Faz-nos o senso comum associar à figura do médico de família que nos é atribuída nos centros de saúde. Mas isto é redutor. A especialidade de Medicina Geral e Familiar está nos hospitais públicos e privados, desempenhando uma função primordial na prevenção e detecção precoce de doenças. A realidade é esta: o médico de família está para os adultos, como o pediatra está para as crianças. Como o próprio nome indica, a especialidade não se foca num só sistema do corpo: ela é "geral", olhando para o paciente como um todo, contemplando o seu estilo de vida, os sintomas que, de forma mais ou menos flagrante, deixam prever o aparecimento de alguma doença no futuro. Ela é "familiar" porque contempla o histórico de doenças que existem no seio familiar e que podem ser sinal de que há aspetos da nossa saúde que merecem atenção especial e regular.
Veja-se uma dor no peito, que leva a uma consulta de cardiologia. "Vamos lá especificamente para o médico nos avaliar do ponto de vista da cardiologia, o que vai resultar numa confirmação ou exclusão de algum sintoma sintoma que eu tenha", explica Nuno Capela, especialista de Medicina Geral e Familiar, na CUF. "Vou sair desta consulta com uma de duas soluções: ou é uma dor de origem cardíaca e serei, nesse sentido, orientado; ou é uma dor que não é de origem cardíaca e aquele especialista não tem nada para me oferecer. E voltamos à estaca zero."
Com o médico de família é diferente, sendo o seu olhar aquilo que o distingue de tantas outras especialidades. "Esta especialidade tem uma grande particularidade que a distingue das outras e que tem que ver com a abordagem abrangente e integrada que faz da pessoa."
"É a abordagem capaz de olhar para a pessoa e integrar as várias comorbilidades, os vários problemas, integrá-los com os seus antecedentes patológicos, com o seu histórico de antecedentes familiares, e, em função disso, ser capaz de caracterizar devidamente uma pessoa e identificar ou sinalizar as doenças ou os problemas que vão precisar de algum tipo de vigilância, abordagem farmacologia ou terapêutica."
Ou seja: o papel da Medicina Geral e Familiar passa por pegar em tudo o que diz respeito à pessoa, ser capaz de relacionar toda esta informação, o que lhe permite elaborar um conjunto de hipóteses e um plano de acção.
Não basta olhar para resultados de exames. "O que me interessa é conhecê-la. Quais são os seus antecedentes patológicos? Há alguma patologia relevante? Tem algum antecedente cirúrgico? Tem história familiar com mortes precoces? Como é que são as suas rotinas de alimentação? E de atividade física? Há consumos de tabaco, álcool ou drogas?"
Médico de Família como arma de prevenção e deteção precoce de doenças
Por manter uma relação tão próxima com o doente, e ser capaz de desenhar um retrato minuncioso, que contemple tantas variáveis, o médico de família consegue, melhor do que ninguém, prevenir e detetar precocemente alguma doença, encaminhando-o paciente para as diferentes especialidades, sempre que necessário.
Dá um exemplo: "Vai à minha consulta um homem, com 45 anos, obeso, que não faz desporto, fuma dois maços por dia. O pai morreu com enfarte antes dos 50 anos, ele é muito stressado. Só por estas características, esta pessoa tem risco elevado de ter um AVC. Pode não ter a partir dos 45 anos, mas pode ter a partir dos 50."
Sabendo disto, vai atuar preventivamente. "Queremos prevenir ou atrasar." É que a a história familiar é imutável, mas há aspetos que podem ser alterados. “Posso ter uma intervenção no peso, no sedentarismo, no colesterol, no açúcar. Se conseguirmos, é muito provavelmente a hipótese de um AVC ou de um enfarte", diz. Depois da avaliação do paciente.
"Se for competente e fizer bem o trabalho, o médico de família é o elemento estratégico para identificar qualquer doença. É o indivíduo que domina a colheita de uma história e a avaliação física do paciente que tem à sua frente. Se fizer um trabalho bem feito, vai identificar as alterações de saúde antes de se saber a que é que correspondem."
