As dadoras de óvulos são poucas em Portugal, e os números não têm estado a crescer. Nos dados de 2015, disponibilizados pelo Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida (CNPMA), foram 497 as mulheres que inicaram ciclos para recolha e doação de ovócitos. Normalmente estas têm entre os 24 e os 35 anos e há uma coisa que as torna diferentes: acham que doar óvulos é como doar sangue e querem ajudar alguém a concretizar o sonho de ter filhos.

Era um bocadinho o provérbio que a minha avó costuma usar: não como nem deixo comer. Eu não os ia usar e não os ia dar a ninguém. E, a mim, isso começou-me a parecer egoísta"

Foi assim com Rita, de 24 anos. Numa consulta de rotina de ginecologia descobriu que podia ser dadora de óvulos. Nunca tinha ouvido falar do assunto, mas como ser dadora de sangue já era uma coisa normal na sua vida, achou que fazia todo o sentido doar os seus óvulos: "Se eu preciso do meu sangue e o dou, porque é que não havia de doar óvulos? Era um bocadinho o provérbio que a minha avó costuma usar: não como nem deixo comer. Eu não os ia usar e não os ia dar a ninguém. E, a mim, isso começou-me a parecer egoísta". Além disto, o sonho de ser mãe, sempre presente na sua vida, fê-la pensar em como se sentiam as pessoas que não o podiam ser: "Por isso, pareceu-me um bocado a lógica da batata: Já que não me custava nada, podia ajudar".

"A minha família dizia que eu ia ter filhos espalhados pelo mundo"

Depois de o seu médico ginecologista a encaminhar para a clínica AVA, todo o processo da doação lhe foi explicado e, os primeiros passos, eram os exames médicos: "Nós queremos que as dadoras sejam pessoas sãs, do ponto de vista físico e psíquico, porque quando oferecemos esse material genético aos recetores temos de ter a certeza de que, dentro do que a ciência nos permite, estamos a excluir uma série de patologias", esclarece Eduardo Rosa, médico especialista de ginecologia e obstetrícia.

Existem muitas doenças de transmissão sexual e genéticas que os exames feitos tendo em vista a doação são capazes de descartar: “Claro que nós também podemos ser mais ou menos abrangentes com as doenças que podemos excluir. Habitualmente não excluímos todas as doenças conhecidas, ainda que se o possa fazer, mas com um custo acrescido”. No entanto, se o assunto forem doenças genéticas recessivas, os exames não excluem as dadoras que tenham essas patologias, já que podem não ser evidentes (daí o nome recessivas) e só se tornam evidentes se o parceiro da recetora também as tiver, gerando embriões com aquela situação. Essas probablidades são muito pequenas, e acontecem mais vezes quando há casamentos consanguíneos. “Portanto, se houver uma dadora que seja portadora de uma alteração ou mutação recessiva, o que temos de fazer é verificar o parceiro da recetora para que ele não tenha”, explica Eduardo Rosa.

Para além das análises gerais, para ter a certeza que a dadora está bem de saúde, fazem-se também testes a doenças de transmissão sexual (HIV, hepatite C e B) e análises de estudo de coagulação (porque as dadoras vão ser alvo de uma punção aos ovários, que tem algum risco hemorrágico). Com um estado de saúde geral e ginecológico normal, e excluidas patologias genéticas, também é necessário excluir as psicológicas. Ana Magina, psicóloga clínica, trabalha em apoio e intervenção psicológica, com casais e mulheres, há 8 anos e explica que "o que se procura avaliar nas dadoras é a estrutura emocional. Ela tem que estar compensada emocionalmente: a sua tomada de decisão tem de ser consciente e coerente consoante a sua própria motivação e do equilíbrio emocional que ela tem de saber gerir". A forma como se sentem em relação ao ovócito também é importante, pois as dadoras em circunstância alguma são tidas como progenitoras.

É esta forma de pensar que distingue as mulheres que são dadoras daquelas que podem não conseguir perceber o porquê desta acção altruísta: "Isto acaba por ser um assunto tabu [entre as mulheres] porque eu vou dar a outra mulher a minha informação genética para que ela possa ter filhos. A minha família começou a dizer que eu ia ficar com filhos espalhados pelo mundo, eu respondia que eles não são meus filhos. Aquilo é só um bocadinho de mim com o qual aquela mulher pode realizar o seu sonho", conta Rita. Para ela, ter um filho não é apenas partilhar a informação genética, "é todo o cuidado e tudo o que envolve ser e ter o papel de mãe".

A minha família não percebe porque é que eu estou disposta a doar uma parte de mim. Para eles, eu estar a doar os meus óvulos é como se estivesse a dar filhos"

Para muitas pessoas, a doação de óvulos não é bem aceite, não só pelo medo que todo o procedimento possa causar, mas pelo facto de se estar a doar algo tão íntimo: "A minha família não percebe porque é que eu estou disposta a doar uma parte de mim. Para eles, eu estar a doar os meus óvulos é como se estivesse a dar filhos. É um bocadinho complicado perceberem que eu não sinto que esta criança seja minha filha. Tem, de facto, o meu código genético, mas eu acho que só depois de todo um processo de educação é que se torna realmente um filho, nosso", explica Sara. Tem 32 anos, é enfermeira e já sabe que quer doar os seus óvulos desde os tempos de faculdade. Na altura, com a vida instável, pensou em deixar para depois. Agora, já com dois filhos, decidiu avançar com o procedimento e dar a oportunidade a outras mulheres de sentirem a felicidade que ela sente por ser mãe.

