Há três anos, Laura, uma estudante alemã de 25 anos a viver em Lisboa, começou a sentir dores durante as relações sexuais. Passado cerca de um mês, a dor que sentia na zona da vulva piorou bastante e chegou a impedir Laura de andar ou de se manter sentada nos períodos mais agudos.

“Deixei de fazer sexo com o meu namorado durante quase um ano, as dores eram insuportáveis”, conta à MAGG a estudante alemã, que não foi diagnosticada durante dois anos e meio.

Consultou vários ginecologistas e médicos de outras especialidades — dez, no total — que não conseguiram encontrar uma resposta para o seu problema. “Todos eles me propuseram planos de tratamento que não funcionavam, teorias que não faziam sentido”, recorda Laura, que acabou por tomar as rédeas da situação.

“Já que os médicos não me conseguiam ajudar, comecei a fazer pesquisa em blogues, redes sociais e encontrei sites que falavam sobre vulvodínia. Foi só em 2018 que consegui encontrar um médico que me confirmou o diagnóstico.”

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Muitos médicos não conseguem diagnosticar a vulvodínia

Apesar de ter uma prevalência de 6 a 20% mundialmente (em Portugal, os números apontam para os 7%), a vulvodínia é uma doença ainda muito desconhecida, mesmo dentro da comunidade médica.

“Há pouca investigação nesta área e há mulheres que passam por vários médicos até encontrarem uma resposta”, afirma Pedro Vieira Baptista, médico ginecologista, e o médico responsável pelo diagnóstico de Laura.

Mas afinal o que é a vulvodínia? Pedro Vieira Baptista, que também assume funções enquanto secretário-geral da ISSVD (International Society for the Study of Vulvovaginal Disease), explica que “é a dor ou ardor na vulva sem causa que explique o quadro, que persista no mínimo temporal de três meses, embora isso não seja um critério absoluto. Em termos de diagnóstico, se a paciente apresentar um quadro típico de vulvodínia há dois meses, é óbvio que é para começar a tratar”.

Pedro Vieira Baptista é ginecologista no Hospital Lusíadas Porto e na Unidade de Tracto Genital do Hospital de São João

Esta dor ou ardor pode surgir durante as relações sexuais, com a introdução de tampões, com qualquer estímulo na zona (andar de bicicleta, de mota, etc.), mas também pode surgir de forma espontânea, no dia a dia, embora o especialista afirme que esses são casos “mais raros”.

De acordo com Pedro Vieira Baptista, pode acontecer a qualquer mulher, em qualquer idade, mas “é mais comum nas adultas jovens, tendo o seu pico entre os 20 e os 25 anos”.

Raquel Borges entra para estas estatísticas. A estudante de 25 anos, que frequenta o sexto ano de medicina na Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra, tinha 18 anos quando começou com uma “sintomatologia esquisita”.

“Tinha muito ardor na zona da vulva, primeiro apenas em situações provocadas, depois sem qualquer motivo. Ardia-me sentada, de pé, fosse a fazer o que fosse. Era um ardor e uma dor constante, o dia todo, uma sensação incómoda de picada”, relata Raquel Borges, que foi de imediato ao médico. Mas tal como no caso de Laura, teve de passar por muito até ter uma resposta para o seu problema.

“O primeiro médico diagnosticou-me candidíase. Pus tudo o que era pomada e tal resultou numa queimadura química, que piorou muito o problema”, conta a estudante de medicina, que salienta que esta é uma doença “apelidada de tudo menos o que é na realidade”.

Raquel Borges passou um ano sem ser diagnosticada e, nesse período, consultou 15 médicos que não a conseguiram ajudar, oferecendo diagnósticos errados uns atrás dos outros. “Passou de candidíase para eczema, andou muito à volta disso, mas também me foi dito que era tudo da minha cabeça”, recorda.

“Nas urgências, uma médica disse-me que já tinha visto aquele aspeto [da vulva] em vítimas de violação”

O desconhecimento sobre a vulvodínia na comunidade médica é tal que muitos especialistas, sem conhecerem a doença e sem observarem uma causa clara para a dor de que as pacientes se queixam, acabam por acreditar que tal é um quadro psicológico.

Apesar de não saber de onde surgiu a expressão, Pedro Vieira Baptista afirma sem rodeios que a vulvodinía não deve ser conotada como “vagina deprimida”, uma expressão popularizada graças a um episódio da popular série “O Sexo e a Cidade”.

“Nem consigo perceber de onde veio a ideia, não sei se pelo facto de algumas mulheres serem tratadas cm antidepressivos. Mas isto é um quadro de dor”, refere o médico ginecologista.

Também Laura, uma estudante alemã de 25 anos que sofre com a doença, não se revê na expressão: “Já li as palavras ‘vagina deprimida’ serem usadas para descrever o vulvodinía em alguns artigos e é extremamente ofensivo para mim e para todas as outras mulheres que sofrem com esta doença”.

