O caso não é novo. Soraia (nome fictício) conheceu Mário (nome fictício) em 2005, e no final de 2007 já estavam a viver juntos. Os problemas na relação, no entanto, começaram cerca de seis anos depois, com o nascimento da filha, atualmente com 7 anos, que levaram a que Mário passasse a demonstrar comportamentos agressivos e manipulativos, agredindo a companheira e controlando com quem esta se relacionava no trabalho e fora dele. Em menos de nada, Soraia viu-se obrigada a uma vida de medo à medida que a violência contra si a escalava, desde agressões físicas a ameaças verbais ou tortura psicológica.
É que, quando este homem não agredia fisicamente ou ameaçava verbalmente a sua parceira, fazia-o de forma subliminar, enviando, por exemplo, uma caixa que guardava a fotografia da filha de ambos e duas facas. A violência intensificou-se em meados de 2018, altura em que Soraia decidiu pôr termo à relação e afastou o agressor da casa em que viviam. A decisão decorreu da sequência de uma primeira queixa anónima, feita por alguém da escola da filha, a quem a criança terá relatado algumas das situações de violência doméstica que presenciava entre portas.
Soraia não prestou declarações no seguimento da primeira queixa, por achar que a separação serviria para traçar um final definitivo ao ciclo de violência, mas começou a ser seguida pela Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV), encaminhada pela Polícia de Segurança Pública, chegando-lhe a ser atribuído estatuto de vítima e ficando em regime de teleassistência ao longo de três anos.
Quando Mário se apercebeu de que a saída de casa era irreversível, ainda em 2018, as agressões e as ameaças intensificaram-se e passou a ser recorrente Soraia encontrar, por exemplo, facas cobertas de um líquido vermelho (que simulava sangue) nas escadas do prédio ou mensagens escritas com ameaças explícitas e de uma violência extrema.
No Natal desse mesmo ano, uma das ameaças apresentou-se na forma de um cartão natalício em que a fotografia da criança surgia junto a um cemitério. Foi deixado à porta do prédio, à vista de toda a gente. É feita uma nova queixa em 2018, recolhendo todos esses elementos de prova, e Soraia é obrigada a mudar de trabalho para outra parte da cidade de maneira a fugir ao controlo de Mário.
O caso segue os trâmites legais até ser julgado, em 2021, no tribunal criminal, na região de Lisboa. Este, apesar de estar na posse dos autos da queixa e dos elementos de prova que o alegado agressor terá enviado à ex-parceira ou deixado nas imediações da habitação onde vive, decidiu absolvê-lo no início do ano.
Após a absolvição, Soraia foi agredida
Logo após conhecida a decisão do tribunal criminal, seguiram-se mais ameaças e novas agressões. A primeira foi deixada na garagem de Soraia — a fotografia da criança com uma faca espetada no centro do rosto.
Mas seguiu-se outra, já que a MAGG sabe que a mulher foi agredida, no dia seguinte à absolvição, por alguém que não conhece, mas que se terá deslocado até a sua casa, alegadamente a mando do ex-companheiro, como forma de vingança pela acusação de violência doméstica. Bastante ansiosa e ferida, nos lábios e nos membros inferiores, a mulher deslocou-se ao serviço de urgências do hospital mais próximo da sua área habitacional onde foi assistida pelas equipas médicas.
Mas o caso não se ficou por aqui. Na sequência da decisão emitida pelo tribunal criminal, o Tribunal de Família e Menores (TFM) decretou que o alegado agressor teria direito a manter um contacto regular com a criança, ainda que através de visitas supervisionadas, e apesar de algumas dessas ameaças terem sido feitas no decorrer da decisão sobre o poder parental da criança.
"Estar na presença de violência doméstica é o quê? É a criança estar na sala onde a mãe está a ser agredida? Ou é, por exemplo, estar no quarto ao lado, ouvir gritos e perceber que a mãe está a ser agredida ou a discutir violentamente?"
Essas visitas supervisionadas, sabe a MAGG, estão agora a decorrer num Centro de Apoio Familiar e Aconselhamento Parental (CAFAP), localizado na região da grande Lisboa. E ainda que, até ao julgamento, tenha sido atribuído à mulher o estatuto de vítima, o mesmo não aconteceu com a criança.
