"El Presidente: Jogo da Corrupção" chega à plataforma de streaming Prime Video esta sexta-feira, 4 de novembro, na contagem decrescente daquele que é o Mundial mais contestado de sempre, e que acontece no Qatar.
Albano Jerónimo tem, na série escrita pelo argentino Armando Bó, o seu primeiro protagonista numa produção internacional. O ator português de 45 anos dá vida a João Havelange, advogado brasileiro que foi presidente da Federação Internacional de Futebol (FIFA) entre 1974 e 1998.
Havelange, que morreu em 2016 aos 100 anos, foi, por um lado, responsável pela democratização do futebol, retirando o controlo da modalidade das mãos dos europeus, mas também por criar esquemas de corrupção e suborno no seio da FIFA. A atriz brasileira Maria Fernanda Cândido dá vida a Anna-Maria Havelange, devota mulher do carismático presidente da FIFA (sobre a qual, na vida real, praticamente nada se sabe).
"El Presidente: Jogo da Corrupção" é a segunda temporada da série criada pelo guionista argentino Armando Bó. Na primeira, que estreou na Prime Video em 2020, foi abordado o escândalo Fifagate, de 2015.
A MAGG conversou com Albano Jerónimo e Maria Fernanda Cândido sobre os desafios de interpretarem personagens tão controversas (cada uma à sua maneira) e sobre a forma como "El Presidente: Jogo da Corrupção", sendo ficção, pode ser um instrumento de reflexão sobre a atualidade.
Como construíram estas personagens sobre quem, no caso do Albano, se sabe tanta coisa e, no caso da Fernanda, de quem se sabe tão pouco?
Maria Fernanda Cândido - É exatamente isso. O Albano, que tinha tanta informação, tanta história, tanta biografia e, no meu caso, nenhuma informação. Nem fotografias tínhamos! O meu trabalho foi essencialmente baseado no roteiro, no trabalho do Armando [Bó]. O facto de não ter o compromisso da personagem da vida real deu-nos a possibilidade de criar uma mulher que representasse a situação de tantas outras mulheres, do feminino nessa época. E, principalmente, dentro desse mundo que é essencialmente masculino. Foi uma grande oportunidade e um processo muito criativo que eu pude vivenciar, com os meus colegas, a direção e os roteiristas.
Albano Jerónimo - Nós temos, de facto, muito mais informação. Contudo, ao lado íntimo de João Havelange, nós não temos acesso. Se reparar, publicamente ele tinha sempre uma figura muito fechada. Não era muito expansivo. E mesmo sobre o processo de corrupção Fifagate, pouca coisa se sabe. O meu foco foi construir este João Havelange de dentro para fora, com a perspetiva de o humanizar. Ou seja, criar alguém com falhas, alguém incompleto. E aqui os erros são momentos de construção.
E nestes momentos de construção surgem os meus colegas maravilhosos, o Armando Bó e a necessidade de trabalhar porque, na altura, estávamos em pandemia... tudo isto é muito forte parar criar este João Havelange. Mas respondendo de forma objetiva, quis humanizar este João Havelange. Dar-lhe a intimidade a que não temos acesso. E criar esta pessoa que, nos primeiros episódios, começa cá em baixo e que vai crescendo ao longo da série até que chega ao poder. E quando chega ao poder, ele também se transforma noutra coisa. É um bocadinho este animal que tentámos domesticar, humanizando-o.
Como profissionais do meio, que testemunham esta nova vaga de séries que retratam pessoas e acontecimentos reais (como, por exemplo "The Crown"), acreditam que existe o risco de o espectador percecionar a realidade ficcionada como a história real?
