Chocolate negro depois da refeição, durante a tarde ou antes de dormir é muitas vezes o maior consolo de quem está a tentar emagrecer. Muitas nutricionistas recomendam-no e as marcas vendem cada vez mais soluções com alto teor de cacau, naturais, biológicas, orgânicas.
Além de bem mais aconselhado do que o de leite — que leva muito açúcar e gordura — o chocolate negro já foi associado, em diversos e diferentes estudos, a muitos efeitos positivos na saúde. Mas levantam-se várias questões. Será realmente capaz de tudo aquilo que dizem? E serão os estudos suficientemente sólidos para que possamos comer chocolate negro confiantes em todas as suas propriedades?
De acordo com um artigo publicado no The Guardian, sustentado na opinião de uma das maiores especialistas sobre o assunto, as respostas são não e não. Mas vamos por partes.
Há mesmo provas sustentadas sobre os benefícios do chocolate?
Segundo um estudo publicado pelo jornal cientifico BMJ, em 2017, o chocolate poderá diminuir os riscos de arritmia cardíaca. Outro, de 2011, publicado no Journal of the American Collage, indicou que o consumo deste produto poderia vir a reduzir o risco de AVC em mulheres. Em 2016, o chocolate foi associado à proteção das capacidades cognitivas em pessoas com ou mais de 65 anos. O The Guardian afirmou que o composto antioxidante do cacau, os flavonóides, foram ligados à melhoria da pressão arterial, da sensibilidade à insulina ou do perfil lipídico, o que permitiu afirmar que se trata de produto bom para prevenir a diabetes ou as doenças cardiovasculares.
Todos estes estudos foram notícia. Foram publicados pela comunicação social e altamente partilhados ou comentados nas redes sociais por quem adora chocolate. Mas há um lado perverso nesta avalanche cientifica. De acordo com o artigo do jornal inglês, vários fatores contribuíram para a popularidade — por vezes sem fundamento — deste alimento que, por muitos, deixou de ser visto como uma guloseima para se transformar num ingrediente recomendado numa dieta saudável.
Estudos científicos financiados pelas indústria alimentar
Com o crescimento da tendência da alimentação saudável, a venda dos chocolates "estagnou", de acordo com o The Guardian. Para solucionar o problema, as marcas começaram a disponibilizar soluções mais saudáveis. Em simultâneo, começam a aparecer cada vez mais estudos. Coincidência? Talvez não.
Para o The Guardian, "os fundamentos" para a popularidade do produto "assentam no facto de os produtores de marcas de chocolate terem financiado estudos científicos de nutrição, que foram cuidadosamente enquadrados, interpretados e seletivamente publicados para lançarem os produtos.”
Marion Nestle, uma das mais reconhecidas investigadoras de nutrição do mundo, professora na New York University e autora do livro “Unsavory Truth: How Food Companies Skew the Science of What We Eat”, diz ao The Guardian que o problema está nos dois campos: na investigação que nasce do financiamento das grandes empresas, mas também dos próprios jornalistas que ignoram e não confirmam.
“A investigação financiada pela indústria tende a elaborar questões que vão ocasionar resultados desejados, e tende a ser interpretada da forma que for mais benéfica para os seus interesses”, diz a investigadora.
As próprias investigações tendem a mostrar resultados positivos quando são financiados por empresas da indústria alimentar. Segundo o The Guardian, um grupo de investigadores americanos, que recebeu 206 estudos referentes a refrigerantes, sumos e leite, concluiu que aqueles que recebiam dinheiro tinham seis vezes maior probabilidade de chegar a resultados favoráveis ou neutros.
Sobre isto, Marion Nestle diz que “os investigadores envolvidos sentem que isto [o financiamento] não vai afetar a integridade dos seus trabalhos. Mas a investigação sobre o financiamento da indústria farmacêutica mostra que a influência é geralmente inconsciente, não intencional e não reconhecida."
Os flavonóides
Muitas das teorias sobre os benefícios do chocolate nascem da sua riqueza em flavonóides, um composto antioxidante presente no cacau. Mas nenhum alimento é constituído por apenas um ingrediente, sobretudo quando é processado, como no caso do chocolate. O chocolate tem flavonóides, sim, mas na proporção em que o cacau está presente. E, além deste, tem outros ingredientes que poderão interferir com a eficácia do antioxidante.
Segundo o jornal britânico, no estudo que concluiu que o cacau faria bem à pressão arterial foram dados, a cada participante, 670 miligramas deste composto, uma quantidade enorme face à que se ingere quando se come um chocolate. “Alguém precisaria de consumir cerca de 12 barras de 100 gramas de chocolate negro ou 50 barras de chocolate de leite para chegar a esta quantidade”, explica o jornalista Nic Fleming.
Omissão de resultados
Outra questão no universo da investigação é relativa aos resultados que são e não são divulgados. Tanto os jornais científicos como os próprios media preferem, como diz o The Guardian, resultados positivos e que mostrem bons efeitos, o que origina a omissão de resultados inconclusivos e sem prova.
A exclusão de resultados é problemática e origina confusão quando as investigações partem da observação de meta-análises, que reúnem os resultados de estudos anteriores sobre um determinado tema. Foi esta a metodologia utilizada na investigação que veio afirmar que o chocolate faz bem à pressão sanguínea e saúde cardiovascular.
Duane Mellor, nutricionista na Coventry University, em Inglaterra, diz ao jornal britânico que “é mesmo muito difícil publicar um estudo que não tenha encontrado nada.”
Os participantes dos estudos
“Depois, ao contrário do que acontece nos testes com medicamentos, há o problema de os participantes de um estudo referente a chocolate saberem se estão a receber o produto ou o placebo”, diz o “The Guardian.
Segundo esta lógica, o gosto pelo produto pode condicionar o seu efeito, levando as cobaias da investigação a acreditar que está a surtir aquilo que é o desejado, como “estarem mais relaxados, aumentarem os níveis de endorfinas e neurotransmissores, estimulando benefícios fisiológicos a curto prazo.”
Há mais dois obstáculos: por um lado, estudos de pouca duração e com poucas pessoas, por outro, as "dificuldades nutricionais que os cientistas têm em separar os efeitos de consumir um determinado alimento ou nutriente do resto da dieta e de outras interações do corpo."
O papel dos media
Chegamos ao veículo que permite a disseminação destes resultados. Apesar do financiamento das marcas, da omissão e de uma potencial manipulação de resultados, as conclusões dos estudos só chegam ao alvo — que é quem compra os produtos e de quem as marcas dependem— através dos meios de comunicação social.
O The Guardian recorda o episódio em que o International Archives of Internal Medicine "concordou em publicar precipitadamente um relatório que tinha recebido 24 horas antes" sobre os efeitos do cacau na perda de peso. O biólogo da Harvard University e jornalista cientifico John Bahannon escreveram um comunicado de imprensa propositado para ver onde é que a polémica ia parar. Foi uma questão de dias para ser publicado em mais de 20 países.
"Fiquei muito envergonhado pelos meus colegas", diz ao jornal britânico. "São pessoas que regurgitam pedaços inteiros de comunicados de imprensa e quase nunca recorrem a fontes externas. No meu livro, isso nem é jornalismo. É apenas uma extensão do comunicado de imprensa."