A família de Sara Larcher viveu um dos 32 mil acidentes de viação que aconteceram em Portugal, em 2017, segundo a PORDATA. A 22 de julho do mesmo ano, Sara Larcher deslocava-se com o marido, as duas filhas e a enteada, bem como com a cadela da família, para a casa de férias. Perto da meia-noite, prestes a chegarem ao destino, um carro na faixa contrária em excesso de velocidade bateu contra viatura dos Larchers. Nesse momento, a história da família mudou drasticamente.

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Maria Larcher Almeida, de 22 anos, filha de Sara Larcher, conta à MAGG que cerca de 15 minutos antes do acidente tinham parado numa bomba de gasolina e aí abraçaram-se todos para celebrarem o “bom momento” da viagem de férias e a felicidade que sentiam. “15 minutos depois tivemos o acidente e só nos vimos três meses depois, partilha a jovem, que na altura tinha acabado de fazer 18 anos. Relembra ainda que todos tiveram noção que iam bater, porque até ao confronto entre os carros houve uma pausa de dois ou três segundos, que deu tempo ao padrasto de dizer: “este gajo vai-nos bater”.

Logo após o acidente, continuaram todos acordados. Sara Larcher, 46 anos, recorda, entre riso,s que no momento foi a “diretora de operações” porque chamou ambulância e ainda tentou tirar a filha Maria Larcher Almeida de dentro do carro, que estava com o cinto preso. Mas no momento em que estava a sair da viatura, percebeu que tinha os dois pés partidos. Sara Larcher, terapeuta sistémica e integrativa, diz que viveram todo o momento com calma, pois “o corpo bloqueia as emoções, não há espaço para chorar nem para despedidas”.

Sara Larcher e o marido foram enviados de ambulância para o Hospital de Faro, e no dia seguinte, acabaram transferidos para Lisboa. Já as raparigas foram todas para Portimão, até que Maria Larcher Almeida teve de ser transferida para Lisboa de helicóptero por ter muitas lesões nos órgãos. Partilha que que tinha dores, “mas nada de dores insuportáveis, o corpo entra mesmo em modo pausa”, diz a jovem.

Recorda ainda, que enquanto esteve internada no Hospital de Santa Maria, o médico que a operou foi visitá-la todos os dias, dado que a recuperação da jovem era dada “como um milagre”. A primeira operação durou mais de 11h no bloco operatório e ainda se seguiram mais quatro cirurgias durante o processo de recuperação.

Sara Larcher e o marido tiveram lesões semelhantes, pois iam os dois nos lugares da frente do carro e partiram severamente alguns ossos. As raparigas, que iam nos lugares traseiros, tiveram principalmente lesões internas, mas o caso mais grave foi de Maria Larcher Almeida, que é a mais velha das três.

Mais de metade de pessoas envolvidas em acidentes de viação apresentam sintomas de stresse pós-traumático (PTSD) e 98% dos casos são medicados nos primeiros dias. O que acabou por não acontecer com esta família, devido à falta de profissionais psicólogos e psiquiatras no Sistema Nacional de Saúde. O reduzido apoio para a saúde mental que Maria Larcher Almeida e Sara Larcher tiveram no hospital só surgiu depois de já estarem a recuperar, mas ambas compreendem a situação pela falta de recursos e a grande quantidade de doentes. “O hospital curou-nos o corpo e depois fomos para casa. O espírito, a alma e o coração tivemos de ser nós a ir curá-lo”, conclui Sara Larcher.

"Tínhamos dois caminhos: o da dor e vitimização ou o do reflorescer"

Poucos meses antes do acidente, Sara Larcher mudou de vida ao trocar o trabalho em advocacia para ser terapeuta e formadora. O seu lema de vida passa pela psicologia positiva e pelo trabalho constante pela felicidade, cuidando sempre de si. A filha Maria Larcher Almeida vive com o mesmo mote e pretende sempre ser feliz. Mesmo com as adversidades de um acidente tão grave, ambas procuraram sempre a felicidade e o belo da vida em diferentes momentos.

