Lembram-se quando comer era algo simples? Sem glútens, lactoses, shots de spirulina ou abacates em cima de pão tostado com 30 mil sementes. Sem julgamentos, culpas, medos de engordar ou de ficar um bocadinho menos saudável só porque em vez de tofu escolhemos carne de porco à alentejana para o almoço. Lembram-se? Nós já temos alguma dificuldade.
Daí que no meio de tanta categorias — vegano, paleo, flexitariano, raw — e de tantos estudos que, ora num dia nos dizem que o ovo provoca colesterol, ora no outro já só a gema é que faz mal, e ainda no outro deves comer pelo menos dois por dia, talvez seja boa ideia parar. Parar simplesmente. E comer. Mas comer de forma consciente, e é aí que entra a nova palavra mágica do mundo do bem estar: mindfulness.
Já sabemos que se trata do aqui e do agora, do focar as atenções no momento em vez de estar a pensar na lista das compras ou nas horas a que temos que acordar no dia seguinte. Mas e quando este conceito entra no mundo da alimentação, falamos exatamente de quê?
“Para mim é comer em pleno, é entregar-me à experiência de coração aberto e quebrar com toda a carga nutricional que conheço. Alimento como alimento. Alimento para me nutrir”. A definição é de Cláudia Fonseca, coach de nutrição holística e a cara escondida atrás do podcast/página de facebook/instagram/blog Officinalis, que utiliza para promover uma vida mais saudável, feita também através da alimentação, mas não só. “Somos corpo, mente e alma”, lembra e, talvez por isso, nem sempre a comunicação feita apenas online seja suficiente. Assim que Cláudia promoveu um brunch que prometia ser de boa comida e pensado principalmente para mudar o mindset em relação à alimentação, clicamos imediatamente no botão do “vou”.
Foi um longo caminho até aqui
Cláudia recebe o grupo de 26 mulheres numa longa mesa posta no Lisbon Cooking Academy. Tem uma figura alta, magra, fala com um tom calmo, seguro de si sem o exagero do “eu é que sei”. Até porque, basta começar a contar a sua história para perceber que o caminho de Cláudia ainda é o de aprender.
“Crescer no seio de uma família de mulheres bonitas não foi fácil”, admite, principalmente quando não se encaixava nesse perfil e preferia um estilo mais descontraído, sem maquilhagem ou roupas da moda. E vivia bem assim, não fossem as constantes comparações. “Foi pelos outros que comecei a fazer dieta, não por mim”.
Como traçou o objetivo nos 50 quilos, aproveitou um desgosto amoroso aos 22 anos para os atingir. “Quando lá cheguei percebi que já não chegava, queria ainda mais”, explica.
Perdeu demasiado peso até perceber que o número da balança não era tudo. A trabalhar como assistente de bordo nos Emirados Árabes Unidos, chegou à conclusão que tinha que comer melhor para aguentar as longas jornadas de trabalho. “Para terem noção da minha falta de noção" brinca, "cozinhar era juntar natas e cogumelos a tudo para dar sabor”.
Tirou cursos de cozinha, de health coach, tornou-se vegetariana, mas nem assim a relação com a comida melhorou. “Já não era refém das calorias, ou dos quilos que queria perder, mas era refém da alface, do abacate, do limão”, admite, não se permitindo comer nada fora do que fugia ao seu controlo. "Vivia numa bolha só minha e isso não podia continuar".
Como para ajudar os outros tinha primeiro que alinhar o seu próprio mundo, decidiu que, a partir dali, comer seria um ato positivo e não um momento de culpas ou arrependimentos.
“Comecei a escrever um diário alimentar no qual anotava não tanto o que comia, mas como me sentia ao comer aqueles alimentos”, refere. Percebeu aquilo que gostava e que não gostava, aquilo que a fazia sentir bem ou o que lhe dava digestões pesadas e, principalmente, passou a valorizar a refeição em si, sem telemóveis, televisão ligada ou outras distrações. “Está provado que quando comemos à pressa não ficamos tão saciados nem os nutrientes são devidamente absorvidos”.
É neste momento que tiramos o som ao telemóvel, escondêmo-lo sorrateiramente na carteira e tentamos pensar que aquele sábado não tem horários.