A MAGG tentou contactar a Comissão de Proteção de Crianças e Jovens (CPCJ) para tentar perceber como se articula um processo de violência de doméstica e de proteção de crianças em risco, mas a entidade realçou o caráter sigiloso do processo, remetendo qualquer ato de pronúncia para o TFM que é, nesta fase, a entidade competente para efetuar qualquer "intervenção que entenda necessária e adequada à situação de perigo".
Além disso, continua a CPCJ, é ao TFM que compete, "no âmbito de um processo de regulação das responsabilidades parentais", decretar a "inibição de contactos de um progenitor em relação a um filho". Tentámos também contactar as equipas multidisciplinares, que reportam diretamente ao TFM, mas não obtivemos qualquer resposta à data da publicação deste artigo. A ideia era tentar perceber de que forma se processa a decisão de manter o contacto entre filho e progenitor, numa altura em que as ameaças que versam a criança já são conhecidas.
Já o CAFAP, onde estão a decorrer estas visitas, mostrou-se indisponível para responder às questões da MAGG, nomeadamente sobre se tem conhecimento das ameaças que versam a criança; qual o grau de articulação com as autoridades; e que processos estão montados para garantir a segurança da criança durante as visitas com o pai, o alegado agressor.
Para a APAV, crianças expostas a violência são "vítimas de crime"
Embora a Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV) não possa falar especificamente sobre este caso, explica, pela voz da sua gestora do gabinete de Apoio À Vítima do Porto, Ana Castro e Sousa, que estes processos, por dizerem respeito a matérias diferentes, decorrem em paralelo "uma vez que o de regulação de responsabilidades parentais é da competência de um juiz de Família e Menores", enquanto o processo crime "deve decorrer num tribunal criminal". Assiste-se, portanto, a uma "separação de áreas diferentes" que, muitas das vezes, podem até ser apreciadas "em edifícios diferentes" em zonas de maior densidade populacional, como Lisboa ou Porto.
Quanto ao que determina ou não a atribuição de estatuto de vítima também a uma criança, além da mãe, Ana Castro e Sousa remete para a discussão que ainda hoje existe entre o que é ser vítima de violência doméstica ou vítima indireta.
"O que acontece é que, muitas das vezes, as crianças estão 'apenas' — e este apenas tem de ser posto entre aspas porque se trata de um assunto muito importante para nós — expostas a uma violência interparental. Ou seja, é uma violência que não lhes é dirigida diretamente, mas que acontece dentro de casa, entre os progenitores, e à qual estão expostas", explica-nos Ana Castro e Sousa, gestora do Gabinete de Apoio à Vítima, da APAV, no Porto.
"Na visão da APAV, crianças expostas a esta violência são, elas próprias, vítimas de crime", embora reconheça que há "muita discussão em redor desta temática" e do que significa, afinal, ser vítima direta.
"Estar na presença de violência doméstica é o quê? É a criança estar na sala onde a mãe está a ser agredida? Ou é, por exemplo, estar no quarto ao lado, ouvir gritos e perceber que a mãe ou o pai está a ser agredido ou a discutir violentamente?", questiona Castro e Sousa. É tudo isto que, nas suas palavras, acaba por enquadrar uma situação de exposição à violência doméstica, levando a APAV a olhar para crianças inseridas neste contexto como "vítimas de crime" e não apenas como "vítimas indiretas".
"A absolvição não quer dizer que a pessoa não tenha cometido os atos, mas que não se conseguiu provar e fundamentar que aqueles atos foram praticados"
Apesar disso, Ana Castro e Sousa ressalva que, "são muitas as situações em que a pessoa agressora dirige os seus atos violentos para um adulto e não para uma criança". Quando, de facto, essa agressão — seja ela física ou psicológica — é dirigida a um menor, que aos olhos da APAV é sempre vítima de crime mesmo que "apenas" a presencie, então "faz todo o sentido que também lhe seja atribuído um estatuto de vítima de violência doméstica".
Apesar de alguma perplexidade que possa causar, Ana Castro e Sousa explica que o regime de visitas supervisionadas, como aquelas estão agora a acontecer no âmbito deste caso, foi a alternativa "que se encontrou para que o progenitor não fique impedido de estar com a criança". A inibição total, continua, é decretada apenas em "situações extremas" de "violência de extrema gravidade, praticada diretamente sobre a criança", e onde se inclui, também, a violência sexual.
