Este texto contém spoilers sobre "Rabo de Peixe", série portuguesa que chega à Netflix a 26 de maio.
Em junho de 2001, um navio com meia tonelada de cocaína encalhava em Rabo de Peixe, vila piscatória de São Miguel, Açores. Estes acontecimentos, reais, e que marcaram para sempre a população daquela localidade, servem de inspiração a "Rabo de Peixe". A série, a segunda portuguesa feita para a Netflix, foi idealizada e realizada por Augusto Fraga, também ele açoriano. Marca a estreia de Fraga no formato série, depois de um impressionante currículo a dirigir anúncios publicitários para marcas como Apple, Mercedes, Coca-Cola e Asics.
Impressionante é também o elenco desta comédia negra, que se vê de uma penada só, e que conta com José Condessa, Helena Caldeira, Rodrigo Tomás, André Leitão, Pêpê Rapazote, Maria João Bastos, Salvador Martinha e Albano Jerónimo nos papéis principais.
A MAGG conversou com parte do elenco e com o realizador sobre a preparação, as gravações, os bastidores e a possibilidade de uma segunda temporada.
1. De que é feita a cocaína? Os atores aspiram mesmo o pó?
Após o veleiro que traz várias toneladas de droga dar à costa, vários habitantes de Rabo de Peixe, entre os quais algumas das personagens principais, passam a consumir avidamente cocaína. A substância aparece várias vezes a ser inalada e Augusto Fraga explica que o pó foi simulado com recurso a "vários produtos, desde vitamina b-12 a soro fisiológico em pó e outros”. O criador da série revela que houve um trabalho de investigação e que os atores testaram “snifar” estes “produtos inócuos”, “mas que mesmo assim são snifados”. “Quando eram quantidades maiores havia sistemas de aspiração escondidos, com tubos. As notas tinham vaselina dentro para agarrar a maior parte do produto, mas provoca sempre uma reação”, explica Augusto Fraga. “Horrível”, “traumatizante”, provocador de “um ataque de alergias enorme”. É assim que Kelly Bailey (Bruna), André Leitão (Carlinhos) e Kelly Bailey (Bruna) descrevem a experiência de inalar o pó que simulava a cocaína.
2. Quanto custou fazer “Rabo de Peixe”?
Muitos exteriores, uma fotografia impressionante (da responsabilidade de André Szankowski, de projetos como “Glória”, “Variações” ou “Terapia”), que mostra paisagens impressionantes da ilha de São Miguel, uma edição ágil, rápida e apetitosa. Uma banda sonora que mistura êxitos portugueses e internacionais do início dos anos 2000, um elenco de luxo e uma produção que, percebe-se à légua, custou muito dinheiro.
"Esta série não está nos padrões do cinema português habitual e talvez por isso não fosse possível fazer em Portugal antes”, Augusto Fraga, realizador
Apesar disso, Augusto Fraga garante que era possível fazer uma série como esta em Portugal sem ter o respaldo (financeiro, entenda-se) da Netflix. "Isto não tem nada que ver com dinheiro. Tem que ver com a forma de pensar, que é ser exigente na escrita, na preparação dos atores, na realização e na montagem a um ponto em que estejamos ao lado de outros projetos internacionais", explica o criador da série. "O dinheiro conta até certo ponto. Há projetos com muito dinheiro em Portugal que não chegam a esse ponto porque não há esse grau de exigência. Eu trabalho há 20 anos, sobretudo fora de Portugal, e o que tentei trazer para este projeto é, sobretudo, exigência. Fazer de verdade, questionar a escrita, questionar um acting".
Augusto Fraga revela que tinham "um orçamento bastante limitado". Embora não saiba precisar os valores, o realizador admite que “precisavam de mais dinheiro para fazer uma série com tranquilidade”. “Decidimos investir esse dinheiro sobretudo na preparação. Na minha, de shooting boards, de guião, de décors, e da equipa toda”. As gravações decorreram “muito rapidamente” após esse período de preparação que foi, nas palavras do realizador, “um verdadeiro bootcamp”. “Era possível fazer esta série sem a plataforma Netflix? Não. Mas não acho que seja por causa do dinheiro. Acho que é por causa do mindset. Esta série não está nos padrões do cinema português habitual e talvez por isso não fosse possível fazer em Portugal antes."
