Portugal não é um sítio fixe para interrails. Estamos aqui numa ponta do mundo, paredes meias com um país que, tendo em conta o tamanho, quase (quaaaaaase) que nos mete numa província.

Agora imaginem nascer numa das pontas de um País que é, já por si, uma ponta da Europa.

Não só nasci no Minho, como no interior do Alto Minho, nuns incríveis anos 80 que o que tinham de chumaços nos ombros a mais, tinham de menos em autoestradas. Ainda assim, cresci numa família sem fronteiras e que, ainda que se tenha aventurado tarde nos aviões, fez valer aquele Opel Kadete branco até à exaustão.

Portanto, Nacional 2 não era propriamente uma novidade, assim como não o eram algumas das regiões que ela atravessa. Mas só ao fazer os 738 quilómetros de seguida é que ficamos a perceber que neste pequeno retângulo temos a diversidade que alguns países distribuem por muito mais quilómetros quadrados.

Claro que foi preciso que os estrangeiros nos lembrassem que temos uma Route 66 em Portugal para que a esta estrada criada em 1945 ganhasse vida, mas paremos aí com as analogias. Aveiro não é a Veneza portuguesa nem o Burgau é Santorini.

Para relembrar o que Portugal tem de mais incrível, começamos a viagem em Faro, com os olhos postos no destino: Chaves. Trocámos a volta à rota que tem o quilómetro zero no norte, para fazermos os quilómetros em contas de subtrair.

Nacional 2
Este é o passaporte que serve para colecionar carimbos durante o percurso.

Mota é a forma preferida de viajar para quem gosta de sentir a estrada — e que aqui vai da curva contra curva às retas infinitas — mas veem-se também muitos ciclistas, poucas pessoas a pé e algumas famílias de carro. A MAGG lançou-se à aventura de não só fazer a Nacional em sete dias, como não sair dela sequer para dormir. Para isso muniu-se de uma autocaravana da Indie Campers, que oferece os metros quadrados suficientes para viver a aventura de conduzir, dormir, cozinhar e tomar banho sem que bata a saudade de um quarto de hotel. É que por muitos cinco estrelas que por aí andem, nada bate o acordar e, ainda debaixo do edredon, abrir a porta traseira e dar de caras com o Douro. Ou a barragem de Montargil. Ou a serra da Sertã. Dá para ver que foi incrível, certo? Leiam o resto e vão ver que sim.

Dia 1 Faro — Ameixial (51km)

Onze da manhã. Era essa a hora marcada para a Indie Campers nos entregar a chave daquela que seria a nossa casa na próxima semana. Calhou-nos a Active, pensada para quatro pessoas, uma vez que conta com duas camas e dois lugares extra, além do de condutor e passageiro.

Tudo funciona em tetris numa espaço pequeno e, por isso, a mesa interior é desmontável, a sanita arruma-se no chuveiro, o frigorífico funciona numa gaveta e todo o espaço livre é aproveitado para arrumação.

Em três tempos, as mochilas esvaziam-se, a roupa está arrumada e, depois de uma paragem estratégica, até o frigorífico está abastecido. Mas não podemos deixar Faro sem um carimbo, tanto no passaporte como no nosso estômago.

Sabendo de antemão que as opções vegetarianas são escassas no interior do País, escolhemos almoçar no Vegan Box, um restaurante familiar que sobreviveu aos meses de pandemia, para continuar a servir as invenções das irmãs Beatriz e Bruna. A primeira: o queijo de tremoço que nos chega de entrada. Depois, é olhar para a montra: pastéis de nata, bolas de Berlim, pudins, waffles, rissóis, croquetes e empadas. Tudo sem qualquer ingrediente de origem animal.

De consciência tranquila e estômago carimbado, falta a estampa que prova que lá estivemos. É que à semelhança do que acontece quando se faz o caminho de Santiago, também a Nacional 2 tem um passaporte ao qual se podem ir juntando carimbos ao longo do caminho. Além disso, dão noção da rota a seguir e de quais as paragens obrigatórias.

Pode ser comprado em vários pontos por onde passa a estrada e, em Faro, estão disponíveis no Posto de Turismo ou na Câmara Municial. Problema? É sábado à hora de almoço e está tudo fechado. Aliás, esse é um problema que detetamos durante a viagem: quase todos os pontos onde é possível carimbar o passaporte são institucionais e, por isso, abertos por tempo limitado. Bem mais interessante era ter mais restaurantes e hotéis com o carimbo, ajudava ao negócio e aos viajantes que querem acabar de passaporte cheio.