"São situações em que, face aos elementos que constam no processo, o juiz se vê obrigado a tomar essa decisão que é sempre feita com o interesse da criança em mente. Mas depois há situações intermédias, que não são tão graves em termos do perigo que podem representar para o menor, mas onde, apesar disso, não se é possível identificar uma relação saudável", explica a representante da APAV.
E embora o processo que o TFM tenha em mãos possa conter uma série de detalhes importantes, Ana Castro e Sousa sublinha que, apesar disso, é importante não esquecer que, do lado do tribunal criminal, foi decretada uma absolvição — que não quer dizer que o réu seja inocente.
"A absolvição não quer dizer que a pessoa não tenha cometido os atos, mas que não se conseguiu provar e fundamentar que aqueles atos foram praticados. O TFM fica, claro, com uma dificuldade, porque o réu não foi condenado num processo de violência doméstica. É possível que, nestas situações, na dúvida e existindo suspeitas de alguma violência, ainda que psicológica, se determinem visitas supervisionadas sempre com o objetivo de proteger a criança em causa", refere.
No fundo, trata-se de um mecanismo em que o menor nunca estará sozinho com o progenitor que, alegadamente, o maltrata, e cujas visitas acontecem em espaços neutros "que não são a casa do pai, da mãe ou de familiares", e durante as quais "os técnicos estão atentos para reportar ao processo qualquer situação de anormalidade".
Quando as crianças são usadas como "instrumento" para amedrontar outro cônjuge
Paulo Pereira, advogado, está habituado a lidar com casos como este em que, após uma acusação de violência doméstica, seguida de uma absolvição, o TFM decreta visitas supervisionadas entre a criança e o alegado agressor, seja o pai ou a mãe. E são, portanto, os anos de experiência que lhe permitem falar de uma situação destas como "um clássico" daquilo que vê acontecer com regularidade.
"O que me parece é que o tribunal criminal considerou que o pai não queria atingir a criança, mas sim a mãe. E mesmo assim, absolveu-o. É um clássico em que, durante um processo de divórcio [ou separação], um pai ou uma mãe usa os filhos como bala de canhão, fazendo ameaças de morte ou de rapto da criança", diz Paulo Pereira à MAGG. O que Paulo Pereira acredita ser o entendimento do tribunal é que, nestes casos, os agressores "não querem atingir o menor, mas amedrontar o outro cônjuge com uma violência psicológica em que a criança é usada como instrumento", refere. O paralelismo traça-se facilmente com o caso em questão, em que o alegado agressor enviou, por diversas vezes, fotografias da filha juntamente com facas a Soraia.
"No sistema judicial português há pessoas que são condenadas, mas são inocentes, e pessoas que são absolvidas, embora sejam culpadas. Tenho de dizer isto de forma clara e dura, para reforçar que embora o agressor possa ter sido absolvido no tribunal criminal, isso não significa que a violência doméstica não tenha acontecido e a criança não a tenha presenciado", diz Pereira.
A ideia, nas palavras do advogado, repugna e é difícil de explicar, mas serve de base para aquela que é a decisão do TFM uma vez conhecida a sentença do tribunal criminal.
"O tribunal pode reverter a decisão destas visitas quando decidir que estão reunidas as condições para o pai ter acesso ao menor sem qualquer acompanhamento. Mas para lá chegar, é um longo caminho"
Paulo Pereira é crítico do sistema judicial português, falando de um sistema que falha, exemplificando com um cenário oposto: "No caso de um progenitor ser condenado, o advogado da vítima deveria dar conhecimento ao TFM da decisão. Não quer dizer que o tribunal criminal não pudesse, ele próprio, oficiar o outro, que acontece, mas nem sempre. E, nesses casos, deve ser o advogado a fazê-lo", refere.
Face à decisão proferida pelo TFM neste caso concreto, que se assemelha a tantos outros no País, o advogado Paulo Pereira é assertivo ao considerar que a entidade em questão terá entendido que aquele pai, independentemente da apreciação criminal que foi feita, "representará algum risco, devido ao comportamento que tem, para a vida ou a integridade física daquela criança". No entanto, isso não terá sido suficiente para "privar a criança do progenitor, uma vez que aquilo que está em causa para o TFM são sempre os superiores interesses da criança e não o dos pais", diz.