3. Porque é que algumas personagens têm sotaque e outras não?
O uso de calão açoriano, bem como algumas palavras pronunciadas com sotaque, é comum ao longo da série. No entanto, os atores, que encarnam maioritariamente habitantes de Rabo de Peixe (à exceção de Maria Joao Bastos, a Inspectora, que é do continente, e Salvador Martinha, que dá vida ao inspector Francisco, e que é do Faial), não falam com sotaque da ilha de São Miguel. “A série não pretende representar uma realidade da comunidade de Rabo de Peixe. É ficção e conta a história de um rapaz normal a quem uma coisa extraordinária acontece. E esse rapaz vive em Rabo de Peixe. Quando fiz o casting, não perguntei aos atores onde é que eles tinham nascido. O importante era a sua empatia, a capacidade de performance e escolhi os atores, independentemente de onde é que eles eram. E a prova é que há atores de várias zonas do País”, conta Augusto Fraga.
O realizador diz que, ao longo do processo de preparação, e já imersos na realidade daquela vila, “muitas coisas, expressões, gestos, naturalmente ficaram”. “Decidimos que ficassem na série, porque era natural, eram reais e, sobretudo, eram deles. Não eram impostas.”, explica. Fraga diz que a questão da imposição de um sotaque nunca esteve em cima da mesa “para não criar bloqueios na comunicação da série”.
José Condessa explica que, devido ao tempo que passou com a população local, houve expressões que acabaram por entrar no guião. “Há coisas que não me eram naturais dizer de outra forma. Se virem isto no Brasil, na Noruega ou na Coreia, espero que vejam a verdade e não vão saber se o sotaque é de uma forma ou de outra. Nós, acima de tudo, com muito respeito por toda a gente, decidimos seguir o coração. No fundo, é o que a série fala.”
Pepê Rapazote, que já fez parte de séries internacionais como “Narcos”, "Shameless", "Operação Maré Negra" e "La Reina del Sur", explica que a série é feita para o mercado mundial e, por isso, a questão do sotaque ter perdido importância. “O sotaque micaelense é o mais difícil do País, em Rabo de Peixe é ainda mais difícil. Ia haver, com atores do continente, uma grande variação. Mas, sobretudo, não se ia perceber”, realça o ator, que dá vida ao misterioso Uncle Joe. “À exceção dos atores açorianos, que mantiveram o seu sotaque mais levezinho, os do continente continuavam, com uma palavra de São Miguel aqui ou ali”, explica Pepê Rapazote.
4. Houve dificuldades com a população de Rabo de Peixe?
Em junho de 2022, durante as gravações da série, que aconteceram maioritariamente na vila açoriana, uma reportagem do "Público" dava conta de alguma hostilidade e criticas por parte da população local. Quase um ano depois, Augusto Fraga, que é natural dos Açores, diz que, nesse período, “estavam numa espécie de Matrix”. “Estávamos a filmar, com uma recetividade incrível, com a ajuda da população nas ruas, nas casas, nos quintais. Tínhamos connosco pessoas locais a ajudar-nos na produção e, em paralelo, havia outra realidade, nas redes sociais, que era totalmente diferente”, recorda o realizador. “Nunca recebemos outra coisa que não braços e coração aberto em Rabo de Peixe”.
José Condessa passou uma semana sozinho em Rabo de Peixe para preparar a personagem, Eduardo, um filho da terra, pescador, órfão de mãe e que tem de cuidar do pai, que está praticamente cego. "Tive o privilégio de, chegando sozinho, quase ser amparado por aquela comunidade, daí eu também não sentir o que se estava a falar durante a rodagem. Eu jantava em casa das pessoas que eram minhas amigas, acabava as gravações e jogava à bola com os miúdos. Falava com toda a gente que era de fora de Rabo de Peixe de forma até mais distante do que com as que eram, porque foram as pessoas que me acolheram e, para mim, isso é o que fica", salienta o ator de 26 anos.
O elenco não acredita que a população de Rabo de Peixe vá ver de forma negativa o resultado final da série. “Acho que as pessoas vão ficar felizes porque houve uma tentativa grande da nossa parte de os dignificar”, diz André Leitão. “Sinto que isto também é um bocado deles, porque estiveram a ajudar o projeto e as personagens, apesar de não serem inspiradas em pessoas reais, a essência é de lá. Tentámos ao máximo deixá-los orgulhosos de termos feito uma coisa lá”, salienta o ator que dá vida a Carlinhos.
