Estávamos no início do ano letivo de 1963/64. João Cunha Serra, 18 anos, percorria a Avenida de Roma, a caminho da Alameda Dom Afonso Henriques, vindo de Alvalade. Era o seu primeiro dia como aluno do curso de Engenharia Eletrotécnica, no Instituto Superior Técnico. Naquele tempo mal sabia que, a partir de então, aquela seria a sua casa durante 52 anos.
“Ia com a incerteza de quem vinha do secundário. Vinha do Liceu Camões, que tinha um sistema de disciplina de ferro, com um reitor muito controlador, capaz de estar nas galerias a ver os alunos no recreio”, conta à MAGG. “Ingressei no Técnico sem ter de fazer aqueles exames de entrada porque trazia uma nota razoável. Foi uma coisa totalmente diferente. Cheguei à universidade e a liberdade era outra. Não havia controlo se íamos às aulas ou não”, conta.
Os anfiteatros estavam cheios de alunos. Os docentes “despejavam a matéria” e tinham uma vida diferente da que têm agora: “A larga maioria dos professores eram pessoas que davam as aulas e iam a correr para as suas empresas”, diz. Ao contrário do que acontece atualmente, “eram raros os professores residentes que faziam investigação na instituição.”
Apesar de ter de “marrar muito e bem para fazer as cadeiras”, o sabor daquela nova liberdade também o fazia trocar aulas por outras atividades: “Os alunos espalhavam-se pelas redondezas. Havia aulas em que não púnhamos os pés”, recorda. “Íamos para uma papelaria chamada A Desportiva, mesmo ao lado do Técnico, onde havia matraquilhos, pingue-pongue e onde nos entretínhamos. Também íamos para o bowling ou para a Mexicana, na Praça de Londres.”
O pai tinha entrado naquela mesma escola, na década de 30: “Era exatamente igual, com edifícios do tempo da construção do engenheiro Duarte Pacheco [aluno, professor e diretor daquela instituição nos anos 20, Ministro das Obras Públicas e Comunicações e Presidente da Câmara de Lisboa, nos anos 30].”
Não havia as famosas torres, não havia o pavilhão da Matemática, ou sequer o que fica atrás do edifício central. Só depois da entrada para a Comunidade Económica Europeia é que se começou a construir a versão do IST que hoje conhecemos e que deu origem à expansão para o campus no Tagus Park.
“No lugar de uma das torres estava um avião de um professor, que era um tipo meio avariado”, conta. “Era de Aeronáutica e não acreditava que o Sputnik tinha sido lançado.”
Havia pouco espaço para a investigação, menos alunos (as mulheres contavam-se pelos dedos) e menos cursos. Mas, tal como outras, aquela escola foi um reflexo da situação política do País: do Estado Novo, ao 25 de abril, ao PREC ou à entrada na União Europeia.
Um admirável (e exigente) mundo novo
Era outubro e corria o ano de 64 quando Aurélio Machado viajou de barco do Pico, nos Açores, até Lisboa. A viagem fez-se em sete dias, com paragens em diferentes ilhas, incluindo no arquipélago da Madeira. Quando chegou a Lisboa já as aulas tinham começado há uma semana.
Tinha sido um bom aluno no liceu, tanto que recebeu a bolsa da Junta Real da Horta, que o obrigava a manter uma média de 14 durante todo o período da licenciatura. Porém, não “estava minimamente sensibilizado” para as dificuldades que o esperavam. A primeira aula a que assistiu foi a de Matemáticas Gerais, no curso de Eletrotecnia. O assistente era Cândido Oliveira, que estava “bem consciente da sua função seletiva”.
O aluno chegou a horas e sentou-se. "Assim que ele [o assistente] mandou fechar a porta para começar a dar a aula, entrou um um indivíduo de cachecol — e de cuja feição não me esqueço — e o professor disse-lhe: ‘Olhe que eu não me esqueço de si’.”
Senti-me tão infeliz”, diz. “Passei um susto tão grande que, assim que sai do anfiteatro fui à Associação de Estudantes comprar as sebentas, que eram feitas pelos alunos
Aurélio Machado saiu aterrorizado da aula, não só pela tensão que sentiu, mas, sobretudo porque não conseguiu acompanhar a matéria: “Senti-me tão infeliz”, diz. “Passei um susto tão grande que, assim que saí do anfiteatro fui à Associação de Estudantes comprar as sebentas, que eram feitas pelos alunos.” Nos tempos que se seguiram, a vida deste futuro assistente do IST cingiu-se a dois locais: universidade e casa, sempre com a cabeça entre os livros.