Passemos então à comida
Podemos dizer que o mindfulness é imediato, ou não tivéssemos que apelar ao autocontrole para não atacar a mesa de cores que nos foi posta. Há húmus de tomate seco, húmus de beterraba, iogurte, granola, pão de banana, cratera de sementes, saladas com laranja, tofu mexido, pão de fermentação natural, bolinhas energéticas e geleia feita com chia e frutos vermelhos.
Mas antes de mais, Cláudia pede que bebamos o shot cor de laranja que está à frente de cada lugar. Estamos habituados a que shot seja sinónimo de cara feia depois da entrada rápida de álcool no organismo. Mas aqui não é assim que se processa. “Vamos beber devagarinho, mastigar — sim, porque os líquidos também se mastigam — e perceber o que temos dentro do copo”, pede Cláudia. Depois de o liquido cor de laranja nos passar pela boca começam a surgir os palpites. Laranja, curcuma e pimenta caiena são os vencedores e são também eles que preparam as papilas gustativas para o que aí vem.
Cláudia dá o mote a que todos se levantem para encher — com moderação, claro — o prato com aquilo que parece mais apelativo. O nosso leva húmus de tomate seco, tofu mexido, cenoura algarvia, crackers e pão de azeitonas, mas basta olhar para os pratos vizinhos para perceber que há gostos para todas as opções do menu. E é aí que começam os comentários. “Odeio a textura do tofu”, comenta-se de um lado. “Desde que descobri o abacate que já não passo sem ele”, ouve-se do outro. Cláudia aproveita para dar uma achega: “Atenção à forma como se fala da comida. A palavra ‘odeio’ ou usar expressões como ‘estou morto de fome’ são muito fortes. Prefiram uma linguagem mais pacífica, ponham mais amor no ato de comer”. Eu, por mim, dava beijinhos na boca a este húmus de tomate seco, tal é o amor que sinto por ele.
Quebrar tabus alimentares
Para abrir a mente ao mindfuleating, há que fechar o portátil, desligar a televisão e tirar o som ao telemóvel. “O ideal é criar um ritual à mesa. Pode ser com respirações, cristais, velas, ou simplesmente parar por uns segundos para que nos centremos no momento da refeição”, explica Cláudia.
Já temos as escolhas certas no prato, já parámos para respirar e, agora, todo o nosso ser está focado nas calorias positivas que vamos ingerir. Passamos no teste? Not so fast. Ainda há que aprender a mastigar, “pelo menos dez vezes”, avisa Cláudia. Mas mais do que um número o que importa é comer devagar e que nessa mastigação se sintam as texturas, os alimentos e até os condimentos.
Eu, como sou má a matemática, sugiro o meu truque: comer de pauzinhos e juntar alimentos crus que obriguem a mais tempo de mastigação. “Boa dica!”, exclama Cláudia e nós pensamos “isto do mindfulness está no papo”. Até que aparece o desafio final.
Depois de uma barrigada de comida saudável, já só tínhamos guardado espaço para um café de remate final. Mas eis senão quando Cláudia põe na mesa duas travessas com gigantes retângulos de brownie, sem ovos nem farinhas refinadas, mas com — e aviso já que a próxima palavra poda chocar os mais sensíveis — açúcar.
“Temos que nos permitir comer até aquilo que consideramos proibido. Não quer dizer que falhamos, quer dizer apenas que quando o fazemos estamos a nutrir uma sensação de prazer”, explica Cláudia.
Há quem nem tenha dado tempo a que Cláudia acabasse de falar para se atirar ao snack guloso e aquelas que se desculparam com os petiscos anteriores para passarem a hora da sobremesa. Eu fiquei-me na metade, literalmente. Cortei a minha meia fatia, comi, gostei, mas não deixei de pensar que sem o espicaçar da Cláudia, talvez tivesse ficado pelo grupo do “ah não obrigada, já estou cheia”.
Mas consegui, assim como também consegui arrastar os meus colegas de trabalho da frente do computador na hora do almoço e mantenho-me na luta para que não levem os telemóveis para a mesa da refeição. O pior é que tenho um que usa smartwatch e, mesmo que tente, ainda não consegui que o saborear de uma salada de quinoa seja mais apelativo do que um pulso a vibrar com mais um like no Facebook. Cláudia, para quando um mindful offline?