Eu era o tipo desajeitado e introvertido; ela a miúda popular. Ela movimentava-se pelas artes enquanto eu ainda achava que a informática seria o meu futuro, embora já tivesse um apreço pelas letras. À primeira vista, nada em cada um de nós gritava "compatível". Mas depois de alguns meses de encontros e conversas onde nos expusemos, para o bem e para o mal, sem filtros, reconhecemos ligação, química e interesse mútuo. Ficámos juntos. E separámo-nos. E voltámos a estar juntos, para nos separarmos novamente.
Nada correu bem, portanto, por culpa de ambos. Cada um usava o outro como saco de pancada de cada vez que as frustrações, e eram várias, vinham ao de cima. Ela, ilustradora, projetava os conflitos em desenhos e eu optava pelas palavras.
Anos depois do conflito final, percebi que o desfecho talvez pudesse ter sido evitável. Nunca foi tema de conversa pós-rutura, mas não me posso queixar de nunca me ter sido feito um desenho sobre o cataclismo que, juntos, protagonizámos. Ela fez vários, mas, na altura, não quis entender. Não se chamava Marianne como a protagonista da série "Normal People", mas andava lá perto.
Mas o primeiro fator de familiaridade não se limita ao nome da personagem da série que, ao longo dos episódios, protagoniza com Connell (Paul Mescal) uma relação que tem tudo para dar certo, mas que, apesar disso, dá sempre errado.
É que vivi, em primeira mão, toda a longa e tortuosa experiência de assistir, impotente, à rutura de duas pessoas que se amam, mas que não conseguem comunicar — acabando uma e outra vez separadas, desencontradas e sozinhas.
É essa a premissa de "Normal People", a série que agora faz parte do catálogo da HBO, que valeu ao ator Paul Mescal a nomeação para o Emmy de Melhor Ator em Minissérie e que se tornou numa das produções mais comentadas muito devido à forma como está escrita.
Mas afinal, porque é que a série ficou tão popular?
Esta é a pergunta que todos os criadores, produtores e argumentistas querem ver respondida, especialmente numa altura em que, apesar da pandemia, continuam a haver muito e bom conteúdo para ver. A resposta, arrisco dizer, tem que ver com a história aparentemente simples que decide contar — porque são essas a que sentimos vontade de regressar mais tarde.
Na génese, "Normal People" não é mais do que um ensaio documental — revestido de ficção — sobre como dois miúdos, que se vão descobrindo à medida que vão crescendo, mantém uma relação amorosa num contexto e num mundo que não controlam.
Inicialmente, ele é o tipo popular da escola. A mãe é empregada de limpeza da família da rapariga por quem se apaixona. Esta, por sua vez, é a miúda introvertida, mas de personalidade forte. Vem de uma família rica e altamente disfuncional, de quem todos adoram fazer troça.
Quando decidem namorar, fazem-no às escondidas. A explicação é simples: o tipo popular não pode, nem deve, ser visto a namorar com o "patinho feio" da escola sob pena de isso lhe fazer mossa na reputação. Mais tarde, percebe-se, ele não se importava com isso e os amigos que ele achava que o podiam julgar também não queriam saber.
Mas essa tendência perdura ao longo da relação que este mantém com Marianne e nunca, em momento algum, o casal é visto a trocar carícias em público. Para o olhar desatento e inócuo, Marianne e Connell são dois estranhos. Incompatíveis, portanto, como eu e a "Marianne" da vida real aparentávamos ser.
E embora o foco da série esteja nas falhas de comunicação do casal, que acaba separado por diversas vezes e a conhecer novas pessoas só para, mais tarde, voltarem a tentar uma relação, há uma decisão ponderada dos argumentistas de não nos atirar nada à cara. Porque, na verdade, o que se passa ao longo dos 12 episódios é muito mais do que uma história de desamor.
É, acima de tudo, sobre jovens que evoluem no meio do trauma. Ela devido à família e ele devido a um acontecimento trágico que acontece a meio da temporada.
A tortura emocional a que aqueles dois são sujeitos é tramada. E nós, espectadores, não lhe passamos ao lado. Mais ainda quando há uma decisão ponderada de não nos ser explicado o contexto social no qual estão inseridos.
Marianne, agora a miúda popular da faculdade, assume o trauma familiar o caos no qual vive — com o irmão possessivo e controlador depois do pai ter saído de casa por agredir a mãe. Já Connell, pelo contrário, vê-se obrigado a confrontar uma ideia que, durante o ensino secundário, lhe parecia impensável: de miúdo popular passa a viver na sombra, onde poucos parecem gostar dele e sem toda a popularidade que lhe estava associada.
Há uma inversão de papéis sociais a meio da série que é mostrada de forma muito subtil porque nunca é explicitamente discutida. É preciso estar atento aos olhares, aos gestos e aos comportamentos. O conflito interno de ambos vai crescendo nas sombras, bem devagarinho, até explodir, ameaçado estragar uma relação que os espectadores sabem ser perfeita, mas que resulta num afastamento cíclico que dói ver (e rever).
Na ficção, e sem divulgar muito sobre o final da história, Marianne e Connell têm uma última oportunidade de repensar o seu futuro juntos, agora com outro entendimento sobre o meio em que cresceram e as razões que os levavam à constante rutura.
Na realidade, eu e "Marianne" separámo-nos e ainda hoje estamos desencontrados um do outro.