“Levei um mês de clausura a estudar dia e noite e só saí quando me senti em condições de acompanhar. Não podia perder a minha bolsa.”
O IST de Aurélio e de João Serra não é o mesmo que o de João Silva, 22 anos. As preocupações académicas do jovem natural de Gouveia são outras porque já não há Estado Novo, PIDE ou a agitação do pós-25 de abril. Mas há contrastes que não perdem a validade.
O primeiro dia de aulas foi uma coisa muito diferente para mim. Gouveia é um concelho que tem tantos habitantes quanto o número de alunos do IST
Tal como aconteceu com o açoriano natural do Pico, no ano em que entrou na faculdade, João sentiu-se “uma formiga” e percebeu que o ritmo de estudo era completamente diferente. “É uma escola em que é preciso pedalar”, conta. “Tive de fazer grandes mudanças nos meus hábitos de estudo.”
“O primeiro dia de aulas foi uma coisa muito diferente para mim. Gouveia é um concelho que tem tantos habitantes quanto o número de alunos do IST”, diz. A mudança de vida foi radical, como é a de tantos outros estudantes nesta fase de transição. Veio praticamente sozinho mas, com a praxe inicial, conheceu pessoas, habituou-se à vida em Lisboa, ao ambiente académico e também à vida boémia. Uma das recordações que guarda com mais carinho remete-o para um dia em que vinha, às quatro da manhã, a descer a Avenida da Liberdade, a entoar os hinos dos cursos e as músicas académicas. “Isso marcou-me bastante”, diz.
O aluno de Engenharia Mecânica foi presidente da Associação de Estudantes no ano letivo de 2016/2017: “Nessa altura, aquilo que nos preocupava mais era que a Associação fosse capaz de continuar as suas atividades, apesar da situação financeira terrível deixada pela direcção anterior e que pôs em causa o seu futuro”, conta. “Agarrámos naquilo com força. Acho que correu muito bem e estou mais confiante no futuro agora.” Estuda, tem aulas e participa em várias atividades organizadas pelos estudantes. João diz, em tom de brincadeira, que vive no Técnico.
Foi depois de desempenhar a função de Coordenador de Gestão e de Serviços na Associação que surgiu a oportunidade de se candidatar a presidente: “Lembro-me de estar a contar os votos, muito cansado, mas muito satisfeito e ciente de que ia enfrentar uma grande responsabilidade”, conta. “São quase 12 mil alunos e eu queria representá-los da melhor forma.”
O trabalho da Associação é alargado. Além de o IST formar técnicos, também forma “pessoas”. Gerem-se as atividades desportivas, a componente cultural, recreativa, para não falar do apoio que se disponibilizam a dar a todos os alunos.
No arraial do IST de 2017 — que recebeu músicos como Capitão Fausto, Valete ou Ena Pa 2000 — João Silva estava encarregue do controlo de equipa: “Éramos 50, distribuídos pela bilheteira, controlo de entradas, armazém, apoio aos artistas”, conta. “Eu tinha de gerir as pessoas e dirigi-las para onde fosse necessário. No final, era preciso arrumar tudo.”
Como diz, as equipas que trabalham nos projetos e atividades do técnico — incluindo organização de jornadas de curso ou férias de emprego — “dão o corpo ao manifesto.” Nesta noite, João não dormiu. A equipa foi fazendo turnos para descansar, mas o presidente optou por não pregar olho, porque “dormir era morrer.”
O cerco, a interrupção das aulas e um diretor que vigiava os alunos à porta
Em 1963, quando entrou para o IST, João Serra vinha sem qualquer vocação política. Embora o pai fosse um “homem com ideias mais ligadas à Esquerda”, nunca procurou influenciar os filhos.
Havia calças à boca de sino, havia cabelos e barbas grandes. Os Beatles já tinham aparecido. Os Estados Unidos travavam a Guerra do Vietname e competiam com a Rússia no espaço. Em Portugal, vivia-se já há largos anos sob o regime do Estado Novo. Salazar estava quase a cair e Marcelo Caetano a substituí-lo. A Guerra Colonial já tinha começado. E os estudantes queriam que o país renascesse.
“A Associação de Estudantes era o único ar fresco que havia ali, porque produzia textos que eram subversivos em relação ao Estado Novo”, conta. As reivindicações do corpo estudantil agitaram as décadas de 60 e 70 naquela universidade. E iam acumulando. Havia a falta de liberdade política e de expressão imposta pelo regime. Havia a Guerra Colonial, que ameaçava (e enviava) alunos para África. E, mais tarde, houve também o aumento do número de estudantes na década de 70 — fruto das medidas do Ministro da Educação Nacional de então, Veiga Simão — que fazia crer que a “economia não teria força para absorver tantas pessoas no mercado de trabalho.”
