"É com o coração desfeito e muitas lágrimas nos olhos que escrevemos estas palavras para vos dizer que a nossa gravidez não evoluiu". Foi desta forma que Matilde Breyner partilhou nas redes sociais que perdeu a filha Zoe, numa fase em que a gravidez se aproximava do sexto mês. Dias depois, recordou o medo que sentia em relação ao "parto", confessando que queria ultrapassá-lo "a dormir", mas não foi possível. E foi aí que a dúvida se instalou.

"Quando me falaram do parto, uns dias antes, a primeira coisa que pedi foi para me porem a dormir. Tinha muito medo desse momento. Disseram-me que não era possível. Teria de estar acordada e consciente", escreveu Matilde Breyner numa publicação no Instagram. A atriz partilhou o seu testemunho, mas deu azo a dúvidas generalizadas: afinal, porque é que tinha de estar "acordada e consciente"? Não há alternativas? O parto vaginal é a única opção?

O tema é sensível e as opiniões dividem-se, mas há que recorrer à terminologia correta para o abordar. Neste texto, temo-nos referido à expulsão do bebé do útero da mãe como "parto" — entre aspas — e não é por acaso.  "Quando falamos de um parto, o termo obstétrico pressupõe que haja um filho vivo. Pressupõe que haja um nascimento de um recém-nascido vivo. O termo correto é mesmo expulsão", começa por explicar Fernando Cirurgião, diretor do serviço de obstetrícia e ginecologia do Hospital São Francisco Xavier, à MAGG.

Já vamos aos motivos que podem influenciar este desfecho — em situações em que, de facto, os há — mas, primeiro, Fernando Cirurgião esclarece a dúvida espoletada pelo texto de Matilde Breyner: não, em episódios deste teor, a expulsão vaginal do feto não é a única opção, mas é a recomendada. 

"Procura-se promover sempre [a expulsão vaginal] até para não condicionar o futuro obstétrico daquela mulher. É evidente que é desejável para aquele casal num minuto estar a passar por isto e, de repente, no outro já ter passado por tudo e já estar o assunto resolvido e pronto, fazendo a tal extração [que se assemelha a uma cesariana, mas que não tem essa mesma designação, porque também o termo pressupõe o nascimento de um feto vivo]", começa por explicar.

O especialista afirma que, apesar de ser a solução mais procurada, não é a mais viável e saudável do ponto de vista obstétrico e do período de recuperação. Até porque não deixa de se assemelhar a uma cesariana, logo não deixa de ser uma cirurgia.

"Condiciona, por exemplo, em termos até de partos no futuro. Condiciona a probabilidade de, no futuro, vir a ter um parto normal ou um parto por via vaginal. Limita também o intervalo de tempo até uma nova gravidez", acrescenta, com a ressalva de que, até mesmo para o casal fazer o luto da situação, a expulsão vaginal se revela benéfica, já que não deixa qualquer marca e "não provoca qualquer condicionalismo físico do futuro obstétrico".

"É importante evitar um ato cirúrgico, que pode, por sua vez, ter complicações associadas. Não podemos banalizar a realização de uma cesariana. Não deixa de ser uma cirurgia. E até limita depois o intervalo para que se possa pensar numa nova gravidez", salienta o especialista.

Fernando Cirurgião é diretor do serviço de ginecologia e obstetrícia do Hospital São Francisco Xavier
Fernando Cirurgião é diretor do serviço de ginecologia e obstetrícia do Hospital São Francisco Xavier

Quais são os intervalos de tempo em causa?

Fernando Cirurgião admite que, quando se fala de uma extração vaginal, é impossível precisar o intervalo de tempo recomendável entre a extração de um bebé, na sequência da perda gestacional numa fase avançada, e a possibilidade de a mulher em causa voltar a engravidar. Até porque tudo depende do processo de luto da mulher e do casal e até da recuperação, que varia de corpo para corpo. "Esse condicionalismo é um condicionalismo relativo", diz.

No entanto, o especialista avança que, quando se trata de uma intervenção cirúrgica, a conversa é outra. Neste cenário, o intervalo de tempo entre partos, que segundo o médico especialista é consensual, é de 18 meses. Isto porque é impossível prever se, numa futura gravidez, terá de passar por uma nova cirurgia ou não. E o corpo precisa de tempo para recuperar de uma intervenção cirúrgica deste teor.