Maria Larcher Almeida recorda a viagem de helicóptero, que mesmo com as dores, pensou que precisava de ver a paisagem sobre a cidade. Sara Larcher relembra a felicidade de beber os batidos proteicos de chocolate. Assim que começaram a melhorar, passaram a conversar todos os dias por chamada e o truque era sonhar com o futuro. “Naquele momento podia ter ficado muito centrada na dor, no que nos podia ter acontecido. Mas é importante abrirmos o olhar e vermos que, para todos os efeitos, estamos a respirar e a ser cuidados”, refere a terapeuta integrativa e sistémica.

Mãe e filha ultrapassaram o acidente adotando uma da perspetiva de vida diferente. Acreditam que quando surgem adversidade na vida, em vez de se questionarem sobre o porquê, o que leva à vitimização, perguntam para quê. “Não posso controlar o que me aconteceu, mas posso controlar a forma como eu me relaciono com aquilo que me aconteceu, levando um olhar expansivo e consciente sobre o que aconteceu. Em família, tínhamos dois caminhos: o da dor e vitimização ou o do reflorescer”, conclui Sara Larcher.

Depois de três meses internados, a vida desta família esteve ainda parada durante um ano, porque ainda estavam muito frágeis fisicamente e precisavam de repousar. No caso da jovem, que agora tem 22 anos, depois do intenso internamento perdeu 15kg.

Durante esse ano em casa, Sara Larcher diz que tiveram conversas terapêuticas em família, porque o assunto do acidente surgia todos os dias. “Em família, fizemos o luto do evento, passamos por todos os estados: zanga, raiva, tristeza e de repente a aceitação”, afirma. Maria Larcher Almeida relembra que houve tempo para chorar, mas sempre em conjunto e diz que foi “muito bonito” a união da família.

Tal como o resto da família, a atitude de Maria Larcher Almeida com a vida também mudou com o acidente. “Não vou deixar que o medo e a incerteza me impeçam de fazer coisas. Nunca sabemos o minuto a seguir”, explica a jovem à MAGG. Sara Larcher reforça que passou a viver a vida com uma maior gratidão em coisas simples, seja por tomar um café, respirar, viver em Lisboa. Mas alerta que, ainda assim, há momentos de tristeza ou zanga.

O acidente e os traumas continuam a marcar muito a vida desta família. Sara Larcher explica que fez acompanhamento psicológico e psicoterapêutico após o acidente para “tentar desconstruir, olhar para o medo e o trauma de forma a minimizá-los”.

Relembra que quando saiu do internamento, se tentasse entrar num carro chorava, mas depois da terapia voltou a guiar. Sara Larcher realça ainda a conquista de fazer o caminho para casa, por onde tem de passar pela serra de Sintra — que tem uma paisagem muito semelhante à estrada nacional do acidente—, onde que as associações visuais eram constantes.

Mas há imagens que continuam presentes, como quando vai na estrada e vê um condutor distraído e o carro sai um pouco da faixa rodoviária — aí o “coração para”. Ou em momentos mais isolados, como quando ouve as sirenes de uma ambulância, ou um toque de telefone semelhante ao dos cuidados intensivos.

Maria Larcher Almeida tem um percurso semelhante, porque também não permitiu que o medo cuidasse de si. Optou também por fazer acompanhamento psicológicos e terapia mais específica para a desconstrução do trauma. “Só andar à noite de carro eu evitava, no verão sair à noite e ter de ir de Uber para uma discoteca era uma coisa com que ficava com ansiedade só de pensar nisso”, recorda Maria Larcher Almeida antes de começar o acompanhamento psicológico.

“Há coisas que as pessoas não percebem, e ainda bem, mas isto é um trauma”, refere a jovem, que tem carta de condução, mas ainda não consegue guiar. A jovem de 22 anos partilha que consegue ouvir todos os helicópteros do INEM, e que o cheiro de desinfetantes de hospital é outra coisa que a abala.

As duas vítimas do acidente de viação acreditam que o desenvolvimento pessoal foi a chave para lidar com o acidente. “Vamos viver a nossa vida, mas vamos reservar uma parte da nossa caminhada a olhar para dentro”, refere Sara Larcher.