Conclui-se que o guarda da Associação de Estudantes era da PIDE. Mais tarde, já como assistente [a partir dos anos 70] um dos contínuos era informador da PIDE”, conta. “Mas só o viemos a saber depois.
João Serra despertou para o movimento académico quando, no seu terceiro, ano foi a um piquenique organizado pela Associação de Estudantes, dentro do Pavilhão Central: “No fundo, era uma forma de agitar as águas, com intervenções de cariz político”. diz. “No final do piquenique, os alunos invadiram a sala das alunas, que era o vestiário das raparigas, onde também se iam maquilhar. Era uma espécie de gineceu. Aquela atitude foi uma demonstração de poder, para ir contra as regras do diretor.” O acontecimento foi anunciado pela comunicação social, "que disse uma série de mentiras", como os estudantes exigirem casas de banho mistas, de modo a tentarem virar a opinião pública contra eles.
Passado “um ou dois anos”, já fazia parte na direcção da Associação de Estudantes, na altura em que o presidente era José Mariano Rebelo Pires Gago, figura que veio a tornar-se num dos grandes impulsionadores da investigação científica em Portugal: presidiu a Junta Nacional de Investigação Científica e Tecnológica, criou a Fundação para a Ciência e Tecnologia (responsável pelo financiamento público da investigação portuguesa) e organizou as Jornadas Nacionais de Investigação Científica e Tecnológica. Entre 1995 e 2002 foi ministro da Ciência e Tecnologia.
A agitação académica chamava a atenção do regime. “Conclui-se que o guarda da Associação de Estudantes era da PIDE. Mais tarde, já como assistente [a partir dos anos 70] um dos contínuos era informador da PIDE”, conta. “Mas só o viemos a saber depois.”
A tensão atingiu o climax em 1973, com o cerco policial da universidade e a interrupção das aulas durante um semestre. Antes, já havia os “gorilas” a vigiar a universidade e a instaurar a ordem: “Eles estavam ali para garantir que não havia intervenções dos estudantes que pusessem em causa o regular funcionamento do ensino, impedindo ajuntamentos.”
Mesmo assim, a Associação não cessava a sua atividade interventiva, com greves, manifestações e produção de documentos. E o corpo docente também começava a manifestar-se. Os ânimos estavam tão agitados, que a polícia cercou, invadiu e fechou a escola universitária da Alameda: “Julgo que fizeram isso durante a noite. Fecharam o Técnico e invadiram a associação”, conta.
Ninguém estava à espera que viesse o 25 de abril, mas trabalhávamos para que ele acontecesse
O resultado deste cerco policial foi a anulação de um semestre. O presidente da Associação de Estudantes foi preso, juntamente com uns tantos outros ativistas. O técnico fechou e foram necessários meses para que as portas voltassem a ser abertas.
“O professor Sales Luís foi o mediador do acordo para voltar a abrir o Técnico”, conta. “Mas, passado algum tempo, o rebuliço recomeçou. Ninguém estava à espera que viesse o 25 de abril, mas trabalhávamos para que ele acontecesse”, diz João Serra.
Foi assim que, no mesmo ano, Sales Luís, agora diretor, aplicou um “controlo monumental” à instituição. Além de polícias em torno da universidade, que impediam as pessoas de saltarem os muros, havia uma câmara de vigilância e uma observação feita a pente fino para apanhar os ativistas: “Ele [Sales Luís] tinha uma memória de elefante e decorou as caras das pessoas que apareciam nas imagens da câmara que instalou”, conta. “Só se podia entrar por uma das portas do técnico — aquela pequena do portão virado para a Alameda — e, sempre que havia alguém que tivesse sido identificado, o diretor apreendia-lhe o cartão de aluno e impedia-lhe a entrada.”
Foi assim que o 25 de abril veio encontrar o Técnico: "Uma situação policial. Depois de uma grande libertação, o pêndulo foi para o outro lado. Houve reacções em excesso, docentes postos à porta, insultados.”
Os ânimos estavam “exaltadíssimos” e Sales Luís foi escorraçado. “Foi o António Abreu, pai do aluno do mesmo nome [duas vezes eleito como Presidente da Associação de Estudantes, mais tarde engenheiro, químico e político português], que conduziu o Diretor ao portão, para evitar que ele fosse espancado. Claro que nenhum se livrou de ir tomar banho, porque a malta cuspiu-lhes toda em cima.”