Salvador Martinha acrescenta ainda que existe uma diferença entre o que se diz nas redes sociais e o que acontece na realidade. “No Twitter, sim, mas o mundo não é o Twitter. Nos Açores ninguém está preocupado com isso”. O humorista, que tem nesta série o seu primeiro papel de destaque como ator, na pele do inspetor Francisco, ressalta ainda a importância de distinguir ficção de realidade. “É que senão entraríamos nm universo de cancelamento de histórias. Teríamos que apagar o passado e não poderíamos revisitá-lo. Isto é uma perspectiva, não a definitiva”.
5. Um grupo de amigos que parecem mesmo amigos
José Condessa, Rodrigo Tomás, André Leitão e Helena Caldeira dão vida ao grupo de amigos que tenta usar o tráfico de droga como forma de sair de uma vida de miséria (ao qual, mais tarde na ação, se junta Kelly Bailey, não pelos melhores motivos). Helena Cadeira, que dá vida a Sílvia, revela que “havia uma admiração” entre todos os atores antes de iniciarem as gravações e que o entrosamento se criou devido à semana que passaram juntos. “É um processo para o qual, nem sempre, há tempo. Não que tenhamos tido assim tão tempo, e também houve vontade da nossa parte, no nosso tempo livre, de estarmos juntos, de irmos jantar e de criarmos esta ligação que depois de nota”, conta Kelly Bailey.
André Leitão recorda que o empenho foi tal que chegavam a estar "às quatro da manhã, no hotel, a discutir cenas e a trocar opiniões”. “Só nos sentimos confortáveis nesse nível quando temos confiança com os nossos colegas”, realça o ator que dá vida a Carlinhos.
“Todas as personagens estão naquela idade em que os sonhos da adolescência parecem demasiado longe ou inalcançáveis”, conta Rodrigo Tomás. O ator dá vida a Rafael, uma promessa da equipa de futebol do Santa Clara que, devido a uma lesão, tem de deixar de jogar. “Ele era reconhecido na ilha e até no continente e tem a frustração que não vai ser o jogador que sonhou. A Sílvia tem a frustração de que, provavelmente, nunca vai sair dali e vai ser infeliz como a mãe, o Carlinhos tem a frustração dele, o Eduardo tem os seus sonhos”. Rodrigo Tomás realça ainda a importância do videoclube, local de trabalho de Sílvia e ponto de encontro do grupo de amigos. “São personagens que têm acesso ao que se passa no mundo todo através dos filmes que veem. Isso ainda pode adensar mais a frustração”, enaltece o ator.
José Condessa recorda que, com a ajuda de Ana Padrão, responsável pela direção de atores, o grupo de amigos construiu as respetivas biografias, desde a infância, para dominar toda a história conjunta. “Isso serve as personagens. Não é só dizer que há um amor não correspondido entre o Eduardo e a Sílvia, é muito mais", salienta o ator.
6. Carlinhos, a personagem homossexual de “Rabo de Peixe”
A ação da série passa-se em 2001 e Carlinhos assume-se abertamente como homossexual numa comunidade muito religiosa e conservadora. André Leitão explica que, durante o tempo que passaram na ilha, perceberam que esse aspecto “não era um problema”. “Conversei com a comunidade LGBT de Rabo de Peixe e nunca foi um problema. Se calhar em Lisboa ainda é um problema, se calhar noutros países é um problema, ali não. O que nos surpreendeu", conta o ator.
"Há uma reportagem de uma fotógrafa que foi fotografar em Rabo de Peixe e ficou vidrada numa situação. Veio um barco de 10, 12 pescadores e o mais alto, o mais forte, o mais barbudo, vinha vestido de mulher. O que a intrigou mais foi ser uma normalidade estranha”, conta André Leitão. “Eu desconhecia que assim o era e o Augusto ajudou-me a chegar a essa zona. Mas mais do que o Augusto foram as pessoas de lá, com quem conversei sobre isso”, explica ainda o ator.
