"Donos Disto Tudo", "Filho da Mãe", "Nelo e Idália" e "5 Para a Meia-Noite". O que todos estes programas têm em comum é Susana Romana. A guionista de 38 anos, cuja carreira começou nas míticas Produções Fictícias, lançou recentemente o livro “Macaquinhos no Sótão”, no qual compila as crónicas radiofónicas da M80.

Susana Romana explica porque é que nunca fez stand up comedy, brinca com o facto de, no meio do humor, a colocarem no "banco de trás" e confessa o sonho de, um dia, se tornar, a Tina Fey portuguesa. Pelo meio, revela que vai continuar como guionista do "5 Para a Meia-Noite", que está de volta em outubro, e elogia Filomena Cautela.

A sua página de IMDB diz que começou a escrever na série da TVI “Inspetor Max”.
É verdade. Eu tinha acabado de entrar para as Produções Fictícias. Nunca tinha escrito um guião na vida e o Nuno Artur Silva pergunta-me ‘queres escrever?’. E eu disse ‘quero, que giro!’, a achar que aquilo ia ser a coisa mais fácil do mundo porque eu sempre vi imensa imensa televisão. Achei que ia ser cagativo e chorei tanto a escrever o meu primeiro episódio do “Inspetor Max”! Foi quando eu percebi que aquilo era muito mais difícil do que o que estava à espera. Foi horrível mas aprendi muito. Eu digo sempre que o “Inspetor Max”, além de ter pagado todo o recheio da minha primeira casa…

A sério?
Porque na altura ainda se ganhava muito bem a escrever para televisão. Eu apanhei o fim da época das vacas gordas.

Quando diz ganhar muito bem, estamos a falar de quanto?
Estamos a falar de 2000 a 2500 euros por episódio. Escrevia 2 a 3 episódios por mês (risos).

Quanto é que se ganha agora por episódio de série ou novela?
Nunca fiz novela mas agora, num mundo muito lindo, se conseguires ganhar 700 ou 800 euros já é razoavelmente bom. Desceu mesmo muito. O “Inspetor Max” foi a minha tropa. Depois de escrever aquilo sou capaz de escrever tudo. Porque aquilo tinha muitas regras. Como estamos em Portugal, há muitas limitações de produção que depois se traduzem em limitações de guião. Aquilo parecia uma espécie de Tetris maluco. Por episódio, além dos décors fixos, só podíamos usar 2 ou 3 décors e tinham de aparecer pelo menos 5 vezes para serem rentabilizados. Depois, tínhamos uma lista de coisas que o cão fazia. Depois, volta e meia, os miúdos atores não podiam gravar todas as horas. Depois, dois dos atores chatearam-se e não queriam fazer cenas juntos.

Tínhamos de arranjar maneira de eles não se cruzarem nos episódios. Sempre que aquilo estava entregue e fechado, eu achava que era sobre-humana. Mas aprendi muito! E continua a ter audiências, é um fenómeno! O meu primeiro episódio era sobre o roubo de um CD-Rom. Hoje em dia quem é que sabe o que é um CD-Rom? Aquilo era muito difícil mas eu tenho muitas saudades porque, em termos de ginástica mental, aquilo era imbatível.

Lançou recentemente o livro "Macaquinhos no Sótão", uma compilação das suas rubricas nas manhãs da M80. Ao longo dos anos, foi ultrapassando alguns macaquinhos do seu sótão?
Ainda tenho muitos porque os sacanas multiplicam-se. Como escrevo todos os dias e para muitos sítios ao mesmo tempo, eu escrevo e formato o cérebro. Esqueço-me automaticamente das coisas que escrevi. Quando fui ver outra vez os textos para o livro havia muita coisa de que eu já não me lembrava. Gostava de dizer que já os ultrapassei todos mas não. Estão lá quase todos e depois a pessoa vai arranjando mais. Apesar de, no ar, ter uma persona um bocado irritada, são mais as vezes em que acho graça a estas coisas do que as que me irrito. A grande diferença é que estou numa fase da vida em que tento irritar-me menos e rir-me mais.

Macaquinhos no Sótão

Porquê?
Porque, às vezes, sentia que me consumia demasiado com merdinhas. Ter filhos não é tudo na vida mas muda um bocadinho a perspetiva das coisas. Tira-te tempo e tira-te disponibilidade mental. Aquela que tens a sobrar não a queres muito gastar com coisas que não importam. Há coisas que ou já não me irritam ou protejo-me um bocadinho delas. Eu não tenho redes sociais profissionais porque sei que ia ser a pessoa que ia estar às 4 da manhã a discutir com desconhecidos. E eu não quero isso porque já sei como é que eu sou. Então corto o mal pela raiz.

Porquê?
Eu convivo muito bem com o facto de ninguém saber quem é que eu sou.

"Às vezes sinto que, no meio, não sou levada particularmente a sério por não fazer stand up comedy"

Ainda bem que fala sobre isso. A Susana tem uma carreira de 15 anos, as pessoas não conhecem a sua cara mas a sua marca está por todo o lado, em formatos como o “Donos Disto Tudo”.
Das melhores coisas que me acontece é as pessoas mostrarem-me coisas sem saberem que fui eu que as escrevi.

