Diagnóstico precoce e tratamento atempado são apontados pelo pneumologista Luís Rocha como fatores decisivos para a qualidade de vida da maioria dos doentes com fibrose quística — a doença que preencheu a agenda mediática nos últimos meses depois de Constança Braddell ter lutado pelo medicamento que lhe poderia salvar a vida. Mesmo conseguindo o Kaftrio, a jovem de 24 anos não resistiu e morreu este domingo, 11 de julho, após ter estado internada nos cuidados intensivos em estado muito grave nas últimas três semanas.
Constança Braddell tornou-se um símbolo de luta e de persistência, principalmente para a comunidade de doentes de fibrose quística que viram a patologia ganhar uma atenção que até então não tinha. Segundo Luís Rocha, que além de pneumologista no Hospital Lusíadas Porto faz também parte da Fundação Portuguesa do Pulmão, a fibrose quística é uma doença genética que está associada a problemas pulmonares e até nutricionais.
"Como doença genética que é, apresenta-se em genes que estão alterados em cada um dos progenitores e cuja apresentação clínica é variável de doente para doente. O que estes genes fazem em termos de informação genética é a codificação de uma proteína que tem o nome de CFTR . Esta proteína leva a uma alteração do transporte de iões (de sódio e cloro) em células que têm alguma função glandular e que estão ligadas a vários sistemas, entre os quais o respiratório", explica em entrevista à MAGG, referindo que os principais efeitos da patologia no sistema respiratório são a apresentação de secreções respiratórias mais desidratadas e mais espessas.
"Se numa fase precoce este efeito genético não for diagnosticado, pode levar a situação de infeções respiratórias repetidas", afirma, acrescentando que é este o principal problema. Segundo o especialista, estas infeções respiratórias de repetição levam à destruição do tecido pulmonar e é esta destruição que faz com que se formem quistos designadas por "bronquiectasias" (alterações estruturais dos brônquios e dos alvéolos) que pioram o quadro clínico dos doentes.
De acordo com os dados cedidos pelo Hospital Lusíadas, todos os anos nascem em Portugal entre 30 a 40 crianças com esta doença genética. Apesar de não ter cura, a qualidade de vida dos doentes com fibrose quística tem melhorado muito nos últimos 20 anos devido às novas possibilidades de tratamento e ao facto de o diagnóstico ser feito cada vez mais cedo, através do chamado "teste do pezinho" — o exame médico utilizado para o diagnóstico precoce de várias doenças, entre elas a fibrose quística.
Luís Rocha salienta que este teste "possibilita um diagnóstico precoce e a sua referenciação para centros especializados para o tratamento desta doença". "Quanto mais precocemente o doente for tratado, menos alterações estruturais tem, menos atingimento sistémico e menos efeitos terá a nível nutricional e digestivo ou respiratório."
Infertilidade pode ser um dos motivos que leva ao diagnóstico
Quando não detetada nos primeiros dias de vida, Luís Rocha refere que a suspeita de diagnóstico ocorre "quando existe histórico familiar de um irmão ou de um primo em primeiro grau que tem esta doença respiratória", quando há situações de "diabetes em idade muito jovem" ou até quando o paciente apresenta "problemas de infertilidade". "Muitas vezes, há infertilidade tanto no homem como na mulher", afirma.
De acordo com os dados apresentados pelo Hospital Lusíadas, 98% dos pacientes do sexo masculino com fibrose quística é infértil e apresenta falta de espermatozoides. No caso das mulheres, a fertilidade já é maior, mas pode haver dificuldade em engravidar devido ao facto do muco cervical se apresentar mais espesso.
Além do diagnóstico atempado, o tratamento precoce é também apontado por Luís Rocha como crucial para a esperança média de vida destes doentes que, nos últimos anos, tem subido bastante.
"Há vários centros especializados no tratamento da fibrose quística. Dependendo da situação do doente, podemos ter tratamentos mais simples (que pretendem controlar a evolução da doença), mas se entrarmos num processo de ciclo vicioso de infeções, o acesso a terapêuticas mais recentes com indicações precisas para fazer essa correção proteica são a solução", afirma o pneumologista, referindo que o Kaftrio é um desses medicamentos.
Kaftrio encontra-se a ser disponibilizado a doentes "num regime de programa de acesso precoce"
Até há uns meses, o nome deste medicamento não significava nada para a maioria da população, mas tudo mudou quando, no início de março, Constança Braddell tornou pública a sua situação clínica com o objetivo de conseguir o medicamento. Constança não resistiu e morreu este domingo, 11 de julho, mas conseguiu que o medicamento pelo qual tanto lutou chegasse a mais doentes com esta patologia e melhorasse as suas qualidades de vida.
"O Katfrio ainda está em fase de aprovação final pelo Infarmed e, como tal, os doentes que temos, e já são alguns, estão num regime de programa de acesso precoce, de utilização em situações excecionais", adiantou a pneumologista Pilar Azevedo, do Hospital Santa Maria, esta segunda-feira, 12, em declarações à Lusa citada pelo jornal "Observador".
Também Luís Rocha explica, em entrevista à MAGG, que, dentro do grupo de fármacos inovadores, "o Kaftrio é o mais recente em termos de introdução para o tratamento deste perfil de doentes". De acordo com o pneumologista, "os ensaios clínicos demonstraram que tem uma boa eficácia para fazer as correção necessárias". Deste modo, "quanto mais precocemente tivermos acesso ao fármaco, menos alterações vamos ter a nível respiratório", afirma.
"Há cerca de 20 ou 30 anos, tínhamos o grande problema destes doentes terem uma sobrevida curta (nunca ultrapassavam os 30/40 anos) e agora temos doentes, a nível global, que têm uma qualidade de vida já considerável com sobrevida até aos 50 anos", acrescenta o pneumologista, referindo que estes são casos em que tanto o diagnóstico como o tratamento são feitos precocemente.
Mas há alguma hipótese de a doença se manifestar mais em certas fases da vida? Luís Rocha explica que depende. "Depende da expressão da mutação. Se tiver uma expressão da mutação elevada, apesar de a terapêutica poder atenuar, não elimina. Podemos ter um perfil de doentes que precisam de um tipo de terapêutica de forma continuada".
De acordo com o especialista, o que acontecia antes do aparecimento desta novas terapêuticas (como o Kaftrio) era que os tratamentos só eram feitos à medida que o doente apresentava complicações. "Neste casos, as infeções respiratórias de repetição levavam à colonização pulmonar com bactérias resistentes e bactérias não usuais, podendo apresentar um perfil de infeções cuja resistência gera um ciclo vicioso de infeção no tecido pulmonar. Sempre que existe uma infeção deste tipo, o doente sai dela pior do que o estava anterior e há que evitar isso."
Além destas infeções, pode ainda haver o envolvimento de outros órgãos nas complicações que, segundo o pneumologista, elevam a "degradação de toda a situação respiratória" que, no limite, leva o doente aos cuidados intensivos. "Uma situação destas, uma vez instalada num doente deste tipo, já levanta um prognóstico mais reservado e qualquer desequilíbrio em termos de infeções (ou um pneumotórax, que foi o que ocorreu com o caso conhecido desta doente [Constança Braddell]), leva a que as reservas pulmonares sejam ultrapassadas e o doente corra sérios riscos de vida."
Apesar de a fibrose quística ser uma doença sobre a qual ainda há muito a estudar, Luís Rocha salienta que a evolução no tratamento tem sido muito significativa e que, no limite, este pode chegar ao transplante pulmonar. "Nesses casos, estamos a falar de uma situação de resolução completa do quadro clínico", remata.