7. Quem é o Uncle Joe?
Pepê Rapazote dá vida ao tio da personagem principal. Uncle Joe, um açoriano que emigrou para os Estados Unidos mas que, por motivos menos felizes, é repatriado para São Miguel, vive isolado na ilha. É também a personagem que serve de narrador à história, surgindo em voz off, quer em português quer em inglês. “É uma realidade que sofre alguma discriminação pelo passado. Quando são repatriados, normalmente as razões não são boas. E não esquecer que são sempre pessoas que nunca se chegam a integrar do lado de cá. Viveram toda a vida do lado de lá, são mal recebidas do lado de cá e são peças fora da engrenagem", explica o ator, acrescentando ainda: "O Uncle Joe vê nesta aventura toda uma oportunidade de voltar para o seu país”, conta o ator.
8. O “modo lendário” de Albano Jerónimo e o “elenco fora da caixa”
Questionados pela MAGG sobre quem os impressionou mais do elenco sénior, o elenco mais jovem tem dificuldades em destacar um só desempenho. “O Albano, às tantas, ativou o modo lendário”, recorda Rodrigo Tomás. “O Dinarte [Freitas]!”, dizem Rodrigo, Kelly, Helena e André em uníssono, referindo-se ao ator que dá vida ao Zé do Frango, um verdadeiro serviçal de Arruda (Albano Jerónimo). “Dos atores com quem contracenei, é o que tem o processo que vai mesmo a fundo. Mesmo quando há o ‘corta!’ ele mantinha a personagem, que é muito triste, dá imensa pena, dá vontade de dar colo. Às vezes estávamos à espera de começar, ele não saía daquilo. Só mesmo quando acabasse o dia… era um processo intenso!”, recorda Kelly Bailey.
Helena Caldeira afirma que uma das características mais fortes da série é “o elenco fora da caixa”. “O Augusto e o Bernardo [Almeida, diretor de casting] fizeram um trabalho excecional a escolher este elenco, mesmo na malta mais velha. Acho que somos todos tão diferentes e particulares que isso também faz com que a fasquia suba. Como estávamos todos tão entregues ao projeto e a tentar defender o projeto, todos ajudámos a subir a fasquia… nem sequer vou chamar acting. É outra coisa. É estares presente”, diz a atriz.
Pepê Rapazote, que já trabalhou com quase todos os atores do elenco, elogia a fotografia e a realização de “Rabo de Peixe”. “Os atores são os mesmos e não ficaram 10 vezes melhor por milagre. É essa a diferença aqui. Houve atores com quem já tinha contracenado e disse ‘nunca o vi tão bem como aqui’. Está filmado, e editado e acompanhado de forma diferente. É espantoso”, salienta.
9. O regresso de Salvador Martinha à Netflix, agora como inspector
O espectáculo de stand up comedy "Na Ponta da Língua" foi, em 2016, o primeiro conteúdo português disponibilizado na Netflix. Sete anos depois, o seu protagonista, Salvador Martinha, estreia-se numa série da plataforma de streaming, desta vez como ator. “O que eu gosto mais nesta profissão é ‘esticar-me’, no sentido de desenvolver outras formas. Fiz muito stand up, será que posso ir por aqui um bocado? E não podia estar em melhor companhia”, confessa o ator que dá vida ao inspector Francisco.
O estreante elogia a sua parceira de contracena, Maria Joao Bastos, e também João Pedro Vaz, que dá vida ao Inspector Banha. “Sobretudo quando somos mais novos, temos a mania de ‘eu não falo, eu não sei o quê, não tenho texto’, as pessoas querem palco antes de estarem preparadas. E no caso do Joao Pedro Vaz, é giro ver isso. Poucas falas, está lá tudo. Ele estava só a comer batatas no carro e eu dizia ‘ele está impressionante’. Isso é giro de observar”, salienta o humorista.
10. Haverá uma segunda temporada?
No último episódio, dois dos protagonistas partem para os Estados Unidos e uma mudança radical acontece na vida de Sílvia. Haverá uma segunda temporada? “O objetivo é que haja uma receptividade do público tão grande que tenha sentido fazer uma segunda temporada”, salienta o criador Augusto Fraga. “Era bom, do ponto de vista narrativo”, confessa Rodrigo Tomás, que dá vida a Rafael, personagem que sofre um acontecimento dramático.