A fase que mais assusta as dadoras: os procedimentos médicos

No processo de escolha de dadoras é necessário fazer uma correspondência entre as suas características físicas com as do casal recetor dos ovócitos. Rita foi a dadora escolhida para um casal que, entre muitos, precisava de uma mulher com as características físicas dela. Esta situação faz com que seja ainda mais difícil encontrar dadoras suficientes para a procura existente.

O passo seguinte é a estimulação da ovulação: "A estimulação é feita com injeções, também podia ser com comprimidos, mas a eficácia é muito menor.  As senhoras fazem, durante habitualmente 8 dias, injeções para os seus ovários incharem e ficarem com muitos folículos que depois vão ser puncionados. Todos os tratamentos são explicados e as senhoras podem fazê-los em casa: são muito simples, vem já tudo preparado e são indolores. É um tratamento muito friendly", explica o médico especialista.

Há um risco de um dia mais tarde irmãos se virem a cruzar, e por isso limita-se a doação"

"Na altura de injetar as hormonas, que, eu confesso, não é a melhor coisa do mundo, parece que estamos sempre com o período e há um mau estar, com algumas dores", conta Rita. Nessa altura do tratamento também não se podem fazer esforços e tem de se ter cuidado, não se deve fazer nada em excesso. "Quando chegou o dia da punção eu estava cheia de medo porque nunca tinha sido sedada". Este momento é um dos mais antecipados pelas dadoras: Sara também admite que a parte da punção a "assusta porque é um procedimento invasivo para a mulher".

As mulheres fazem, durante habitualmente entre nove a doze dias, injeções para os seus ovários incharem e ficarem cheios de folículos que depois vão ser puncionados. Para isso fazem três tipos de injeções diferentes:

  1. As injeções de estimulação com um medicamento à base de FSH (glicoproteina que o nosso corpo produz que estimula os ovários), durante 8 dias. O FSH vai aumentando o folículo – que no ciclo natural é só um, mas com esta dose extra, vão ser mais;
  2. Ao 5º dia de FSH, fazem outro tratamento que se chama antagonista. Ele vai fazer com que as mulheres não tenham ovulação espontânea. Quando os folículos ficam muito inchados, há uma altura em que recebem uma ordem para rebentar, no entanto, para se fazer a punção, não se pode deixar que isto aconteça. Para isso é que serve o antagonista;
  3. O terceiro medicamento é o triger: é administrado não para rebentar os folículos, mas para fazer uma outra coisa que ocorre paralelamente quando eles rebentam ao natural;
  4. Por fim, marca-se o dia da punção: as mulheres sofrem uma pequena sedação e são picados os ovários para tirar os ovócitos que estão dentro dos folículos.

Todo este processo de estimulação que leva à punção dura, mais ou menos, 15 dias.

Eduardo Rosa diz não existir nenhum problema de saúde que a dadora possa vir a ter por causa da doação. Em Portugal, a saúde das dadoras é mais protegida do que em alguns países: cá, cada dadora só pode fazer três doações e, por uma questão de segurança, tem de haver um intervalo superior a seis meses entre elas. "Isto acontece por várias razões: a primeira é o problema da consanguinidade. Ou seja, há um risco de um dia mais tarde irmãos se virem a cruzar, e por isso limita-se a doação. O outro tem a ver com o medo de esgotar aquela dadora e deixá-la sem capacidade para ter filhos. Mas, isso, teoricamente, pensamos que não aconteça", conclui. O relatório de atividade desenvolvida pelos centros de PMA de 2015 confirma: a taxa de complicação nas mulheres, que foram dadoras de ovócitos, foi de 0%.

A motivação monetária é um ponto a favor

Depois da punção dos ovários a dadora já pode seguir a sua vida normal: "Pode haver dores, porque nos primeiros dias os ovários ainda podem estar inchados, ou não foram picados todos os folículos que havia", revela o médico. Isto porque só se picam os maiores, ou seja, os pequenos ficam e podem continuar a crescer pois o FSH (glicoproteina que o nosso corpo produz e que estimula os ovários) vai continuar a atuar intrinsecamente. "É verdade que elas ficam com os ovários inchados e isso pode dar algum mau estar, mas, regra geral, é uma coisa que passa rápido e não dá dores de maior. Não costumam referir isso como uma coisa problemática", acrescenta.

Para a Rita, a pior parte foi mesmo a recuperação de três dias: "No dia da punção e nos três dias depois temos de ficar em repouso total, e isso, para mim, foi a pior parte porque odeio estar quieta. Depois disso parecia tudo muito normal, já não tinha dores nem sentia incómodos".