Isto é particularmente importante, porque as doenças tendem a aparecer lentamente, com manifestações iniciais discretas. "A doença quando surge não surge com os sinais todos", diz. "Um indivíduo que chega à urgência com uma dor em aperto no peito, que está a transpirar, que já vomitou, é um indivíduo que está a enfartar. É fácil ver. Agora, um indivíduo que, desde há meio ano, sempre que sobe um lance de escadas, sente um desconforto no peito, mas que abranda logo e que, de resto, diz que se sente bem... Eu, que já o conheço, e que percebo que é um homem que só verbaliza o que não está bem, vou colocar, embora de forma muito discreta, a hipótese de haver uma obstrução das artérias coronárias."
Enquanto que tendemos a desvalorizar os nossos sintomas (e, consequentemente, a consultar um especialista quando estes se tornam evidentes), o médico de família vai esmiuçar a nossa alteração, para perceber se será o sinal de alguma doença. "Conseguimos detetar aquilo que poderá vir a ser uma doença complicada dentro de um ano. É fácil perceber isto na doença cardíaca ou oncológica, por exemplo."
Estes são os dois problemas que o médico de família melhor consegue detetar precocemente. E, ainda bem. É que "quanto mais cedo, melhor."
No caso das mulheres, o ginecologista substitui o médico de família?
No universo feminino, é frequente consultar-se anualmente — ou de dois em dois anos, depende — o ginecologista. Ele faz os exames e confirma se está tudo em ordem com o sistema reprodutor. Então e o resto? Esta consulta é capaz de avaliar a nossa saúde em geral? Substitui a ida ao médico de família?
"Não substitui", diz Nuno Capela, que assume logo que se trata de um exemplo clássico. "Apesar de fazer algum tipo de vigilância quando o ginecologista passa as análise, não nos podemos esquecer de que ele está a olhar para a mulher do ponto de vista do sistema reprodutor. Olha para a mulher esse ponto de vista. O foco, em vez de ser abrangente, é mais segmentar no conhecimento."
Mas, ressalva: "felizmente, as mulheres que vão ao ginecologista não têm, regra geral, grande carga de doença". Isto faz com que as análises pedidas por este especialista sejam capazes de excluir "um conjunto de problemas muito comuns." Ou seja, "pode não ser a mais adequada", mas a consulta junto deste especialista "não tem grande margem de erro."
Além disso, frisa, "se houver histórico familiar, encaminham o paciente para nós e, depois, faz-se uma avaliação completa, com toda a informação."
Quando é que devemos consultar um médico de família?
Nuno Capela refere os dois principais contextos em que recebe pacientes: “Ou vêm devido a uma alteração que não sabem a que corresponde” ou "porque querem apenas se quer fazer consulta de vigilância."
Ou seja, a procura tem como motivação ou um sintoma ou o interesse em fazer o famoso "check up", no qual se realizam vários exames e, através dos resultados, se confirma se está tudo bem — ou não. Mas o especialista considera que os "exames são falsos tranquilizadores". É que com "as análises avaliamos parâmetros" e o facto de estes estarem normais não quer dizer que não haja risco de doença. Naquele momento pode estar tudo bem, mas pode deixar de estar. Importa, por isso, ter um olho mais atento, tendo em conta todos outros aspetos da pessoa — desde a família ao seu modo de vida ou pequenas alterações. "É muito mais importante olhar para a pessoa, ver os riscos a que ela está sujeita."
Quanto à periodicidade na visita, é variável. Para uma pessoa jovem, com uma saúde estável, uma consulta anual ou de dois em dois anos, poderá bastar. Por outro lado, uma pessoa mais velha, que já acumula problemas de saúde, precisará de uma vigilância mais apertada. Mas isto dependerá sempre da opinião do médico. "O próprio medico propõe a periodicidade. Depende do houver para vigiar."
Depois, há também que considerar o histórico familiar. "A história de saúde da família vai interferir na maneira como definimos metas e exames nos pacientes. Com vigilância, atrasa-se ou identifica-se mais cedo alguma doença, o que tem uma grande vantagem no tratamento e nos resultados."
As doenças cardiovasculares e oncológicas na família são aquelas a que se deve estar sempre mais atento. “Quanto eu tenho numa família uma história de doença oncológica — ou cardíaca — antes dos 50, a prevalência aumenta muito e é preciso fazer um acompanhamento mais próximo e frequente.”