Nunca ponderou fazer stand up comedy?
Não, nunca me puxou muito. Sou muito mais de ver uma boa sitcom. Eu gosto genuinamente de televisão e de bastidores. Mesmo dentro do stand up, não sou aquela pessoa que conhece o gajo da Bielorrússia. Se me perguntar se eu preferia fazer um especial de uma hora no Meo Arena cheio de pessoas ou escrever a minha sitcom, era escrever a minha sitcom. O que eu mais queria era ser a Tina Fey.

Imagine que lhe davam carta branca para isso mas tinha de ser a protagonista. Alinhava?
Alinhava mas nenhum de nós ficava particularmente bem servido (risos)! Eu não tenho medo de palco, não fico bloqueada, não fico nervosa na rádio, num estúdio de televisão, eu não gosto é de me ver.

Mas, em geral, ninguém gosta de se ver.
Acho que há pessoas que não dizem que gostam por pudor. Se vejo, fico demasiado auto-consciente e não consigo fazer as coisas bem. Às vezes sinto que, no meio, não sou levada particularmente a sério por não fazer stand up. É do género, há um puto que faz stand up e foi duas vezes atuar num bar em Alvalade que acha que tem mais carreira do que eu porque ninguém sabe quem é que eu sou e escrevo para outras pessoas. Às vezes, acho que sou metida no banco de trás por não fazer stand up. Isso chateia-me um bocado.

A ideia que tenho sobre o meio humorístico é que, além de pequeno, é muito corporativista e, ao mesmo tempo, misógino. Tem essa perspetiva?
Semi-concordo no corporativismo. Acho que o meio, apesar de muito pequeno, tem fações lá dentro e, dentro da facção, são os melhores amigos.  Acho que o mundo do stand up é mais misógino do que outras maneiras de fazer comédia. O que eu sinto é que isto está a mudar. O “5 Para a Meia-Noite”, por exemplo, na última temporada era escrito por duas mulheres e apresentado por duas mulheres. Não há assim uma escassez só que quer-se perpetuar o discurso de que não há. Dá jeito a algumas pessoas que se perpetue esse discurso. Isso já não é verdade.

Não senti muitas vezes no meu percurso que tivesse sido levada menos a sério por ser mulher mas não lhe consigo garantir que não tenha acontecido. Quando entrei para as Produções Fictícias, eu era muito mais nova do que as outras pessoas. Houve ali uma altura em que não me levavam a sério mas porque eu era a miúda. Não era por ser mulher. Não sei se isto é psicologia barata mas o que eu sinto nas mulheres a fazer humor é que são genuinamente capazes de fazer humor para toda a gente. Durante muito tempo havia a ideia de que as mulheres iam fazer piadas sobre os homens não conseguirem baixar o tampo da sanita. E é isto em loop. Eu tenho 38 anos, a Joana [Marques, das Manhãs da Renascença] deve estar para aí com 35. Eu, a Joana, a Bumba [na Fofinha] somos de uma geração que gosta de humor, de comédia desde sempre numa altura em que só havia homens a fazer comédia.O que sinto é que as mulheres a fazerem e a consumirem humor são menos segmentadas. Os homens estão muito mais obcecados com a história de ‘eu tenho de me reconhecer ali’ e as mulheres não têm tanto isso.

Há pouco referiu que gostava de fazer uma sitcom. Apresentou candidatura ao concurso da Netfix em parceria com o Instituto do Cinema e do Audiovisual?
Concorri (risos)!

E não foi selecionada.
Não se percebe! Não fui porque, aparentemente, não sou diretora de fotografia numa agência de publicidade. O que, por algum motivo é o que, num concurso para guionistas em Portugal, acaba a ganhar.

Há umas semanas, em entrevista ao realizador Vicente Alves do Ó, falávamos sobre a estranheza dos projetos que foram selecionados e também da falta, seja na televisão, seja no cinema, de humor e, em particular, de sitcoms.
Eu tinha muito poucas esperanças de ganhar mas achava que, quando saísse a lista de vencedores, ia reconhecer os meus pares. Não estava à espera de conhecer uma guionista porque as outras pessoas são de outras áreas. Eu já estava à espera de não ganhar porque concorri com uma sitcom e isto é sempre o parente pobre. Os canais não fazem porque é um risco e, por outro lado, os ICA da vida acham que a comédia tem peçonha. Acham que tudo o que não seja levarmos altamente a sério a nossa nostalgia, a nossa saudade e a nossa amargura interior não é muito válido do ponto de vista artístico.

A SIC e a TVI têm por tradição apostar mais em novelas. A RTP, que tem não sei quantas séries em andamento, nenhuma é de humor.
Na primeira leva havia algumas, como o “Boys”, depois a “Solteira e Boa Rapariga”, do Vicente Alves do Ó. Mas é sempre tido que a comédia é muito cara para o sumo que dá.