Lá conseguimos um carimbo no Museu Municipal de Faro, uma foto no quilómetro 738 e seguimos caminho.

Passamos em Loulé para espreitar o mercado, em Estói para uma cerveja e em São Brás de Alportel, para apreciar as vistas sobre a serra. A praia já ficou para trás e segue-se uma estrada que atravessa o Caldeirão, em subidas que quase fazem duvidar que o Alentejo está quase ali.

Mas é ainda no Algarve que estamos quando à saída do Ameixial vemos um oásis: numa curva apertada à direita está a Fonte da Seiceira, um praia fluvial criada a pedido da população, que votou no projeto no Orçamento Participativo de 2014.

Mergulhámos no tanque e sentamo-nos na esplanada para mais uma cerveja — é Algarve e é verão, perdoem-nos os excessos. Percebemos logo ali que a Idália e o Zé Alberto tinham acabado de inaugurar o café que ainda nem tem nome, mas que servirá para receber quem lá passa. "Por pouco não apanhava o ensopado de borrego que fiz para toda a gente", conta Idália. Mas não faz mal, já vemos Zé Alberto a chegar. "Estas são por conta da casa", diz-nos, enquanto pousa duas imperiais e um prato de tremoços na mesa.

Olhamos em volta e pensamos: é aqui que vamos dormir. Vantagens de quem viaja em autocaravana.

Dia 2 Ameixial — Odivelas (113 km)

O dia amanheceu nublado, mas assim que veio sol, veio em força. Não é de admirar, por isso, que este dia tenho sido uma espécie de travessia no deserto, não só pelas temperaturas, mas pela falta de gente na rua.

Ainda assim, fomos fortes e picámos o ponto em todas as terras. Almodôvar, Castro Verde e Aljustrel. Nesta última paragem, estacionamos a autocaravana o mais alto possível para almoçar com um cenário bonito, mas ainda assim não nos livramos de uns degraus até ao ponto mais alto, daqueles com vista sem fim sobre um Alentejo já sem montanhas.

A caminho de Ferreira do Alentejo, a estrada pinta-se girassóis à esquerda e à direita, mesmo a dar as boas vindas a uma terra de gente simpática. Aqui descobrimos um café com carimbo — yey! — e depois de um café e um Corneto, o casal Palma deixa o cunho no passaporte e pergunta: "Podemos escrever uma coisinha?". Pois claro. "Em Ferreira do Alentejo/Estamos no Bar Jardim/Somos uma equipa trabalhadora/Sempre pensando em si".

Depois desta onda de amor, não podíamos ir muito longe. Com uma paragem estratégica num dos postos de abastecimento Prio que não deixam ninguém ficar apeado ao longo desta estrada mítica, foram só 20 minutos até chegar à Barragem de Odivelas, onde mergulhámos, jantámos e vimos o primeiro de muitos céus que de tantas estrelas parece que vai desabar.

Dia 3 Odivelas — Montargil (126km)

Autocaravana
Esta autocaravana da Indie Campers é um modelo pensado para quatro pessoas.

Estamos numa autocaravana, mas não tenham pena de nós. No kit de boas vindas vinha lençóis, almofadas e edredon, um kit de utensílios de cozinha, um fogão, cadeiras e mesa para o exterior. Viva a liberdade de poder montar restaurante com vista em qualquer lugar.

E é ainda com vista para a barragem de Odivelas que preparamos umas papas de aveia, a aquecer o corpo para mais um dia com termómetros a bater ali os 40 graus.

Primeira paragem: Torrão, uma vila atravessada a meio pela Nacional 2, o que agora é visto como uma benção. "No fim de semana dos feriado de junho tivemos cá mais de mil pessoas. Veja lá que a junta fecha às 12h30, e eram 14h30 quando consegui parar para almoçar", conta à MAGG Hélder Montinho, o presidente. De tão feliz pelo destaque no mapa, Hélder carimba o passaporte, oferece autocolantes, um diploma e não saímos de lá sem uma foto em frente ao marco que mandou montar em frente à junta e que diz que estamos no quilómetro 565.

Passamos ainda por Alcáçovas e Montemor-o-Novo e depois de uma boa experiência a dormir à beira de barragens, vamos à dobradinha, desta vez na de Montargil.

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Dia 4 Montargil — Pedrógão Pequeno (253 km)

Ao quarto dia acordámos às 6h30 da manhã, e não culpamos a luz do dia. É que depois de ver o cenário assim que afastamos a cortina do fundo da caravana é de deixar qualquer um alerta. A neblina e a condensação, criam uma espécie de nuvem em cima da água e a banda sonora é do mais natural que se possa imaginar. Na tarde anterior tínhamos visto uma águia a sobrevoar-nos, por isso podem imaginar.