“A certa altura deste trajeto, em que as mulheres passam por vários médicos antes de serem diagnosticadas, há sempre alguém que sugere que é psicológico. Não há causa aparente, por isso assumem que está tudo bem e é da cabeça da mulher”, refere Pedro Vieira Baptista.

O especialista vai mais longe e relata que “a abordagem por psicólogos e psiquiatras, que não estão informados relativamente a estes quadros e também não investigam, até sugere que esta dor esteja relacionada com abusos sexuais em crianças”.

“A vulvodínia é um quadro de dor terrível para estas mulheres, que já estão mal. Se alguém lhes diz repetidamente que é da cabeça delas ou, mais grave, que foram abusadas em crianças e não se lembram, ficam completamente destruídas”, relata o médico ginecologista.

Raquel Borges revê-se nestas situações e, durante o ano em que procurava um diagnóstico, assume que o que lhe foi mais custoso foi lidar com toda a parte psicológica de não ser ouvida pelos médicos.

“Procuramos médicos que, supostamente, deveriam ter uma resposta e não têm. Ou que, como não conseguem ver um problema evidente quando examinam a vulva, assumem que o problema tem um cunho psiquiátrico”, explica a estudante de medicina, que teve de lidar com momentos muito difíceis no processo.

Como roía as unhas, uma das médicas que Raquel Borges consultou ligou este hábito à dor, e assumiu que a estudante era uma pessoa ansiosa. “Mandou-me ir a mais concertos”, recorda a estudante de medicina, que também passou por uma situação traumática nas urgências de um hospital.

Por vezes, “o estímulo doloroso é tanto que a vulva fica inchada” e, numa dessas ocasiões, Raquel Borges dirigiu-se ao hospital: “Nas urgências, uma médica disse-me que já tinha visto aquele aspeto [da vulva] em vítimas de violação. Foi um comentário muito traumatizante. Curiosamente, dias depois voltei a ser vista pela mesma médica que, como a vulva já tinha um aspeto normal, disse-me que não devia ser nada, e nem se preocupou em pesquisar mais”.

Laura, que procurou um diagnóstico durante dois anos e meio, também se deparou com comentários menos felizes da parte dos médicos: “Disseram-me que era da minha cabeça, que só precisava de relaxar. Passei por muito enquanto não fui diagnosticada, estava com dores horríveis e sentia que os médicos estavam a ser ignorantes e não me levavam a sério, queriam fazer de mim maluca”.

Para além de não ser ouvida, a estudante alemã também foi mal observada e ainda sofreu mais dor com as técnicas inapropriadas de alguns especialistas.

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“Muitos ginecologistas examinavam-me sem os cuidados devidos, e causaram-me muita dor no processo. Nunca me pediram o consentimento para fazer determinado tipo de exames, aos quais me oporia se tivesse tido a hipótese. Por exemplo, em pacientes com dores na vulva, não devem ser utilizados espéculos. Mas quase todos os médicos usaram este tipo de instrumentos, que me fizeram sentir dores terríveis, para além de zangada e impotente”.

Para Raquel Borges, a falta de humildade dos médicos também desempenha um fator na falta de conhecimento e atraso no diagnóstico de muitos casos de vulvodínia: “O que me irritava muito era ter a plena noção de que havia uma falta de humildade imensa de muitos dos médicos a que fui, que não eram capazes de me dizer ‘eu não sei, vou pesquisar’”.

A vulvodínia é uma doença limitativa, física e psicologicamente

Maria (nome fictício), tem hoje 28 anos e é médica interna na especialidade de anestesiologia. Aos 19 anos, começou a sofrer de fortes dores na vulva e procurou ajuda. Mas tal como Laura e Raquel, teve de passar por vários médicos e diagnósticos errados antes de ter uma resposta, processo esse que a levou ao isolamento social, enquanto sofria com dores numa base diária.

“É das coisas mais traumáticas porque já passei, ninguém nos compreende, nenhum médico nos ouve, e acabamos por nos afastar de tudo e de todas as experiências que nos possam causar desconforto”, conta Maria.

No processo, Maria deixou de ter relações sexuais com o namorado, não usava calças nem collants, nem conseguia fazer desporto de forma confortável. Gostava de andar a cavalo e de mota, e também deixou de o fazer.

“Tive de mudar o meu vestuário todo, e deixei de me identificar com a pessoa que eu era, porque não podIa fazer quase nada. Estava com os meus amigos, mas não estava sequer confortável sentada num sitío qualquer, por exemplo. Acabei por me resguardar mais em casa e isolei-me”.

Para além de ser obrigada a deixar de fazer coisas que lhe davam prazer, Maria também não falava com ninguém sobre o assunto, que era desconhecido para grande parte das pessoas. “Eu era estudante de medicina e nós não falávamos de todo disso na faculdade, nem os ginecologistas sabiam o que era, quanto mais os estudantes. Nem com a minha melhor amiga falava. As únicas pessoas que sabiam o que se estava a passar comigo eram os meus pais e o meu namorado da altura, por razões óbvias”, recorda.