Estas doações são benévolas, as pessoas não ganham dinheiro com isto ainda que recebam um valor que está estipulado pela lei, que tem a ver com os incómodos causados: o ter de faltar ao trabalho e tudo o que perturba as suas vidas. Mas penso que não é isso que faz as pessoas deslocarem-se a uma situação destas."

Para as mulheres que trabalham e não podem tirar alguns dias para fazer todos os exames, tratamentos e ficar em casa de repouso, este acaba por ser mais um impedimento que não as deixa confortável com a ideia de avançarem com a doação. É por isso que, por lei, os dadores de órgãos, tecidos e células podem receber uma compensação única e exclusiva pelo serviço prestado, e no caso da doação de óvulos é independente do número ou da qualidade dos óvulos que recolherem. "Estas doações são benévolas, as pessoas não ganham dinheiro com isto ainda que recebam um valor que está estipulado pela lei, que tem a ver com os incómodos causados: o ter de faltar ao trabalho e tudo o que perturba as suas vidas. Mas penso que não é isso que faz as pessoas deslocarem-se a uma situação destas", esclarece Eduardo Rosa.

Toda a informação genética e dados das dadoras são restritos, se elas assim o desejarem. Apenas em caso de doença da criança é que podem ser contatas pelo tribunal e escolher se querem divulgar a sua identidade, ou não: “Apesar de tudo, isto é a nossa intimidade e a nossa informação genética. Eu não quis que o meu nome fosse divulgado. A recetora ou a bebé que vai nascer da junção do meu ovócito com o esperma do pai viesse a saber o meu nome, apenas em situações de doença, e mesmo aí, eu escolhi que não queria. Foi uma opção díficil porque por mim não me importava que o bebé soubesse quem eu era, mas eu não sei quem é aquela pessoa e qual foi a informação que lhe foi dada, não sei qual seria a reação dela. Se um dia eu vier a ter filhos não quero que eles possam estar em perigo por um motivo qualquer, e tomei essa decisão com base na proteção dos meus. Mas, se fosse uma situação segura, eu não me importava que a pessoa soubesse quem eu era, até porque não acarreto nenhuma responsabilidade”, explica Rita.

Joana Guimarães, conselheira do CNPMA, afirma que "tanto as clínicas privadas como o serviço público cumprem o mesmo valor, que está publicado no Diário da República e é tabelado: são mais ou menos 845 euros". Rita explica que, na altura em que começou o tratamento, nem sabia da compensação monetária: "Mas não vou dizer que não é uma situação confortável. Para alguém que tenha de trabalhar e pôr baixa alguns dias, esse valor já vai compensar a situação, e acaba por compensar também o desgaste que existe". No entanto, a motivação financeira não é suficiente para chamar novas dadoras.

Em Portugal, a doação de óvulos ainda é um tema sensível

Para Joana Guimarães a falta de dadoras tem muito a ver com "questões culturais": "Há falta de informação, e isso nota-se porque, cada vez que nós fazemos uma campanha de divulgação, aparecem mais candidatas a dadoras. Portanto, não há dúvida que estas campanhas funcionam, mas depois caem em esquecimento", além disso acredita que "as pessoas não estão motivadas". "Acho que é até uma questão de educação. Nesse ponto de vista, da educação e do desenvolvimento, Espanha está mais à frente do que Portugal, por exemplo".

Só as pessoas diferentes é que se propõe a fazê-lo. Em Portugal, esta área tenta ser muito discreta, não se vê outdoors a fazer publicidade à doação de óvulos."

Eduardo Rosa partilha da mesma opinião e vai até mais longe:  "Só as pessoas diferentes é que se propõe a fazê-lo. Em Portugal, esta área tenta ser muito discreta, não se vê outdoors a fazer publicidade à doação de óvulos. E isso tem muito a ver com questões culturais: ainda é uma área sensível. Muitas pessoas ainda pensam que não querem “ter” filhos que não saibam onde é que estão ou não querem que outras pessoas tenham filhos usando o seu material genético. Ainda é muito isso que lhes faz confusão."

Para Rita, a questão de não haver divulgação nem informação sobre a doação de óvulos é tida como um grande entrave. As pessoas têm medo, porque não sabem do que se trata. "A minha família não achou muita piada, achavam que eu podia ficar doente ou que me podia acontecer alguma coisa e até ralharam comigo. Tiveram medo porque ninguém sabia nada sobre isto". Mesmo dentro do seu grupo de amigas, todas em idade de ser dadoras, o assunto não foi bem aceite: "Elas sentem-se desconfortáveis com o tema, não pelo tema em si, mas porque não sabem o que é. E mesmo depois de eu lhes ter contado tudo o que passei e o que é que aconteceu, ficam desconfortáveis, e eu acho que é porque não há pessoas suficientes a falar no assunto. Quanto mais se falar, menos será tabu".

A doação de óvulos é permitida em Portugal desde 2006. A espera para casais que queiram ter filhos recorrendo a esta técnica de procriação medicamente assistida pode chegar, no caso do serviço hospitalar público, aos dois anos e meio.