Matilde Breyner teve estar "estar acordada" durante a extração vaginal. Porquê?

"A primeira coisa que pedi foi para me porem a dormir. Tinha muito medo desse momento. Disseram-me que não era possível. Teria de estar acordada e consciente", explicou Matilde Breyner no texto em que descreveu a sua experiência na Maternidade Alfredo da Costa, em Lisboa, no qual admitiu ter saído de "braços vazios", mas "coração cheio". Mas, afinal, porque motivo era necessário "estar acordada e consciente"? 

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De acordo com Fernando Cirurgião, tudo se resume à imprevisibilidade do processo, essencialmente no que à duração diz respeito. "O estar acordada, por um lado, é porque não conseguimos exatamente prever quando vai acontecer [a extração]. O que está previsto é que seja tudo feito como se fosse uma indução, portanto poderão ser algumas horas. Lógico que não podemos ter aquela mulher grávida sob uma anestesia geral todo esse tempo. Agora, aquilo que é feito, tal e qual como se tivesse a acontecer um parto, é que quando a mulher tem dores, pode-lhe ser administrada uma epidural à mesma, bem como podem ser dados fármacos que podem ajudar a relaxar e a minimizar o sofrimento", explica.

Após a extração, é feito então um estudo do feto no serviço de Anatomia Patológica, que vai procurar e investigar quais as causas que possam eventualmente ter estado por detrás daquele desfecho, completa o especialista.

Extração feita. O casal pode recorrer a apoio psicológico clínico gratuito?

O sofrimento físico pode ser amenizado com epidural ou recurso a fármacos, mas o sofrimento emocional não pode nem deve ser relativizado. Fernando Cirurgião admite que o tempo é crucial para o processo de luto, mas deixa claro que há apoio emocional clínico gratuito a que os pais podem recorrer.

"É uma das coisas que está muito bem prevista e é algo que está, quase que apetece dizer, protocolado e institucionalizado. Essa mulher, essa mãe, terá que ter esse apoio psicológico, quer na altura no internamento quer de forma contínua", avança Fernanrdo Cirurgião. "Há que facultar a marcação de consultas, que são feitas habitualmente por psicólogos com formação específica nessa área", frisa."As maternidade têm esse apoio [gratuito]".

Há casos em que é impossível prever este desfecho, mas a observação médica constante é essencial

À MAGG, Fernando Cirurgião explica que nem sempre há um diagnóstico conclusivo que justifique a interrupção de uma gravidez num estado tão avançado. E os casos em que, de facto, não há qualquer causa detetável, podem mesmo ultrapassar os 50%.

"Chegamos a números muito díspares, mas em 25% a 60% das situações não encontramos uma justificação", avança. O especialista salienta que "é fundamental ter uma causa aparente", até porque, por vezes, "é o único consolo para aqueles pais que passam por tudo isto", mas nem sempre esta ausência de respostas é preocupante. Antes pelo contrário.

Segundo diz, "a probabilidade de voltar a acontecer existe, mas não é tão grande quanto naquelas circunstâncias em que encontramos uma causa, porque [nesses casos] pode repetir-se no futuro", explica. 

No que às causas diz respeito, o diretor do serviço de obstetrícia e ginecologia do Hospital São Francisco Xavier explica que o leque de opções é infinito. Diabetes, tabagismo, idade fértil, traumatismos, deslocamentos da placenta e até infecções por vírus são apenas alguns exemplos de possíveis causas inerentes à mãe.

Sendo que também pode ser encontrada uma explicação através da análise do feto. Por exemplo, quando há diagnóstico de malformações congénitas ou até um cenário em que o cordão umbilical se enrola sobre si mesmo e o feto deixa de obter a suplementação e oxigénio necessários ao seu desenvolvimento.

Ainda assim, o especialista destaca eventuais doenças autoimunes da mãe como potenciais causas, já que, muitas vezes, só são detetadas na sequência de um cenário deste teor. "O exemplo muito clássico é do lúpus. O lúpus, que é uma doença autoimune, em que o corpo se rejeita-se a si mesmo", e, por isso, tem implicações diretas na gestação, explica. 

Só uma análise detalhada não só da mulher, mas de ambos os pais se pode revelar útil para descartar eventuais justificações para a perda de um bebé numa fase avançada da gravidez. Por isso, o acompanhamento e observação médica constante é crucial para atuar neste sentido, reforça o especialista.