"Há situações em que isso é um erro escandaloso porque o TFM não retira as crianças a tempo aos pais e muitas acabam por morrer. Mas neste caso, o Tribunal de Família terá feito uma análise e entendeu que não estava no superior interesse da criança privá-la do progenitor, permitindo o contacto, desde que supervisionado, por não sentir que houvesse condições para que o menor estivesse sozinho com ele".
Para se chegar a essa decisão, é feita uma avaliação psicológica ao pai e à mãe que, especula Paulo Pereira, poderá ter servido de base para o tribunal considerar que o progenitor "não tem condições psicológicas para ter à sua guarda, e sem supervisão, o filho ou a filha".
De modo a não "cortar as ligações parentais, permitiu esta solução", sublinha, mesmo que o TFM tenha acesso aos mesmos elementos de prova — e é possível ter, garante o advogado — que foram apreciados em matéria criminal.
Ou seja, isto significa que há sempre cruzamento de informações entre os dois processos, embora no TFM o objetivo seja outro. "Um juiz de família não tem como objetivo analisar os elementos como matéria de crime, porque essa competência pertence a um tribunal criminal, mas sim pesá-los na decisão final sobre como deverá ser o relacionamento futuro entre progenitor e filho", esclarece Paulo Pereira.
Após o período de visitas supervisionadas, o que se segue?
As visitas decorrem com a supervisão de equipas multidisciplinares, cujos relatórios são remetidos para o TFM que está sempre ao corrente do processo. Além disso, acrescenta Paulo Pereira, a criança pode ser ouvida pelos técnicos e, inclusivamente, pelo tribunal à porta fechada, "a qualquer altura, se o juiz assim o entender". E se inicialmente as crianças eram ouvidas a partir dos 12 anos, agora podem "ser ouvidas mais cedo" se o juiz responsável entender que têm a maturidade necessária.
É que o processo, mesmo depois de decretadas as visitas com supervisão técnica, não é imutável. "O tribunal pode reverter a decisão destas visitas quando decidir que estão reunidas as condições para o pai ter acesso ao menor sem qualquer acompanhamento. Mas para lá chegar, é um longo caminho e pode levar muito tempo,", diz o advogado.
Mas também é possível acontecer o inverso, ou seja, ser decretado o fim da visitas sempre que se considerar que há risco acrescido para a criança ou houver novas agressões a serem denunciadas. "Ninguém pode ser julgado duas vezes pelos mesmos factos. Por isso, se vier a existir algum outro ato, passível de se considerar violência doméstica, contra a mãe ou contra a criança, deve haver nova denúncia e ser dado a conhecer isso mesmo ao processo de resolução de responsabilidades parentais", explica Ana Castro e Sousa, da APAV.
A explicação tem que ver com o facto de se tratar de um "processo que pode ir sendo alterado porque a situação que foi decretada inicialmente, pode não ser a mesma mais para a frente até a criança atingir a maioridade". "Qualquer circunstância que surja, pode dar origem a uma modificação no que toca à relação das responsabilidades parentais", refere.
Quando questionada sobre se, na lei, está previsto que qualquer instituição onde estas visitas supervisionadas aconteçam se possa recusar a receber o alegado agressor pelo risco que isso possa significar para a criança, Ana Castro e Sousa diz que não. "Não há nada lei que esteja textualmente escrito acerca desse assunto. Mas, como é evidente, se houver algum momento que os técnicos que estão a supervisionar as visitas perceberem que a criança está em perigo, podem acionar, e é desejável que o façam, os órgãos de polícia criminal para tomar conta da ocorrência. Ao perceber que alguma coisa não está bem, os locais onde estas visitas acontecem têm a obrigação de reportar ao processo no sentido de defender, sempre, os interesses da criança", diz.
"Havendo alguma coisa que não esteja a correr bem e que possa pôr em causa os interesses da criança, o seu bom desenvolvimento físico ou psicológico, deve ser reportado. Caberá ao juiz, na posse destas novas informações, reavaliar e tomar as medidas mais adequadas", conclui.