Mas se for um programa de sketches, já há mais abertura.
Já mas para fazer coisas sobre atualidade. Tudo o que são tentativas de fazer sketches que não são de atualidade não é uma coisa bem vista. Eu fiz parte de um projeto falhado, na RTP, chamado “Breviário Biltre”. Houve uma altura em que todos achámos que íamos ser os próximos Porta dos Fundos.

Houve, na altura dos Gato Fedorento, quase uma Idade do Ouro. O que eles faziam não tinha grande ligação à realidade mas espoletou coisas como "Os Contemporâneos", o "Último a Sair", mas foi quase como um hiato, um período de quase dez anos e que, depois, terminou.
Porque quer-se muito jogar pelo seguro. Os Gato fizeram o que fizeram porque era SIC Radical. Quando aquilo começou a ganhar escala toda gente pensou que aquilo era para todos. Óbvio que, se eles tivessem chegado com aquilo à RTP tal como estava, não tinha comprado. Aquilo nasce num ambiente de liberdade, em que podes fazer o que quiseres porque não há um peso de audiências em cima de ti. Eles faziam um formato que era 100% SIC Radical. Não havia concessões a tentar ser mainstream. Aquilo correu-lhes tão bem que parecia quase uma aposta ganha fazer aquele estilo. Mas foi ali uma fase. Mesmo agora, não sei o que aconteceria se os Gato agora dissessem ‘queremos fazer outra vez uma coisa de humor nonsense’. Não sei se ia correr bem.

A Susana fez parte das Produções Fictícias e do Canal Q. Acha que o canal ainda faz sentido?
É uma treta falar de dinheiro mas, quer queiramos quer não, vamos parar a esse reduto. O Canal Q, em termos de dinheiro e investimento, é uma ínfima parte do que já foi. Acho que o Canal Q se aguenta porque é importante que se vá aguentando, mais que não seja para formar camadas jovens e para as pessoas fazerem experiências. Acho que faz sentido o Canal Q tentar sobreviver à espera de dias melhores.

"A Filomena Cautela é das pessoas que eu conheço que mais trabalha"

No último “5 Para a Meia-Noite”, a Filomena Cautela fez-lhe um grande elogio público. Como é que se sentiu quando ouviu aquelas palavras?
Eu gosto muito da Mena e de trabalhar com ela. A Mena é muito exigente. É, provavelmente, das pessoas que eu conheço que mais trabalha. Eu consigo perceber muito bem porque é que a Mena saiu do "5". Porque aquilo, para ela, era uma experiência de exaustão. Ela rala-se com tudo. Ela percebe muito de televisão, interessa-se por tudo, trabalha loucamente. É por isso que também é uma pessoa muito exigente e é por isso que nem todos os guionistas que passaram pelo "5 Para a Meia Noite" se adaptaram bem a trabalhar com ela. Eu gosto muito de trabalhar com ela. É dureza. Eu respeito muito uma pessoa que te obriga a trabalhar muito quando ela dá mais do que todos.

Depois, acho que ela é muito apaixonada por aquilo que faz e, sem querer vir com este discurso mas vindo, se a Mena fosse homem não havia metade da fama ‘ah, ela é difícil de trabalhar’. Se ela fosse homem, diziam só que ela era - e é - extremamente competente naquilo que faz. A minha posição a escrever o "5 Para a Meia Noite" sempre foi ‘ o programa não é meu’.

Susana Romana 5 Para a meia noite
Susana Romana é guionista do "5 Para a Meia-Noite" créditos: Instagram

Foi um privilégio fazer parte do renascimento do “5 Para a Meia-Noite”? Quando o programa voltou em formato semanal, em 2016, toda a gente o dava como morto.
Sim, o meu marido até diz que a única coisa que me vê a ligar e a ver com gozo é o 5 Para a Meia-Noite. Por isso sim, tenho orgulho no que aquilo era. É um sentido de muita liberdade mas não é um sítio de bandalheira.

Vai continuar no “5 Para a Meia-Noite” ou no novo programa que a Filomena Cautela eventualmente terá?
O “5 Para a meia-Noite” volta em outubro. Eu sou e serei, para já, guionista do "5 Para a Meia-Noite". Eu também sou mulher de muitos ofícios e se algum desses ofícios calhar a ser - e falámos sobre isso muito informalmente - voltar a trabalhar com a senhora dona Cautela, terei todo o gosto.

Como é que imaginaria, em teoria, o novo programa da Filomena Cautela?
Não sei mesmo. Tenho alguma noção, por causa de coisas que sei que ela gostava de fazer no "5". A Filomena tem uma grande cabeça e eu acho que ela tem uma noção muito grande de que o País o Mundo estão a passar por uma altura muito atípica, potencialmente perigosa. Acho que o que ela quererá fazer daqui para a frente será agarrar esse touro pelos cornos. Acho que aquilo que a Mena fizer, daqui para a frente, será um produto daquilo que os tempos são.

O seu filho tem 3 anos. Já escreveu coisas agora das quais ele possa ter vergonha?
Não. O meu filho vai achar que eu sou a pessoa menos cool do mundo porque é isso que os filhos acham dos pais. Não tenho nada a coisa de achar que o meu filho vai ser meu fã. E, até certo ponto, é assim que tem de ser.