O que talvez não imaginem é que em todos os sítios que escolhemos para estacionar, antes de ter este cenário bonito, as vistas eram deprimentes. Fraldas, papel higiénico, latas de sumo, palhinhas, sacos de plástico, pacotes de batatas fritas. Tudo isto deixado por quem procura estes espaços para um refúgio. Lógica? Zero. Solução? Levar sacos extra e apanhar o lixo que, ainda que tenha sido deixado por outros, é meu também.

Já desabafámos, podemos continuar. E são mesmo o nome das terras pelas quais passamos que voltam a dar vontade de rir. Cansado, Chaminé, Água todo o Ano. Viva o Alentejo e os seus nomes mais do que originais. Mas espera, estamos no quarto dia e ainda não saímos do Alentejo? Ainda dizem que Portugal é pequeno.

Demos folga ao campingaz e decidimos parar em Abrantes para uma refeição no Val, um restaurante que junta vegetarianos e não vegetarianos à mesa. Paula, a gerente e cozinheira, diz que não faz diferença na forma de cozinhar e, por isso, no mesmo dia, há bifes de cebolada e seitan de cebolada. Troca a proteína e a festa é de todos.

Mas antes de seguirmos, uma subida ao castelo, onde descobrimos o Alcaide, uma das esplanadas mais bem situadas de todo o percurso.

O dia está mesmo para cenários bonitos e que o diga o Sardoal, a vila que nos ficou como uma das preferidas. É uma espécie de mini Óbidos com casinhas brancas e amarelas e flores a crescerem-lhe nas paredes. É daí que nos afastamos até à praia do Penedo Furado, antes de passar por Vila de Rei, que marca o centro do País e a metade da nossa viagem.

E adivinhem onde fomos dormir? Se pensou numa barragem, acaba de ganhar uma noite extra na do Cabril, com a Serra da Lousã mesmo ao lado.

Dia 5 Pedrógão Pequeno — Santa Comba Dão (87 km)

Primeira paragem do dia é feita em Pedrógrão Grande, para ver aquela terra com outros olhos, aqueles que já não sentem medo do fogo.

A seguir, Góis, onde íamos só parar para mais um carimbo. Mas aquela praia fluvial chamou-nos para umas horas de descanso e, porque não estamos numa corrida, respondemos que sim.

Vários mergulhos depois, é hora de seguir até Vila Nova de Poiares, onde encontramos o primeiro espaço que soube verdadeiramente reiventar-se para aproveitar o auge da Nacional 2. No Café Central, há café, cervejas e snacks, como era de se esperar, mas também imans, T-Shirts, canecas, capacetes e até cerveja artesanal com o logo alusivo à estrada. Rogério Lima, o dono é uma espécie de guia pela região e, à falta de informação a quem chega, é ele que direciona os turistas para os melhores restaurantes de chanfana. Mas se parar lá à quinta ou sexta-feira, nem precisa de ir a mais lado nenhum. É que são os dias que Rogério recebe os leitões e prepara as famosas sandes feitas com pão caseiro.

Dali seguimos para Penacova, sítio que desvalorizamos à partida, por não nos parecer estimulante, mas que nos responde com uma chapada de paisagem daquelas de tirar o fôlego. Para a apreciar ao fim do dia, vá por nós e sente-se no Café Turismo. De nada.

A partir daí a estrada fica, pela primeira vez, confusa. A atual nacional passa ao lado do antigo troço, e o atual confunde-se com o IP. Somos obrigados a desistir de Mortágua e seguir diretos para Santa Comba Dão, onde nos espera uma noite diferente.

É que neste dia, decidimos dar descanso à autocaravana e dormir numa cama com mais de 1,80 metros de comprimento. Para isso, escolhemos uma das Casas com Estória, que Ana Pais de Sousa e os irmãos reergueram no Largo do Rossio, que em tempos foi o centro da cidade.

Com um bom gosto irrepreensível, conseguiram juntar a modernidade das linhas simples com a história que aquelas paredes de pedra contam. É por isso que cada casa tem o nome de um dos antigos habitantes do Largo, que deixaram de herança às casas alguns dos seus objetos de eleição. Na casa do Sr. Dionísio, a nossa, tem a sua bicicleta e a vitrine de ferramentas com que as arranjava. Mas se for para a casa da Sra. Júlia, vai encontrar uma série de ferros antigos, já que engomar era a sua arte.