Para Pedro Vieira Baptista, esta é uma doença com impacto não só a nível sexual, mas social e familiar, e pode afetar as mulheres de diversas formas. “Tenho pacientes em que a doença tem pouco impacto, tenho outras que, como já ouvi, ameaçaram o suicídio”, afirma o médico ginecologista, que explica que há também mulheres que só têm sintomas durante a atividade sexual e que, assim sendo, “lidam melhor” com a doença.

Tal como os sintomas podem ser variáveis, a intensidade da dor e a maneira como se lida com tudo isto também: “Cheguei a ter uma paciente cujos tratamentos não estavam a resultar, mas não quis continuar com os mesmos. Só o facto de ter um diagnóstico e saber que não estava maluca foi suficiente para essa mulher lidar com a vulvodinía”.

Como se trata uma doença quase “desconhecida”?

Pedro Vieira Baptista assume que a questão do tratamento da vulvodinía é complexa. “Assim como não compreendemos a causa, é um problema encontrar o tratamento adequado”, refere o especialista, que recomenda que todo e qualquer processo de tratamento deve estar centrado num ginecologista, “habituado a lidar com estas questões”.

Tal como explica, há casos em que a vulvodinía está associada à toma da pílula e a interrupção desta é suficiente para que se deixe de ter dor e ou ardor. “Diria que isto acontece em cerca de 15% dos casos, o que acaba por ser residual”, salienta Pedro Vieira Baptista.

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E quanto aos restantes 85% das mulheres que sofrem com esta patologia? “Vale a pena investir em anestésicos tópicos, há casos em que os antidepressivos tricíclicos têm bons resultados, os anti-epilépticos noutros, e também existem tratamentos de fisioterapia que se podem fazer. Quando tudo falha, o último recurso é a cirurgia, mas tem de ser muito bem estudado”, explica o médico ginecologista.

Já os tratamentos a laser são de evitar, refere o especialista: “Hoje em dia, quem tem laser gosta de queimar tudo, mas esta técnica não tem evidência nenhuma, pelo contrário, é um erro e um disparate. Recebo imensas doentes que tiveram uma abordagem por laser e ficaram piores do que já estavam”.

Laura teve sucesso com um plano de tratamentos que conjuga antidepressivos com fisioterapia, que segue desde outubro de 2018. “Os antidepressivos bloqueiam os recetores responsáveis pela dor crónica, reduzindo-a, e a fisioterapia ajuda a relaxar os músculos pélvicos que estão sempre em tensão devido à dor”, explica.

Apesar de ainda lidar com a dor, e de não estar completamente curada, a estudante alemã teve sérias melhorias na sua qualidade de vida: “Este plano de tratamento ajudou-me a reduzir a dor para uma quantidade suportável. Tenho dias maus e dias bons, mas consigo viver normalmente, o que inclui voltar a ter atividade sexual com o meu namorado”.

Depois de diagnosticada, Raquel Borges fez vários destes tratamentos, que ajudaram a reduzir a dor e fizeram com que a mesma só surgisse provocada por qualquer estímulo. “Mas se passava muito tempo sentada, sentia dor, se andasse muito, se colocasse um tampão, a mesma coisa”, recorda a estudante de medicina, que acabou mesmo por realizar a cirurgia em 2016.

“Fiquei completamente sem dores. Diria que tenho mais sensibilidade do que uma mulher comum terá, mas o procedimento resolveu o meu problema”, partilha Raquel Borges.

Tal como Raquel, também Maria acabou por escolher a cirurgia, que hoje em dia lhe permite ter uma vida completamente normal. Depois de ter obtido o tão esperado diagnóstico e ter experimentado vários tratamentos, a hoje médica de 28 anos avançou para a última solução disponível.

“Esgotei as opções todas e fiz a cirurgia. Eu sabia que a operação podia não ser completamente curativa, mas no meu caso, foi”, relata Maria, que passou pelo procedimento cirúrgico para tratar a vulvodínia em 2013, e que se mantém sem dor até hoje — mas os fantasmas continuam.

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“Fiquei totalmente sem dor passado três meses da operação — acho que a demora tem a ver com a maneira como a dor crónica se processa em termos cerebrais—, mas há coisas que não faço até hoje. Claro que voltei a ter relações sexuais, e foi um alívio imenso não sentir dor, mas nunca voltei a andar a cavalo ou de mota, por exemplo. Conhecemos tão mal esta dor, e sabe-se tão pouco sobre o que a impulsiona, que não quero arriscar fazer coisas que a possam provocar.”

Apesar de ter o sonho de ser mãe, Maria assume que o parto vaginal é algo que a assusta muito: “Sabemos que alguns partos estão associados à dor crónica nessa região do corpo humano, e tenho medo de sofrer consequências”.

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