos. "Às vezes há abortos de repetição [três ou mais abortos espontâneos, consecutivos, antes das 20 semanas de gestação], porque há anticorpos que também levam à vascularização da placenta. O que se podem controlar também com medicação apropriada durante a gravidez", explica a presidente da Sociedade Portuguesa de Reumatologia (SPR).
Quanto a passar da mãe para o feto, são casos raros. "Na maior parte dos casos não há problema, desde que a doença esteja controlada, mas é muito importante ter o diagnóstico e ser uma gravidez seguida para evitar o aborto ou problemas no bebé", diz Helena Canhão.
O papel da nutrição (e o que fazer quando há deslizes)
Não há formas de prevenir o lúpus, no entanto, é fundamental, tanto para outras doenças, como em particular para o lúpus, levar "vidas calmas e saudáveis, porque sabemos que as hormonas e o stresse interferem no lúpus", refere a presidente da SPR, que dá destaque à alimentação.
"A alimentação influencia o lúpus de diversas formas. Primeiro, se a mesma fornecer várias vitaminas, minerais, compostos antioxidantes e anti-inflamatórios, isto irá favorecer positivamente o sistema imunitário, o lúpus e a redução da inflamação", refere a nutricionista especialista em doença autoimunes, Renata Vicente.
Podem e devem então ser consumidos alimentos como peixes ricos em ómega 3 ou sementes de chia e de linhaça no caso de um regime alimentar vegetariano. No que diz respeito a proteínas, entram as leguminosas, ovos e, em menor quantidade, as carnes brancas (evitando as vermelhas) e para garantir a ingestão de fibras é importante consumir diariamente "frutas, vegetais, sementes e frutos oleaginosos (em pessoas com nefrite lúpica, dependendo do grau de lesão renal, poderá ser necessário restringir alguns destes alimentos e fazer espoliação de potássio)", esclarece Renata Vicente.
Pessoas com lúpús devem assim manter-se longe de coisas como como pizzas ou fritos, alimentos ricos em açúcar, farinhas refinadas, gorduras más e sem fibra, mas quando isso não é possível, não é preciso entrar em alarme. Com ou sem doença, a regra é sempre o equilíbrio.
"Se a pessoa que vive com lúpus tiver um estilo de vida saudável (dormir bem, níveis de stresse controlados, fizer atividade física…) aliado a uma alimentação saudável de base com a doença minimamente controlada, à partida não será o consumo muito esporádico deste tipo de alimentos que agravará a doença. Mas o segredo é mesmo o referido inicialmente: estilo de vida e alimentação saudáveis diariamente", remata.
Ainda há estigma sobre a doença?
A reposta é sim e não — é não é só Sofia Silva Ribeiro que o sente, são também as mulheres que acompanha. Os sintomas visíveis na pele são muitas vezes alvo de olhares, e a fadiga causada pela doença é ainda incompreendida.
"É uma doença que pode causar sintomas visíveis como manchas na pele, queda de cabelo, o tratamento causa muitas vezes aumento de peso, e infelizmente as mulheres com Lúpus podem sofrer até algum estigma social por causa destes sintomas", aponta a psicóloga. "Um dos sintomas mais frequentes é a fadiga, que é muito incompreendida, porque fadiga não se trata de cansaço ou preguiça, a fadiga é incapacitante e traz bastante limitação ao dia a dia."
Além da necessidade de esclarecer a população do ponto de vista do estigma, é necessário que esteja informada para que possa ser feito um diagnóstico precoce em caso de aparecimento da doença e também para que, caso se confirme, não esteja associada à morte.
"Ainda existem alguns artigos na internet que ditam uma esperança média de vida para as pessoas com lúpus e que estão baseados em estudos muito antigos, que hoje em dia, felizmente, já não se aplicam", diz Sofia, que defende a importância de desmitificar conceitos "para que não se veja o Lúpus como uma sentença". "É possível vivermos bem e com qualidade e ter uma vida dita 'normal' mesmo com o lúpus", remata.