Albano Jerónimo - O nosso objetivo é comunicar. Nós somos agentes da comunicação, postos ao serviço de algo que está acima de nós. Posto isto, esta série parte do futebol, mas é uma série que fala sobretudo de política. Não corremos o risco de desvirtuar seja o que for que aconteceu verdadeiramente. É sempre um extra, é um êxtase, um estímulo, é uma excitação fazer algo a partir de coisas que aconteceram na vida real. Porque conseguimos ampliar. E é aí que entra o brilhantismo da escrita do Armando Bó. Ele consegue misturar nesta série, partido de factos reais, humor refinado, nada barato. E dá espaço para que a mulher exista neste mundo de homens, que o Havelange se mostre nestas falhas e que assistamos todos à construção deste universo que é o futebol hoje, que deixou de ser um desporto e passou a ser um negócio.
Eu acredito que a série tem um equilíbrio fantástico nessa perspetiva de começarmos a partir de factos reais para uma ficção, e não só a desconstruirmos, mas também a ampliarmos num discurso político. Para que, no fundo, apelemos às pessoas para uma reflexão sobre os seus valores, o que é que isto implica na forma como te relacionas com o outro. Onde é que fica tudo isso? Esta série é um convite à reflexão, nos momentos políticos que estamos a viver no mundo inteiro, numa ascensão de extremos, seja de esquerda ou de direita. A série engloba e consegue, de uma forma brilhante na minha opinião, mandar tudo cá para fora de uma forma incrível.
Maria Fernanda Cândido - Esse convite à reflexão [resulta de] um excelente casamento de entretenimento e diversão com essa possibilidade de reflexão. Como o Albano disse, não é apenas sobre futebol que estamos falando. Estamos falando sobre política, sobre cultura, sobre economia e, principalmente, a palavra que me vem à cabeça é poder. A relação de poder entre as pessoas dentro de um pequeno núcleo familiar, dentro de uma cidade, dentro de um país e, porque não, porque é o que estamos a falar aqui, entre países, entre nações.
"Esta série dá-nos a oportunidade de refletirmos sobre a mercantilização das nossas próprias paixões"
Quão atual é esta série, que estreia a menos de um mês do arranque daquele que é, talvez o Mundial mais triste da história do futebol e que acontece num país onde há, digamos sem rodeios, escravatura moderna?
Albano Jerónimo - É super contemporânea pelas razões que apontou, porque esta série vem com uma espécie de menu de entrada para — e subscrevo as suas palavras sobre o Mundial do Qatar — o que vamos assistir tristemente daqui a umas semanas. É um menu de entrada nem que seja pelo simples facto de nos mostrar como é que este modus operandi, como é que esta bolha do futebol se agigantou até aos dias de hoje. Como é que o futebol se profissionalizou, como é que a FIFA cresceu até à estrutura que é hoje. E há uma paródia sobre tudo isto. Esta série uma paródia sobre estes momentos quase pornográficos que pode ser o futebol muitas vezes. E esta paródia é uma forma de ganharmos distanciamento para, uma vez mais, refletirmos sobre este horror que pode ser o futebol, que pode ser este Mundial do Qatar, por exemplo.
Maria Fernanda Cândido - Esta série dá-nos também a oportunidade de refletirmos sobre a mercantilização das nossas próprias paixões, não só no caso do futebol, o quanto isso vai invadindo outros setores da nossa vida, como a saúde, a educação. É um convite a pensarmos sobre isso.
Maria Fernanda, o sotaque do Albano. Aprovadíssimo?
Maria Fernanda Cândido - É uma coisa maravilhosa! Eu só fui ouvir o Albano falando português com o sotaque de Portugal recentemente, quando nos encontrámos, já depois de termos terminado a série. Para mim, Albano sempre falou português do Brasil! Quando o encontrei e ele começou a falar português de Portugal, tomei um susto (risos)! Albano é um camaleão. Ele tem essa genialidade, essa faísca nos olhos, esse fogo na alma, que faz dele esse excelente ator, esse ser humano tão disponível, tão generoso, com quem tive a sorte de trabalhar.
Albano Jerónimo - Obrigado, Maria. Mas sabes o que é que a minha mãe dizia? Que nós somos o reflexo dos outros. Portanto, obrigado a ti por toda a inspiração.