Quando os estudantes intimidaram os professores
Estávamos no “verão quente” e reinava a desorganização no IST. Os alunos tomavam o poder e os professores sentiam-se intimidados. Os estudantes tinham mais força do que o corpo docente. Era a “assembleia da escola que tomava as decisões”, onde os votos dos professores e estudantes (que eram muitos mais) tinham a mesma força: “Era uma espécie de controlo operário”, diz João Serra.
Os alunos queriam dar as notas e os docentes eram postos na rua por eles. O Ministério deixou de reconhecer a direção do Instituto Superior Técnico e os professores, que tinham de lá ir buscar o ordenado, ficaram numa situação caótica que demorou a resolver-se.
Lembro-me de um dia em que estava a dar uma aula de uma cadeira de quarto ano e, sem pedirem licença, entram vários estudantes na sala
“Havia comissões disto, comissões daquilo e havia uma enorme pressão sobre os professores para não haver reprovações”, conta Aurélio Machado, que na altura estava a trabalhar como assistente.
“Lembro-me de um dia em que estava a dar uma aula de uma cadeira de quarto ano e, sem pedirem licença, entram vários estudantes na sala”, conta. “Diziam que se estava a dar uma grande mudança no país e que não devia haver severidade na avaliação.”
Esta situação demonstra a pressão e tensão que se vivia no IST, sobretudo para o corpo docente. Naquele momento, o assistente comunicou aos estudantes que iria continuar a avaliar com o mesmo critério. “Os alunos lá se foram embora a resmungar.”
O acontecimento foi a gota de água para Aurélio Machado: “Naquele dia, tomei uma decisão”, diz. “Senti que não tinha futuro para lecionar naquele ambiente, por isso, poucos dias depois aceitei um convite para fazer a instalação do IAPMEI (Agência para a Competitividade e Inovação), em São Miguel, nos Açores”
Da Engenharia Electrotécnica ao stand-up comedy
Hugo Rosa, 34, comediante, entrou nesta universidade em 2001, para a licenciatura de Engenharia Eletrotécnica. Foi contratado antes de terminar o mestrado e acabou por não concluir os estudos naquela altura. Mas, mais recentemente, regressou para fazer um doutoramento em Informática.
“Recordo-me de um dia em que os veteranos foram buscar-nos e tivemos de ir para cantina comer sem talheres. E lembro-me de depois andarmos a cantar por Lisboa. Descemos a Almirante Reis e fomos até ao rio”, relata.
Até era bom aluno no secundário e estreei-me com um seis a álgebra
A praxe teve pouco significado para Hugo Rosa. Aquilo que inicialmente mais o chocou foi, claro, a exigência: “Até era bom aluno no secundário e estreei-me com um seis a álgebra”, conta. “A primeira coisa que o meu professor de Análise de Matemática — cadeira com uma taxa de reprovação de mais 90% — disse foi: ’Vocês não sabem nada de Matemática. A que vos ensinaram até aqui teve falhas. Vamos começar do zero.’” Passou o primeiro mês de aulas a mostrar “como é que o matemático tinha provado que um zero a multiplicar por zero dava zero.”
Só no terceiro ano é que se adaptou à exigência desta faculdade: “A noção de ano no IST não existe. Só de matrículas. Quando abandonei o mestrado já ia na sétima.”
Foi aos 23 que o humorista teve o primeiro contacto com a Board of European Students of Technology (BEST), um grupo que é representado em quase 100 universidades na Europa, da qual mais tarde se veio a tornar presidente. Era um misto de “trabalho com regabofe”, conta. “O associativismo tornou a minha experiência académica muito melhor. Tínhamos de conseguir organizar, uma vez por um ano, um curso para receber estudantes de outras faculdades de outros países, o que implicava angariar muito dinheiro para que nenhum aluno tivesse de pagar mais de 40€.”
Foi esta mesma associação que levou Hugo Rosa à carreira de humorista: “Ajudou-me a desenvolver soft skills, como a comunicar melhor”, diz. “Aos 26, quando já estava a fazer consultoria informática, fui visitar um amigo na Sérvia que tinha conhecido aqui. Estávamos a ter uma conversa muito honesta e eu disse-lhe que estava farto de trabalhar naquela área. Ele perguntou-me o que é que eu queria fazer e eu demonstrei que gostava de stand-up comedy.”
Estávamos em 2009 quando isto aconteceu. Em setembro do mesmo ano, Hugo Rosa deu o seu primeiro espetáculo.