O torneio de boxe feminino destes Jogos Olímpicos de Paris está a ser alvo de polémica. Na primeira ronda da categoria -66 kg, que aconteceu esta quinta-feira, 1 de agosto, Imane Khelif, pugilista argelina de 25 anos, competiu com a italiana Angela Carini, que desistiu do combate ao fim de uns segundos devido a um soco da colega, que considerou ser demasiado forte. E muito se tem dito da identidade de género da atleta africana.
A italiana decidiu abandonar o combate, em lágrimas, apenas 46 segundos depois de este ter começado – e depois de um golpe que fez com que fraturasse o nariz. Quando Imane Khelif foi declarada vencedora, Angela Carini ajoelhou-se no ringue e começou a chorar desalmadamente. Enquanto isso, afirmava, aos gritos: “Não é justo”. "Doeu muito, procurei o meu treinador e com maturidade e coragem disse basta", disse, no rescaldo da prova, citada pela SIC Notícias.
O que está em causa, afinal? Bem, trocado por miúdos, tem-se dito que a pugilista africana é, na verdade, um homem e que está a competir na categoria errada, estando sempre em vantagem em relação às outras atletas. O debate chegou até a Portugal, com Rita Matias, deputada do Chega, a recorrer às redes sociais para dizer que a atleta é um "homem biológico", um "homem trans" ou um "homem que bate em mulheres". Mas não é bem assim.
Imane Khelif tem apenas elevados níveis de testosterona, hormona que as mulheres também produzem naturalmente, uma vez que não é exclusiva ao sexo masculino. Uma mulher pode ter, inclusive, níveis altos de testosterona, uma condição conhecida como hiperandrogenismo – e isso não faz dela um homem. Além disso, ao contrário do que se tem especulado, nem sequer há dados que comprovem que a atleta é intersexo e que nasceu com os cromossomas XY, tipicamente masculinos, diz o "The Independent".
O que se sabe é que já tinha sido anteriormente reprovada em testes de género, aquando de um evento da Associação Internacional de Boxe (IBA). Depois de sair vencedora de um combate contra a pugilista mexicana Brianda Cruz, Imane Khelif foi submetida a testes genéticos que confirmaram que os seus níveis de testosterona não cumpriam os critérios de elegibilidade do torneio.
Foi nessa altura que começaram a surgir os rumores de que a argelina seria intersexo. Isto porque Umar Kremlev, o presidente da IBA, disse que, após terem realizado exames à atleta, ficou comprovado que possuía cromossomas XY – mas nunca foram divulgados detalhes sobre esses exames, de acordo com o "Público". Seja como for, este ano, foi autorizada pelo Comité Olímpico Internacional a participar nos Jogos Olímpicos, em Paris.
O que é certo é que Imane Khelif é uma mulher cis (uma mulher que se identifica com o género que lhe foi designado à nascença, diga-se), tendo sido, desde 1999, quando nasceu, socializada como mulher. Pratica boxe desde criança, compete desde sempre nas categorias femininas e nem sempre ganhou – por exemplo, no Campeonato Mundial de Boxe Feminino em Nova Delhi, em 2018, ficou em 17.º lugar e nos Jogos Olímpicos de Tóquio, em 2020, ficou-se pelos quartos de final.
Do tweet de Giorgia Meloni à defesa do Comité Olímpico
Nas redes sociais, a primeira-ministra italiana, Giorgia Meloni, deixou uma publicação de apoio à desistência de Angela Carini, afirmando que a luta não foi justa. "Sei que não vais desistir, Angela, e sei que um dia vais ganhar com esforço e suor que mereces. Numa competição finalmente justa", escreveu a governante.
Entretanto, como o debate ganhou proporções avassaladoras, com a atleta argelina a ser alvo de comentários de ódio nas redes sociais, o Comité Olímpico Internacional (COI) veio pronunciar-se – e aproveitou não só para defendê-la, como para falar de Lin Yu-ting, atleta de Taiwan que já tinha passado por uma situação semelhante.
"Todos os atletas que participam no torneio de boxe dos Jogos Olímpicos de Paris 2024 cumprem os regulamentos de elegibilidade e de participação na competição, bem como todos os regulamentos médicos aplicáveis e definidos pela Unidade de Boxe de Paris 2024. Tal como em anteriores competições olímpicas de boxe, o género e a idade dos atletas são baseados no seu passaporte", afirma o COI num comunicado publicado no X (antigo Twitter).
Dizendo que tanto Imane Khelif e Lin Yu-ting "competem há muitos anos", o COI afirmou que a dupla foi vítima "de uma decisão repentina e arbitrária da IBA", que a "desqualificou sem o procedimento devido" do campeonato de mundo de boxe de 2023. A decisão de afastamento terá sido tomada unilateralmente pelo secretário-geral da IBA e só depois foi assumida pela administração do organismo.
"A agressão de que estas duas atletas estão a ser alvo é baseada exclusivamente numa decisão arbitrária, que foi tomada sem qualquer procedimento adequado". O COI condena ainda a alteração de regras a meio de uma competição, como ocorreu no campeonato mundial de 2023. Além disso, a IBA é alvo de suspeitas de longa data que já tinham levado à exclusão desta entidade pelo Comité Olímpico Internacional.