Lá dentro há fruta e vinho a dar-nos as boas vindas e cá fora a D. Leonor e o Sr. João, que do alto dos seus oitenta e muitos anos ainda vivem no largo e são hoje conhecidos como os "guardiões do Rossio".

"Vou acender aqui a lareira que isto à noite fica frio". Ainda a arfar do calor que apanhamos pelo caminho, custa-nos acreditar naquela perspetiva. Mas é óbvio que Leonor tem razão e, umas horas mais tarde, que bem que nos sabe aquele copo tinto do Dão em frente da lenha que pôs à arder.

Casas Com Estória. Nestas casas típicas do Dão vai sentir-se como na casa da avó
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Dia 6 Santa Comba Dão — Régua (128 km)

Casas com Estória
Casas com Estória, em Santa Comba Dão créditos: Copyright 2020. All rights reserved.

Oito da manhã, e Leonor já fez das suas. À porta, num saquinho de pano, já lá estão seis carcaças, das mais simples que pode imaginar. E que saudades de um pão sem sementes, espeltas, maltes ou chia. Um belo pão com manteiga e compota, fruta e um café acabado de fazer. É isto, mais nada.

Por sugestão de Ana, que conhece a zona onde cresceu como ninguém, decidimos percorrer parte da ecopista do Dão de bicicleta, com direito a mergulho numa praia fluvial sem ninguém e tudo. Ok, podemos voltar à estrada.

Tondela é a paragem seguinte, e logo a seguir Viseu e Castro D'Aire. O dia já vai longo quando chegámos a Lamego e foi pena. Aquela terra merecia mais tempo. Ainda assim, deu para um passeio no centro histórico e uma subida ao Santuário que, em tempos de Covid, serve de pista de treino para vários atletas. afinal, são 686 degraus.

Ponderamos dormir perto do santuário e ainda foi por lá que improvisamos um jantar na autocaravana, mas depois de tantas noites a acordar junto à água, não queríamos que a última noite sobre rodas fosse diferente e rumámos à Regua.

Dia 7 Régua — Chaves (91km)

Regra número um para quem viaja de autocaravana: fazer download da aplicação Park4Night, uma espécie de zomato do autocaravanismo. O utilizadores indicam quais os melhores sítios para parar e foi precisamente assim que descobrimos um estacionamento com vista para o Douro, Douro esse que nos deu os bons dias naquele que era o último dia de viagem.

Manhãs calmas, tardes de rio e muitas esplanadas ditaram o inevitável: aquele último dia ia ser corrido.

Régua, Santa Marta de Penaguião, Vila Real, Vila Pouca de Aguiar e, 738 quilómetros depois, Chaves. A rotunda com o marco de pedra a assinalar o quilómetro zero é já paragem obrigatória para todos os que rumam àquela cidade.

Claro que ao lado já abriu uma loja que soube aproveitar o sucesso da rota e é no Templo N2 que encontra todo o merchandising para quem está a começar ou acabou ali a viagem.

O Íman para o frigorífico já cá canta, mas seguindo a dica dos locais e dos guias, decidimos acabar esta viagem como a começamos: à aventura.

Entramos na Pensão Flávia sem saber o que íamos comer nem quanto íamos pagar. É assim que funciona este restaurante que, sem menu fixo, vai trazendo para a mesa frigideiras cheias de petiscos. Salada russa, salpicão, espargos, mexilhões, camarão, feijoada, ervilhas com chouriço, salada de bacalhau e grão, legumes grelhados. Sim, isto são as entradas. De prato principal há naco com batata frita e salada ou uns cuscuz com legumes e frutos secos. Não sai de lá sem um come e cala-te, uma sobremesa à base de nata e bolacha, mais um licor e um café.

Pensão Flávia
Pensão Flávia, o restaurante sem menu e sem preço fixo. créditos: Copyright 2020. All rights reserved.

Sérgio Seixas, o gerente garante que se ainda tem o restaurante aberto é porque isto do não exigir um preço fixo funciona. Já teve desde pessoas que saem sem pagar àquelas que deixam um valor que cobrem todas essas falhas.

As histórias contam-se nas paredes cheias de mensagens e nas aventuras que Sérgio lança em catadupa. E nós ficamos a ouvir, a adiar o inevitável.

A Nacional 2 acaba ali, mas antes nos metermos numa autoestrada para voltar a casa, mais uma volta na rotunda do quilómetro zero. Vamos de novo?

* A MAGG viajou com o apoio da Indie Campers e da Prio

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