Não foi fácil chegar à fala com Martins. O primeiro entrave começou logo com a ideia inicial de uma reportagem que se queria com pessoas que nunca tivessem falhado uma Festa do Avante. São 42, é muita coisa.

Havia muitos que tinham ido a "quase a todas", outros que diziam que sim, mas depois lembravam-se "daquele ano que não deu mesmo para ir" e outros a contar que só falharam no ano do casamento ou do nascimento dos filhos. "Mas serve?". Não, não servia. Queríamos mesmo alguém que nunca tivesse falhado uma única Festa do Avante e isso não é assim tão fácil de encontrar.

Depois de passar a palavra entre amigos, camaradas e redes sociais, alguém nos garante que há um senhor de Gondomar que foi a todas as festas e que, aliás, já estava na Quinta da Atalaia há 15 dias a montar o recinto. Segundo entrave: o tal senhor não tem telemóvel.

Toca de ligar para o amigo Ilídio que, garantem, é sempre o contacto de emergência caso alguém queira falar com Martins. Quando depois de todo este processo, ouvimos do outro lado o tal desejado. "Sim, sou o Martins e já me disseram que anda à procura de alguém como eu, que tenha ido a todas as Festas do Avante", apetece-nos deitar bloco, caneta e gravador para o chão e começar a dançar a Carvalhesa.

Praticamente toda a festa é montada com o trabalho voluntário dos membros do partido

Pomo-nos a caminho do Seixal, ainda que com medo de imprevistos. É que a última vez que combinámos um encontro com alguém sem telemóvel estávamos em 1998 e ainda sabíamos o número de casa das nossas amigas de cor.

Mas tal como nos explicou ao telefone, de facto, bastou chegar ao recinto, ir até ao espaço guardado para o distrito do Porto e perguntar pelo Martins. "Olhe, está ali ao fundo", aponta um dos camaradas. E é vê-lo a chegar, tirar o boné, limpar a mão aos calções antes de a estender e dizer finalmente: "Vamos então conversar um bocadinho".

Há 42 anos a montar a festa

Martins para os camaradas do partido, 'Caluba' — alcunha de família — para quem o conhece desde pequeno. São poucos os que sabem sequer que a pessoa que é pau para toda a obra se chama António. "É Martins isto, Martins aquilo. Aqui sou sempre o Martins", conta, enquanto nos puxa para sentar numa das mesas corridas que, a partir de hoje, se vão encher com quem faz questão de vir à festa também para fazer uma viagem gastronómica. É que para os camaradas de primeira viagem, saibam que na Festa do Avante o bom é ir de barriga vazia e mente aberta, para um passeio que pode começar com um mojito da banca de Cuba e acabar com umas migas na barraca do Alentejo.

"Já eu, nunca saio daqui sem ir a Aveiro comer ovos moles", admite Martins, ainda que o leitão de Coimbra ou o camarão do Algarve também o levem a pedir a alguém para "deitar um olhinho ao ouro". É que este comunista, como bom representante da terra, traz para a festa filigrana de Gondomar para vender na banca que ajudou a montar.

Beatriz vem à Festa do Avante desde que nasceu. Nos últimos seis anos vem sozinha com o avô para ajudar a montar a festa

Apanhámos Beatriz, a sua neta de 18 anos, a acabar de pintar a tinta preta a palavra "filigrana" atrás do balcão que lhes vai servir de casa para os próximos dias.

Avô e neta vêm juntos há seis anos para ajudar a montar a festa. "Antigamente vinha a família toda, mas agora o resto só aparece para a festa", conta Beatriz que veio pela primeira vez ao Avante ainda como bebé de colo. "Nasceu em janeiro e em setembro já cá andava", garante o avô. Desde aí nunca mais faltou a uma e, ainda por cima, faz questão de vir 15 dias antes para pôr mãos à obra numa festa que é montada apenas com a força dos voluntários.

"Não conheço mais ninguém que faça isto. Muitos dos meus colegas da escola já ouviram falar da Festa do Avante, mas ninguém sabe bem o que é", diz Beatriz. Então, e já que estamos sentados à mesa com duas gerações de festa, expliquem-nos se o slogan do Avante continua a fazer sentido. "Não há [mesmo] festa como esta"?

Quando o partido molda a vida

Para Martins, é difícil imaginar uma vida sem o PCP. "Faz parte de mim há tanto tempo que, provavelmente, eu teria sido uma pessoa diferente", admite.

Antes do 25 de Abril, sabia que não gostava do regime, mas pouco mais do que isso. Com a revolução percebeu que havia um partido que ia ao encontro de tudo o que inquietava mas que ainda não sabia verbalizar. "Juntei-me ao partido e nunca mais saí". Aprendeu com os intelectuais de esquerda aquilo que a escola não dava, acompanhou Cunhal para tudo quanto era lado, levou umas bofetadas de quem não gostava de o ver colar cartazes na rua, correu tudo o que era manifestação e, quando lhe disseram que ia haver uma festa nacional, voluntariou-se para ajudar a erguê-la.

Estávamos em 1976, tinha 32 anos e, já casado, veio com a mulher para Lisboa uns dias antes para ajudarem na construção de um recinto que começou por ser na FIL, em Lisboa, passou pela Ajuda, por Loures e há 18 anos que assenta arraiais na Quinta da Atalaia, no Seixal.

Cada distrito está representado num espaço próprio, montado pelos voluntários, onde vendem comida e artesanato

Nesse primeiro ano, era tanta a gente que, ironicamente, no dia em que podia finalmente usufruir da festa depois de uma semana a montá-la, não passou da fila da entrada. "Peguei na minha mulher, fomos comer um bacalhau ao João do Grão e dormimos numa pensão ali na Praça da Figueira".

Nos anos seguintes, foram juntando as filhas à viagem, depois os genros e, mais tarde, os netos. "Mas ultimamente só eu e a minha neta é que vimos 15 dias antes e ficamos uma semana depois, para montar e desmontar o recinto. O resto vem só para a festa", conta.

Beatriz não se importa de perder dias de férias e passar essas semanas a trabalhar de forma voluntária e Martins, que divide uma camarata com mais três companheiros, não estranha os balneários comuns, a comida feita por outra pessoa que não a mulher, nem se dá conta da cama dura.

"Costumo dizer que eu durmo até em cima de um pinheiro e a comida, ui, temos aqui mulheres a cozinhar muito bem". Nestes últimos dias já comeram feijoada, tripas à moda do Porto e até francesinhas. "Hoje há aí uma moça que vai fazer aquela bebida com fruta, ai que agora esqueço-me do nome". "É sangria, avô", interrompe Beatriz. "Isso, sangria. É como vê, a festa para nós não são três dias, começa muito antes".

Com esta conversa toda, há já quem o espere, a coçar a cabeça ao tentar encontrar solução para aquelas tábuas a precisarem de ser serradas. "Eu, que toda a vida trabalhei como cobrador de água e luz, aqui sou pau para toda a obra", brinca. "Ele faz tudo, até na cozinha ajuda se for preciso", garante a neta, mas quem o quiser encontrar na véspera da festa é junto à pilha de pedaços de madeira a precisar de um corte preciso. "Eu não sou serralheiro, sou habilidoso", garante.

Mas Martins é muito mais que isso e não somos nós que o dizemos. Já quase nas despedidas, há uma camarada de sotaque do Norte que o abraça e nos diz, quase em surdina: "Quem nos dera ter mais Martins como este, não só na festa, mas na vida".

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